Casos Shell e Nevsun mostram elo frágil entre empresas e direitos humanos
- Análisis
Em 2013, a Suprema Corte dos Estados Unidos julgou e decidiu o caso Kiobel v. Royal Dutch Petroleum Co. sobre a cumplicidade da empresa Shell com as violações de direitos humanos e direito costumeiro internacional cometidas pelo governo nigeriano contra o povo Ogoni.
Esse caso é emblemático pelo fato de evidenciar uma lacuna histórica com relação à responsabilidade empresarial no Direito Internacional Público (DIP), no que diz respeito a violações de direitos humanos cometidas por entes não estatais. O status de entes não estatais, como empresas, ONGs e grupos de guerrilhas, é um assunto de intenso debate no DIP, tendo em vista as inúmeras situações de impunidade que podem surgir de violações de direitos humanos cometidas por tais entidades.
Enquanto a empresa Shell alegava que não possuía responsabilidade pelas violações de direitos humanos, tendo em vista que o DIP somente considera Estados e indivíduos enquanto sujeitos de Direito e que as violações ocorreram extraterritorialmente, o governo nigeriano dizia que as violações não eram de responsabilidade estatal, mas empresarial. A indecisão com relação ao legítimo responsável pelas violações se tornou uma acirrada discussão que, durante anos, gerou uma impunidade que levou à insatisfação do povo nigeriano Ogoni.
Canadá: caso Nevsun
Em 28 de fevereiro de 2020, a Suprema Corte canadense proferiu uma decisão de admissibilidade marcante e histórica no caso Nevsun Resources Ltd. v. Araya. No caso em questão, a empresa canadense, Nevsun, é acusada de promover trabalho escravo e forçado, tratamento desumano e cruel e crimes contra a humanidade (previstos no artigo 7º do Estatuto de Roma e considerados no direito costumeiro internacional) em suas minas, na Eritreia. Ao analisar a admissibilidade das alegações, a discussão sobre a responsabilidade de empresas perante o DIP, empreendida previamente pela Suprema Corte dos Estados Unidos, ressurgiu na Suprema Corte canadense. Em ambas as Cortes, foi discutido se as normas de direito costumeiro internacional podem se estender para casos de responsabilização corporativa.
No caso da empresa Nevsun, a Suprema Corte canadense decidiu que as normas de direito costumeiro se estendem para as empresas, podendo gerar responsabilidade corporativa (corporate liability), tendo em vista serem normas internacionais que são automaticamente incorporadas no direito doméstico canadense. Portanto, a empresa canadense é obrigada perante o direito costumeiro internacional, por se tratar de direito incorporado automaticamente ao direito canadense.
A questão da incorporação automática não foi plenamente aceita pelos juízes canadenses do caso, tendo em vista que o sistema doméstico canadense adota um modelo dualista, ou seja, tratados internacionais ratificados pelo Canadá precisam ainda passar por um procedimento dentro de seu direito doméstico para serem incorporados. A incorporação automática de tradados internacionais somente ocorre em modelos monistas, como nos Estados Unidos.
EUA: Shell
No entanto, curiosamente, no caso Kiobel v. Royal Dutch Petroleum Co., a Suprema Corte dos Estados Unidos afastou a possibilidade de o direito costumeiro internacional ser considerado direito doméstico e, portanto, adotado de forma automática. A Suprema Corte dos Estados Unidos compreendeu que o conceito de corporate liability não é direito costumeiro internacional, afastando a discussão mencionada acima.
Entretanto, a decisão da Suprema Corte canadense pode ser um marco normativo, tendo em vista que estabelece um exemplo de prática estatal de aceitação de corporate liability relacionado ao cumprimento corporativo de direito costumeiro. Dessa forma, a decisão de admissibilidade do caso Nevsun pode ser considerada um exemplo de prática estatal de aceitação do conceito de corporate liability como de direito costumeiro, respondendo à questão posta pela Suprema Corte dos Estados Unidos.
Empresas e o DIP
A discussão sobre a atuação empresarial no Direito Internacional Público (DIP) remonta aos primórdios de seu surgimento, nos séculos XVI e XVII, tendo em vista a essencial atuação das Companhias mercantis da época no processo de expansão imperialista das nações europeias para o “Novo Mundo”. O jurista Hugo Grotius, advogado da Companhia das Índias Orientais Holandesas, empreendeu um papel central com relação à compreensão da atuação empresarial dentro do DIP.
Grotius defendia a atuação empresarial dentro do DIP —em uma relação de quase dependência e paralelismo com o poder estatal— sendo considerado um teórico radical no século XVII. O jurista holandês defendia que empresas e outros sujeitos teriam o poder de defender e julgar o Direito Natural em casos de ausência de juízes de Direito, como, por exemplo, declarando guerra contra outras nações e Companhias —na época, a Companhia tinha poder de declarar guerras, o que era fortemente criticado por alguns estudiosos— e em um momento de legítima defesa. Essa teoria foi utilizada por Grotius para defender os ataques de navios da Companhia das Índias Orientais Holandesas contra navios portugueses em alto-mar, justificando suas condutas como sendo empreendidas em defesa do Direito Natural. Grotius ainda defendia que a Companhia deveria ter uma Corte própria para julgar os próprios casos, sendo contrário à existência de possíveis cortes internacionais, opinião também criticada pelos juristas de sua época.
Analisando os casos norte-americano e canadense, em comparação com a doutrina de Hugo Grotius, entende-se que sua teoria compreendia e defendia a atuação empresarial dentro do direito costumeiro internacional, porém de forma enviesada, no intuito de defender os interesses imperialistas postos pela Companhia para explorar e subjugar o “Novo Mundo”. Com o posterior fortalecimento do estadocentrismo no DIP, principalmente nos séculos XVIII e XIX, com as crises da Era das Companhias, as postulações de Grotius relacionados à Companhia perderam força, sendo que sua teoria somente é analisada, atualmente, sobre o ponto de vista estatal. Apesar de Grotius ainda ser considerado, por muitos, um dos “pais do direito internacional”, o fundamento corporativo de suas teorias ainda é desconsiderado por muitas análises sobre suas obras no DIP.
Lacuna por fechar
Dessa forma, a atual discussão empreendida pelas Supremas Cortes norte-americana e canadense não tratam de novas questões dentro do DIP, mas de questões que foram historicamente desconsideradas e afastadas pela visão centralizada no estadocentrismo. Historicamente, portanto, violações de direitos humanos por empresas não foram devidamente analisadas e julgadas dentro do DIP, tendo em vista a lacuna jurídica e os interesses hegemônicos com relação à atuação corporativa no DIP.
Aproximadamente quinhentos anos após as postulações de Hugo Grotius, a atuação corporativa dentro do DIP continua a ser controversa e uma lacuna a ser preenchida. As decisões das Supremas Cortes canadense e dos Estados Unidos pretenderam reavivar esse tema dentro do DIP, possivelmente influenciadas pelo desenvolvimento da área de direitos humanos e empresas dentro da agenda das Nações Unidas.
Dentre as consequências jurídicas possíveis a partir dessa nova decisão de admissibilidade da Suprema Corte Canadense, surge a possibilidade de uma reformulação da decisão da Suprema Corte dos Estados Unidos. Ademais, a partir da reanálise canadense da decisão proferida pela Suprema Corte dos Estados Unidos e o desenrolar do julgamento do caso Nevsun, bem como a edição do novo tratado que está sendo formulado pela Organização das Nações Unidas sobre direitos humanos e empresas[1], permite-se antever novos estudos e compreensões sobre a responsabilidade empresarial no Direito Internacional Público.
[1] https://www.ohchr.org/Documents/HRBodies/HRCouncil/WGTransCorp/OEIGWG_RevisedDraft_LBI.pdf
- Hannah de Gregório Leão é graduanda em Direito na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), membro do PILLS (Public International Law Litigation Society) PUC-Rio e pesquisadora do Programa de Educação Tutorial (PET) do Departamento de Direito da PUC-Rio na área de Direito Constitucional.
20.03.2020