Vandana Shiva: “Temos de destruir o mito de que a tecnologia é uma religião que não pode ser questionada”
- Análisis
Cientista e ativista ambiental, fundou a organização não governamental Navdanya, que promove a biodiversidade de sementes, a agricultura biológica e os direitos dos agricultores na Índia. Esteve no Porto para falar de colonização, a nova e a antiga.
A reportagem é de Andrea Cunha Freitas, publicada por Público, 13-11-2019.
Muito antes de uma menina sueca de 15 anos e longas tranças decidir fazer greve às aulas para protestar contra as alterações climáticas, Vandana Shiva já andava pelo mundo fora a abraçar árvores (literalmente), a guardar milhares de sementes num banco na Índia e a lutar pelo futuro do planeta. Vandana Shiva é uma ativista ambiental mundialmente famosa que começou nestas andanças mais ou menos com a mesma idade de Greta Thunberg. A revista Time considerou-a uma “heroína” e a Forbes colocou-a na lista das mulheres mais poderosas do mundo.
No seu mais recente livro, que escreveu em colaboração com o filho, Unidade contra o 1%: Quebrando Ilusões, Semeando a Liberdade, confronta os seus leitores com uma dura oposição a grandes multinacionais, como a Monsanto, pela influência nefasta na agricultura. Também faz um feroz ataque aos “bilionários”, como Bill Gates e Mark Zuckerberg. No fim, quase como uma profecia promete com o seu sorriso incrível: “A verdade vai vencer.” No Fórum do Futuro, que decorreu na semana passada no Porto, falou sobre uma nova colonização que, afinal, é como a antiga.
Eis a entrevista.
Nesta conferência vai falar sobre colonização. Isto tem que ver com o seu livro mais recente?
Sim, e não só. O livro é desencadeado por algumas perguntas. A primeira surgiu quando, na Cimeira em Paris [2015], Bill Gates e Zuckerberg estavam no palco e todos os jornais estavam a cobrir mais o que eles estavam a dizer do que o resto. Percebi que algo estranho tinha acontecido no mundo, onde estava a ver bilionários que não eram apenas iguais aos chefes de governo, mas que na verdade os substituíam. Foi nessa altura que decidi olhar mais de perto a ascensão dos bilionários.
Mas a sua luta não tem sido sobretudo contra a agricultura química?
Desde 1984 que me dedico à indústria química que veio dos laboratórios de Hitler e dos campos de concentração, e que nos trouxe os gases venenosos, e depois uma agricultura química e a chamada Revolução Verde. O meu país foi a primeira experiência da Revolução Verde com o Punjab e agora é uma terra arruinada, os solos desapareceram, as águas desapareceram. Escrevi um livro chamado a Violência da Revolução Verde. A dada altura, a antiga indústria química apareceu a dizer que precisavam de deter a propriedade das sementes porque não estavam a ganhar dinheiro suficiente a vender produtos químicos. E a única maneira de possuir as sementes é com as sementes geneticamente modificadas para que pudessem alegar que inventaram algo, pedir uma patente, cobrar royalties aos agricultores. Mas ninguém inventa a vida. Para mim, foi muito claro que havia um processo de colonização na base disto tudo.
Colonização?
Há dois anos, a Monsanto foi comprada pela Bayer e nós tínhamos levado a Monsanto ao tribunal para ser julgada pelos seus crimes. Fiquei pensando: o que é que está acontecendo? Porque é que a Bayer está comprando a Monsanto? Começamos a olhar para os padrões de propriedade, para os acionistas… e este meu novo livro é sobre como as empresas foram criadas para colonizar o mundo. A maioria das ações não pertence a indivíduos, mas às empresas de gestão de ativos dos maiores bilionários, como a BlackRock e a Vanguard. São empresas que valem triliões de dólares e que estão a financiar a queima da Amazônia. Eles querem negociar as funções da natureza e isso chama-se “financeirização”. Portanto, já tinha duas coisas: uma era Bill Gates e Zuckerberg no palco, em Paris, com os chefes de Estado, e outra era a questão da Bayer a comprar a Monsanto. Então, percebi: este é um mundo novo, mas é o mundo antigo. Estamos perante os mesmos padrões da colonização.
Além de bilionário, Bill Gates é visto como um filantropo. Ele ajuda muitos países em África…
O que é que ele está fazendo? Uma Aliança para uma Revolução Verde em África. Os relatórios já mostram que 50% dos milhetes nutritivos desapareceram por causa da Revolução Verde em África. Bill Gates forçou a reescrita das leis de sementes para tornar ilegal guardar as sementes.
E qual é o objetivo?
Um monopólio de sementes, que ao mesmo tempo é um monopólio de produtos químicos. Terra nullius era a jurisprudência legal na época de Colombo e na época da colonização britânica. Ou seja, a terra está vazia, não pertence a ninguém. Então, primeiro declara-se uma coisa vazia, nullius.
Depois coloniza-se?
Primeiro justifica-se a exterminação para colonizar. As duas coisas têm de estar juntas. O vazio para o extermínio e para a colonização. Primeiro temos de esvaziar o lugar das pessoas originais para assumir o controle.
Como assim?
Agora, a jurisprudência falsa da invenção da vida, que é onde está a Monsanto e Bill Gates, é aquela que chamo de Bio nullius, a vida está vazia até colocarmos um gene tóxico nela. O último passo da colonização é o que chamo Mente nullius: a colonização de nossas mentes.
Vão esvaziar as nossas mentes?
A mente não está vazia. Qualquer coisa viva terá uma mente viva, mas você pode esvaziá-la. E toda a data mining que está acontecer é um esvaziamento da mente, tal como se usa uma broca para extrair petróleo.
Isso é assustador. É um plano do mal…
É um plano do mal, mas é um plano real. Os novos gigantes de dados digitais estão a minar a nossas mentes, a pegar nelas e a convertê-las na chamada “big data” vendendo-as de volta através do Facebook e WhatsApp e fazendo vigilância.
Essa é a sua luta agora?
Tivemos movimentos libertários para lutar contra a tomada de posse das nossas terras, contra tomada de posse dos nossos corpos, o movimento antiabolicionista por causa dos escravos, e nos livramos dessas coisas. Começamos a lutar contra as empresas de produtos químicos, o que chamo “cartel do veneno”, nos anos 80. Hoje, já conseguimos estabelecer no mundo que a agricultura ecológica é superior à química. O movimento que mais está a crescer no mundo é a agricultura biológica, apesar de toda a propaganda. Nós ganhamos, na prática.
Como se luta contra a colonização da mente?
A primeira coisa é recusar que sua mente seja usada, não participe da data mining, não participe na venda da mercadoria.
Sair das redes sociais?
Não. Use as redes sociais como ferramentas sob o seu controle. O seu controle. Não permita que eles a controlem.
Mas esse controle não está à vista…
A vigilância é intensa. E na Índia houve agora um enorme escândalo, onde mais de cem jornalistas, advogados de direitos civis e acadêmicos que trabalhavam para os dalits [os que se encontram no degrau mais baixo do sistema de castas na Índia, os “intocáveis”] tiveram os seus sistemas invadidos por um software de vigilância chamado Pegasus. Ou seja, não estou a falar sobre um cenário futuro, nem sobre o possível, mas sobre o que está a acontecer hoje. Definitivamente, a nível do governo, precisamos de uma regulamentação muito forte.
Por exemplo?
Precisamos de uma convenção sobre privacidade digital. Uma convenção global. E isso só acontecerá quando os movimentos crescerem, como o movimento para o direito ao esquecimento. Temos que encontrar novas formas criativas de liberdade, novas ações para a liberdade, novas solidariedades pela liberdade, mas só podemos evoluir se soubermos o que está a acontecer. Pessoalmente, acredito que os bilionários são desonestos, são ladrões.
Ladrões?
O que é que a Monsanto está fazendo? O que é que Bill Gates está fazendo? A receber impostos ou royalties das sementes que eram dos agricultores em primeiro lugar. Na Índia já perdemos 400 mil agricultores por suicídio por causa dos custos de sementes no algodão. A Monsanto fica furiosa quando eu falo nisto. Estamos falar de um genocídio. Precisamos de recuperar a nossa liberdade e dizer ao senhor Facebook “estes são os meus dados privados não são seus para vender à Cambridge Analytica”. Temos de recuperar as nossas comunicações, o nosso conhecimento, as nossas sementes, a biodiversidade, os alimentos. Não são propriedade destes piratas de hoje.
Alguma vez tentou falar com Bill Gates ou ele já a processou pelo que diz dele?
Não, ele nunca entrou com uma ação contra mim porque finge ser filantropo. E sabe que no dia em que me processar será exposto. Por isso, ele é que tem mais a perder se algum processo for aberto.
Como vê o futuro?
Temos uma bela frase indiana e que é o nosso slogan nacional e que se traduz em algo como “a verdade ganha”. Acho que a verdade ganha sempre. Não hoje, nem amanhã. Mas a longo prazo, não importa quanta propaganda se faça. A falsidade, as relações públicas, colonização, mitos… caem por terra. Já vimos impérios a ruir.
Bill Gates vai cair por terra?
Vai, mesmo que não se faça nada quanto a isso, mas é nosso dever defender a integridade e a liberdade. Não se pode construir um império tão grande num castelo de cartas. Parece que ele está sempre a ganhar, mas as histórias das suas mentiras, falsidades e derrotas nunca são contadas na imprensa, porque ele também controla os mídias.
Durante todos estes anos de ativismo já mudou de ideias acerca de alguma coisa?
A minha mente esteve sempre a evoluir. Mas não mudei os princípios fundamentais do meu pensamento. Que são: nós dependemos da natureza, não somos superiores à natureza. O antropocentrismo é uma ilusão, a minha tese em teoria quântica ensinou-me que tudo está ligado. Cresci com os valores do cuidado da natureza, da justiça e respeito por todos os seres. Nisso nunca mudei de ideias. Posso mudar tácticas.
Como vê este movimento iniciado por Greta Thunberg?
Conheci a Greta em Paris, ela quis me conhecer. E o mais interessante é que estavam a falar em ir para a Amazônia para salvar a Amazônia. E eu disse: não precisam ir para a Amazônia porque as pessoas que estão a destruí-la estão aqui mesmo, na Europa. É a Bayer, a Monsanto que estão a cultivar soja transgênica e tudo o que precisam fazer é parar essas pessoas e a Amazônia será salva.
Mas por que é que os jovens estão a protestar mais?
Eles conseguem ver onde tudo isto os poderá levar. Eles estão a testemunhar o colapso ecológico. Estas são crianças bem formadas, são privilegiados, estão lendo os relatórios dos cientistas, do IPCC, da convenção sobre biodiversidade. Quando eu comecei, estava apenas a proteger uma floresta. Estes jovens nascem numa época em que o planeta inteiro está a arder, é uma aceleração da destruição e eles estão assistindo a isso.
É só isso?
Não. O colapso ecológico é só uma parte. Eles estão olhando em volta. Vêem a decadência da sociedade. A Suécia, por exemplo, sempre foi uma sociedade tão pacífica e agora a ala direita está a dominar em todo o lado, criando ódio. Ninguém sabe qual é a escola que vai ser alvo de violência, qual a mesquita que será queimada. Mas há também a questão do seu destino, não apenas ecológico, mas social e econômico. Voltando aos bilionários, Mark Zuckerberg fez um discurso na Universidade de Harvard no ano passado e disse claramente que é uma inteligência artificial tornará 99% das pessoas redundantes no futuro. Os jovens estão a receber essa mensagem e a perceber que a narrativa tecnológica está a dizer que eles não importam.
A sua luta não é vamos usar a tecnologia para salvar o planeta, mas vamos atacar a tecnologia para salvar o planeta…
Não, não digo isso. O que digo é: vamos salvar o planeta destruindo o mito de que a tecnologia é uma religião que não pode ser questionada. É claro que isto tudo é sobre o planeta porque fazemos parte do planeta, mas também é sobre justiça humana e direitos humanos. E porque nós, como seres humanos, somos os que estamos a ser divididos, trata-se de encararmos a nossa humanidade com a sua diversidade. É sobre encontrar a unidade novamente.
Posso pedir-lhe um último comentário sobre a situação na Índia hoje em dia com a crise da cebola e as notícias sobre os elevados níveis de poluição?
É feito para parecer uma coisa grande porque o alto preço das cebolas afeta a classe média, mas tivemos outras crises. Não estou a dizer que não há uma crise da cebola, mas há outras crises e mais graves, onde os agricultores estão morrendo. Nenhum agricultor morre por causa dos preços crescentes da cebola. Nenhuma pessoa da cidade morre por não ter cebola nas suas refeições, é muito fácil cozinhar sem cebola. Quanto à poluição, é terrível, mas não são os agricultores de Punjab que são a única causa de poluição com a queima do restolho. As causas da poluição são os nossos carros, a destruição de prédios para mais construção. Estas são histórias complexas, mas elas transformam-se sempre em linhas nas notícias, para uma agenda oculta.
14 Novembro 2019