Futuro do trabalho diante o desmonte do Estado
As tecnologias e seu papel na economia, não é um assunto de determinismo tecnológico, mas do seu controle e aplicação em benefício da maioria.
- Análisis
Artigo publicado em espanhol na Revista América Latina en Movimiento No. 543: Tecnologías: manipulando la vida, el clima y el planeta 06/09/2019 |
As inovações tecnológicas são apresentadas inicialmente como processos que melhoram as condições de vida, diminuem o tempo de trabalho e aprimoram o desenvolvimento. As transformações ocorridas a partir da revolução industrial em suas diversas etapas trouxeram assim como avanços, mudanças radicais na estruturação do trabalho e nas suas formas de organização. Ao mesmo tempo que postos de trabalho deixaram de existir muitos outros foram desenvolvidos e houve um salto nas condições de vida em parte importante da população.
Na atualidade vivenciamos mais uma transformação no modelo de produção e econômico que coloca novos desafios para as formas do trabalho. Apresentada de diversas formas como 4ª revolução industrial ou indústria 4.0, o modelo caracterizado pelo acelerado processo de automação e digitalização da economia, robótica avançada e uso intensivo de bio e nanotecnologia traz, diferentemente das outras “revoluções” produtivas, um novo aspecto que é a velocidade na que se desenvolve e que, frente à falta de regulamentação que acompanhe o seu ritmo, aumenta a desigualdade em níveis também antes não vistos. As tecnologias, por si mesmo, não são o problema, mas sim a lógica que impulsiona sua introdução.
O PIB do mundo se triplicou nos últimos 40 anos, porém os ganhos para a população como um todo não tem sido uma consequência. Dados da OIT1 mostram que em 2018, no mundo, 172 milhões de pessoas estavam desempregadas, mas que apesar da diminuição em comparação com o ano anterior as condições de trabalho não melhoraram.
A mesma pesquisa aponta que mais de 3,3 bilhões das pessoas empregadas não tinham níveis adequados de segurança econômica, bem-estar material ou oportunidades para avançar, alertando que os empregos gerados com a digitalização são cada vez mais precários, temporários e com pouca possibilidade de negociação de direitos.
Quanto à desigualdade, a Oxfam2 aponta que 1% da população no mundo, concentra a riqueza de 99%. Desigualdade que se encontra determinada por região, sexo, idade e raça. Enquanto trabalhadores europeus se adaptam, não sem perdas, a este novo processo do mercado de trabalho, os países do Sul Global enfrentam a falta de acesso às tecnologias e internet colocando uma distância abissal frente ao tipo de benefícios e capacidades para participar desta nova economia.
Divisão internacional do trabalho ainda mais desigual
Uma questão determinante no processo de acúmulo do capital e ligado diretamente a esta nova distribuição são as cadeias globais de produção, onde existe uma divisão clara entre países que concentram tecnologia de ponta, desenvolvimento de produtos de alto valor agregado e concentração de “propriedade intelectual” e outros países relegados a uma baixa agregação de valores à sua produção, baixa capacidade de inovação tecnológica e resignados a apenas reproduzirem ou ensamblarem produtos e equipamentos.
Esse modelo se caracteriza por uma produção fragmentada em diversos países, sendo conduzida por uma empresa matriz, geralmente transnacional com sede no Norte Global, que se encontra distante de onde são produzidos e/ou comercializadas as mercadorias. A publicação Cadeias Globais de Produção e Ação Sindical da Confederação Sindical de Trabalhadores/as das Américas – CSA mostra como 20,6% do trabalho global faz parte das longas Cadeias de produção3, onde maioria da mão de obra não é reconhecida pelas empresas matrizes, desconhecendo os direitos de milhões de trabalhadores ao redor do mundo.
Dentro desse mapa da divisão internacional da produção, quais são os empregos e suas características para países latino-americanos? 95% da mão de obra de 25 multinacionais com atuação na América Latina (El Salvador, Panamá, Costa Rica, Brasil, Argentina) é de trabalhadores ocultos. Sendo que por cada emprego direto existem 17 trabalhadores ocultos fazendo parte destas cadeias.4
De fato, nossa região em particular continua aprofundando sua especialização como fornecedora de matérias-primas de origem mineral ou agrícola, situadas nas fases iniciais das Cadeias, ao mesmo tempo em que perde peso nas etapas de maior elaboração, situadas nas fases superiores.
Ao estruturar grandes Cadeias de Produção, as empresas transnacionais conseguem deslocar os encargos sociais, ambientais, trabalhistas e as ameaças para a instituição para os últimos elos da Cadeia, que são as empresas locais situadas nos países do Sul, enquanto os principais benefícios se concentram nas mãos das matrizes, normalmente no Norte, mas não somente: países como Brasil e México também são sedes dessas matrizes.
Precarização de direitos como tendência
Estudo5 da OIT aponta que entre 2008 e 2014, 110 países passaram por reformas legais para fragilizar a legislação trabalhista, aumentando jornadas de trabalho, favorecendo contratações temporárias, a demissão coletiva e interferindo nas negociações coletivas e formas de contratação.
As reformas em andamento no Brasil desde 2016 se encontram fora do período da pesquisa da OIT, mas se enquadram nesse mesmo recorte de retirada dos direitos conquistados historicamente, favorecendo assim uma maior precarização do emprego, a terceirização, ataques à organização sindical.
Frente a uma mudança cada vez mais veloz nos modos de produção, e aumentos do nível de desemprego estas mudanças apontam um futuro pouco promissor para a classe trabalhadora caso não sejam reformulados estes padrões e seja feita uma adaptação da legislação acorde com as novas características que permita garantir a manutenção de direitos e proteção de trabalhadores.
O Brasil neste contexto
Dentro deste quadro a realidade brasileira se agrava frente aos retrocessos em andamento desde 2016 com a destituição da presidenta Dilma Rousseff do cargo, e os governos Temer e Bolsonaro caracterizados pelo desmonte de políticas sociais e trabalhistas, assim como um investimento cada vez menor em tecnologias e a priorização de economias primárias coloca uma perspectiva no mínimo desafiadora para se pensar o futuro do trabalho no país.
Dentro da economia mundial o Brasil aprofunda seu papel como um grande exportador de commodities minerais e agrícolas que, tendem cada vez mais a se caracterizarem por um alto grau de automação e robotização com pouca geração de emprego e cada vez mais gastos energéticos e de recursos naturais.
Esta realidade transfere não só trabalhos mais precários para estas regiões como modelos econômicos baseados na primarização e exportação de baixo valor agregado e comumente de alto custo ambiental e social.
Frente a uma política de Estado que deixa de priorizar investimentos em pesquisa e tecnologia e diversificação da economia, trabalhadores ficam vulneráveis a uma dinâmica de mercado cada vez mais cruel e agressiva. Em tempos de disputa mundial pelo controle dos ganhos obtidos a partir da alta especialização da economia, o projeto de governo que hoje exerce o poder no Brasil, atrelado ao ultraliberalismo internacional, renuncia de forma subserviente às possibilidades de obter benefícios das novas tecnologias para o desenvolvimento do país.
O papel do Estado e a democracia
Estados fortes e democráticos são fundamentais frente a uma dinâmica econômica cada vez mais veloz e que aprofunda as desigualdades. Por outro lado, políticas sociais e econômicas, que garantam direitos e possibilidades de competitividade mais justas, precisam ser incorporadas no atual processo de transformação, como forma de compensação ante as aceleradas mudanças no mundo do trabalho. A questão das tecnologias e seu papel na economia, não é um assunto de determinismo tecnológico, mas do seu controle e aplicação em benefício da maioria da população. O Sul Global no geral tem pouca participação neste debate, coberto pelas economias desenvolvidas e, especialmente, pelas grandes empresas transnacionais.
Não tendo o protagonismo nesta disputa, nossas economias e países reforçam o papel outorgado na distribuição internacional do capital como fontes de matérias primas, provedor de energia e mão de obra barata.
Na tendência do desmonte acelerado das capacidades de regulação e controle por parte das instituições do Estado no Brasil, a população trabalhadora se encontra sem mecanismos de proteção e defesa. O setor privado brasileiro, maior beneficiário do golpe judicial, legislativo e midiático, desde 2016 tem recebido benefícios de diversos tipos (tributários, perdão de dívidas com o Estado, facilitação e incentivo na privatização das empresas públicas, entre outras), além de ser principal promotor das contrarreformas trabalhistas implementadas pelos governos Temer e Bolsonaro.
Neste contexto também tem se incrementado a tendência ao desconhecimento dos mecanismos de intermediação social construídos desde a redemocratização, assim como a criminalização das diversas formas de organização social no campo e na cidade.
Transição justa como estratégia sindical na disputa frente às mudanças no mundo do trabalho
Diante um contexto de ataques, mas compreendendo a urgência de ações para o seu enfrentamento, a bandeira sindical da transição justa pode ser entendida como um caminho possível e necessário para responder a um quadro inicialmente devastador para o emprego na atualidade.
Numa perspectiva de mudança do sistema de produção e nas formas de emprego, um debate que apresenta certas semelhanças em relação aos impactos na classe trabalhadora é o de mudanças climáticas e as transformações para uma economia de baixas emissões de carbono.
Ambas, a indústria 4.0 e a economia de baixo carbono trazem no seu centro mudanças que envolvem alto uso de tecnologias com substituição de modelos que impactam num grande número de trabalhadores, o que traz desafios enquanto às respostas necessárias e urgentes para os/as trabalhadores/as envolvidos.
Pela transição justa defendemos uma política envolvendo Estados, empresas, trabalhadores e comunidades impactadas, onde seja garantido que a classe trabalhadora não seja responsabilizada pelas transformações necessárias ou implementadas para uma nova economia e pelas dívidas sociais de empresas, que não estão dispostas a uma transição socialmente justa.
Esta política deve envolver a qualificação de trabalhadores para as novas tecnologias e a requalificação e inserção de trabalhadores de setores que serão transformados ou deixarão de existir, garantindo a participação de sindicatos e comunidades na formulação das políticas desenvolvidas, incluindo perspectivas como de gênero, raça e geracional. Procurando a geração de novos e melhores empregos sob as bases do trabalho decente e respeito à organização sindical.
Se essa realidade e necessidade não forem observadas, veremos as novas tecnologias ampliando ainda mais o abismo entre a precarização e miséria sistêmica da classe trabalhadora e mínimas condições de desenvolvimento sustentável e dignidade humana. Se pudermos ter controle social na implementação dessas novas tecnologias, poderemos criar trabalho de qualidade, com redução nas jornadas de trabalho e melhorias nos parâmetros de saúde e segurança laboral.
- Daniel Gaio é sociólogo, Mestre em Políticas Públicas da Educação na Universidade de Brasília. Bancário da Caixa Econômica Federal, Dirigente da Confederação dos Trabalhadores do Ramo Financeiro (Contraf-CUT) e Secretário Nacional de Meio Ambiente da Central Única dos Trabalhadores (CUT).
1 OIT, 2019. Perspectivas sociales y del empleo en el mundo: Tendencias 2019. Disponível em: https://www.ilo.org/wcmsp5/groups/public/---dgreports/---dcomm/---publ/documents/publication/wcms_713013.pdf
2 Oxfam Internacional, 2016. Uma Economia para o 1%. Disponível em: https://www.oxfam.org.br/sites/default/files/arquivos/uma_economia_para_o_um_por_cento_-_janeiro_2016_-_relatorio_completo.pdf
3 Confederação Sindical de Trabalhadores/as das Américas, 2018. Cadeias globais de produção e ação sindical. Cartilha didática. Disponível em:
http://csa-csi.org/Include/ElectosFileStreaming.asp?FileId=4830
4 Confederación Sindical Internacional, 2017. Escándalo Exportando codicia a través del Canal de Panamá. Disponível em: https://www.ituc-csi.org/IMG/pdf/frontlines_scandal_2017_es.pdf.
5 ILO, 2015. Labour market reforms since the crisis: drivers and consequences / Dragos Adascalitei, Clemente Pignatti Morano; International Labour Office, Research Department. Geneva: (Research Department working paper; No. 5) Disponível em: https://www.ilo.org/wcmsp5/groups/public/---dgreports/---inst/documents/publication/wcms_414588.pdf
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