“Marxismo cultural”: a pós-verdade no palco da crise mundial capitalista (parte II)

01/08/2019
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Pintura: Osvaldo Guayasamín
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Continuando o tema da coluna passada, segue um breve panorama das três principais correntes de conhecimento que disputam espaço no mundo contemporâneo do pensamento e da ação política.

 

Decadência da modernidade: progresso técnico não leva ao progresso humano

 

Ao final do século XIX, alguns grandes pensadores como Nietzsche, Freud e sobretudo Marx (os “mestres da suspeita”, segundo Paul Ricoeur), com seu implacável poder de questionamento das ilusões da consciência, negaram ao homem moderno o estatuto de “centro do mundo” e “senhor da razão”. Apontaram as falhas e as imperfeições humanas, a animalidade e covardia que se oculta em tantos de seus atos.

 

Suas críticas são uma recusa do “cientificismo moderno”, pensamento técnico-progressista que se consolida e desenvolve na modernidade capitalista, como oposição ao misticismo e fanatismo religioso que sustentava o poder da aristocracia europeia.

 

No caso de Marx, que de longe é quem mais aprofunda essa crítica à modernidade, ele denuncia a iniquidade social, alienação e violência implícitas nas formas de produção moderna, em que poucos privilegiados exploram o trabalho da imensa maioria de seres humanos. Acusa a mesquinhez adornada de “progresso” com que se corrompia a então vitoriosa sociedade burguesa ocidental.

 

Já no século XX, duas irracionais guerras capitalistas (ilógicas mesmo com relação aos lucros então visados) levaram o Ocidente a um dos mais baixos escalões de humanidade experimentados na história, arrastando consigo grande parte do planeta (que era então subjugado ao militarismo, cultura e ideologia europeias).

 

Tais fenômenos acabaram por expôr ao mundo – até mesmo aos liberais menos torpes – a insuficiência do cientificismo moderno, que acaba por entrar em descrédito. Provas da decadência deste pensamento burguês e de sua sociedade foram e são inúmeras: da carnificina da I Guerra e as atrocidades da II Guerra, aos regimes de apartheid (dos eurodescendentes sul-africanos ou dos judeus-brancos israelenses); ou ainda, para olharmos a catástrofe de hoje, a paradoxal crise de fome de 2007-2008, em que a sociedade administrada pelo capital atinge (segundo dados da FAO-ONU) o número trágico de “um bilhão de famintos” – possivelmente a maior das calamidades já registradas na história.

 

Uma outra face violenta da sociedade burguesa ocidental (que explicita seu declínio) é a crise econômica “estrutural” do capitalismo. Crise agravada a partir dos anos 1970, explode no centro do sistema (EUA) em 2008, e a partir daí infecta as economias e sociedades de todo o mundo.

 

Vale frisar que esta crise é um problema das “estruturas”, das “regras” que regem o regime, ou seja, é uma crise da própria lógica irracional capitalista – e não um processo “cíclico” (ainda que haja, em paralelo a essa crise estrutural, também as crises cíclicas, que ora emergem, ora se apazíguam).

 

Como exemplo de problemas “estruturais”, veja-se que, devido ao intenso progresso tecnológico, o emprego tende a escassear, piorando paulatinamente o já tenso desequilíbrio social (fenômeno que é incontornável dentro da lógica capitalista). Do mesmo modo, a competição liberal leva também a uma pilhagem cada vez maior dos recursos naturais (finitos!), o que tende a aumentar os conflitos sociais e a insalubridade.

 

Diante desse processo de crise, em que os caminhos da sociedade não acenam a nenhuma solução plausível, os donos do mundo, antes “cientificistas”, passam também a flertar com a relativização da verdade (pós-verdade) – como forma de desviar a atenção do povo quanto à realidade, aos reais motivos da agonia social que o aflige.

 

Do outro lado do fronte social, o marxismo (socialismo contemporâneo) – resiste e se movimenta em seu projeto de conscientização (desalienação mental) e de superação do modelo abjeto de sociedade que é o capitalismo, especialmente em sua versão “neoliberal”.

 

Vejamos então, brevemente, as linhas gerais que caracterizam estas três grandes correntes do pensamento atual: o cientificismo moderno, o marxismo e o relativismo pós-moderno.

 

Cientificismo: o progresso técnico acima do ser humano

 

A título de ilustração, pode-se entender o cientificismo moderno como aquela doutrina típica de cientistas, engenheiros ou intelectuais “puros” (os tais “bons naquilo que fazem”), sejam eles alienados ou mercenários. São intelectos alheios à sociedade em que habitam, enclausurados em frios laboratórios (tantas vezes pertencentes ou patrocinados por grandes corporações), com seus moderníssimos aparatos de medição experimental; os experts, profissionais especializados que visam, mediante suas pesquisas pragmáticas (no sentido monetário), quase sempre resultados imediatos, ou seja: “produtos” que gerem, não desenvolvimento humano, mas lucro rápido. São também classificados como “positivistas” (no sentido amplo do termo), dada sua pretensão de obter supostas “certezas infalíveis” (ou “verdades positivas”).

 

Trata-se uma espécie de crentes no deus-metal, no deus-fama; embora os mais tolos ou filantropos sejam ainda devotos da ilusão iluminista de que a crescente “exatidão” das ciências deverá “um dia” ser traduzida em melhorias para a humanidade.

 

Ignoram porém a realidade histórica, ou dela desviam seu olhar. Desprezam evidências que mostram que essa “evolução científica”, não domada nem planejada segundo propósitos realmente “humanos” (mas sim gananciosa por lucro e poder), nos está conduzindo a uma catástrofe: ao desemprego crônico (profissões que desaparecem, terras que se tornam latifúndios ou áreas de mineradoras); e à destruição do meio ambiente (pois a natureza é vista, não como espaço que proporciona a vida, mas como mero recurso material a ser extraído).

 

Um modelo de “progresso” meramente “técnico”, mas alheio ao efetivo desenvolvimento do ser humano (que deveria ser o foco de todo progresso).

 

Assim, o desenvolvimento do modelo capitalista de produção nos conduz velozmente a um maior subdesenvolvimento: a guerras e miséria em abundância.

 

Como oposição a esse estreito pensamento cientificista, que sustenta tal forma de (des)organização social, no fim do século XIX surgem duas correntes de pensamento que contestam o discurso burguês moderno e seu “perfeccionismo” (tão perverso quanto ingênuo).

 

Marxismo: a concepção dialética da história

 

A primeira e mais forte destas correntes nascentes é a concepção dialética da história, também dita materialismo histórico ou marxismo, dentre outras denominações como comunismo internacionalista, ou socialismo “científico” (no sentido de ser uma filosofia não abstrata, que não flutua etérea acima dos conhecimentos empíricos, mas que é pautada pelas ciências, ancorada na história).

 

Com seu olhar sempre posto na história, o socialismo marxista supera o anterior socialismo “utópico-idealista” (Robert Owen, Saint-Simon, Fourier, etc). Refuta as abstrações idealistas e politicamente passivas destes socialismos anteriores, que apenas idealizavam uma sociedade com igualdade de direitos, sem nada de prático proporem para sua efetivação real.

 

Já o marxismo, sendo uma filosofia da práxis (pensamento combativo que visa transformar coletivamente a sociedade), parte da crítica da realidade histórica “concreta”: analisa as contradições, conflitos, injustiças, desigualdade e a consequente miséria humana causada pelo modelo burguês de sociedade moderna.

 

Sua perspectiva de compreensão do mundo (da realidade que deve compreender para poder transformar), é tanto “materialista” como “histórica”, pois que recusa explicações a partir de superstições, de supostas soluções perfeitas, ou de providências divinas, centrando-se na interpretação dos fenômenos da história.

 

Trata-se de uma forma de conhecimento vinculado à ação social coletiva: um pensamento de “práxis”. Seu objetivo é investigar a realidade histórica como um todo, a partir do estudo das relações entre cada uma de suas partes, e em suas variadas faces (social, econômica, cultural, política), dando especial atenção aos conflitos e oposições de interesses, às relações “dialéticas” que existem entre as classes sociais: os patrões-proprietários, os empregados altos, os médios, e os trabalhadores – frações da sociedade capitalista em perene e desigual combate, nessa guerra suja que se usa ora de armas, ora de meios coercitivos não diretamente armados (grande mídia, leis).

 

Em suma, o intuito fundamental dos marxistas – em sua grande variação de matizes – é a superação da atual “sociedade de escassez na abundância”, rumo a uma sociedade em que os homens possam desenvolver sua plenitude de potenciais, realizando-se enquanto seres de fato “humanos”.

 

Relativismo: a origem do irracionalismo pós-moderno

 

Outra corrente que contesta, ainda que parcialmente, o cientificismo moderno em decadência, é a concepção relativista, linha de pensamento que depois seria abduzida pelo sistema, e de cujas entranhas se gera o atual “pós-modernismo” – com suas vertentes mais estúpidas que relativizam qualquer possibilidade de efetivo conhecimento (caso do irracionalismo reacionário defensor da pós-verdade).

 

Promovida por parcela intelectual da própria burguesia, essa doutrina surge como antídoto filosófico contra as falhas do pensamento burguês anterior (o cientificismo, alicerce da evolução capitalista). Mas não tardaria em mostrar sua maior “utilidade” às classes dominantes, passando a ser impulsionada artificialmente contra a “perigosa” ascensão do marxismo.

 

Começa a angariar forças no instante em que o comando do capital percebe a decadência do seu modelo cientificista ingênuo, ou seja, quando constata o declínio do ideal moderno de “progresso técnico” que por séculos sustentou a ideologia burguesa: com sua falaciosa ideia de um “desenvolvimento” restrito somente à produção material, mas que jamais se cumpriu, sequer minimamente, enquanto efetivo “progresso social”.

 

Em seu processo de “relativização” da perspectiva cientificista estreita (com suas respostas rígidas, imóveis), o relativismo traz certa riqueza ao pensamento humano, e inclusive ao marxismo – caso da contribuição dos “pós-estruturalistas”, que leva o conhecimento contemporâneo a ter uma maior atenção às demandas das minorias sociais (movimentos negro, indígena, feminista, homossexual, de imigrantes, etc).

 

Contudo, sendo levado ao extremismo da estupidez, a partir da segunda metade do século passado, a visão relativista pós-moderna se reduz à tal pós-verdade: a recusa mística (e interesseira) de qualquer conhecimento concreto, histórico ou mesmo natural (ideia propagada especialmente em tempos de crise – vide Trump e Bolsonaro).

 

As três grandes correntes do conhecimento na atualidade

 

Em síntese, são estas as três principais linhagens cognitivas que guiam a filosofia e a ciência praticadas no século XX e XXI:

 

– o cientificismo (renovado no início do século XX como “neopositivismo” ou “filosofia analítica”, projeto que reduz interessadamente o espectro do conhecimento possível);

 

– o relativismo (especialmente na sua facção “pós-moderna”, de meados do século XX);

 

– o comunismo marxista (pensamento alicerçado nos princípios da “dialética” e da “práxis”, e voltado à utopia real da liberdade e plenitude humana).

 

Estas três concepções de mundo são as que vigoram e detêm hoje as mais amplas parcelas do poder discursivo nos locais “produtores do saber”: universidades, centros de pesquisa, laboratórios, etc – lugares que atestam, recusam e, sobretudo, que convencem a opinião pública sobre a suposta validade das teorias a serem tornadas “práticas” pelos poderes vigentes.

 

Marxismo: o efetivo pensamento contemporâneo

 

Contudo, há que se destacar que, dentre essas três correntes de pensamento, o marxismo é a única que pode ser considerada efetivamente “contemporânea”, já que somente ela propõe sentidos, soluções para a superação desse modelo fracassado de modernidade.

 

Primeiramente, porque supera as deficiências do cientificismo moderno, a saber: o raso progressismo burguês que tem por pretensão divinizar o conhecimento “mensurável”, “calculável”, recusando qualquer estatuto de “saber” ao conhecimento humano (social, econômico-político, histórico) e filosófico-ético, cujo valor não se mede com aparatos mecânicos, mas só se comprova na complexidade da história vivida e comparada.

 

E por outro lado, porque o marxismo não se abstém de propor saídas palpáveis para a crise, para a construção da nova civilização, para o novo homem – sugerindo ferramentas bastante concretas para que obtenhamos tal utopia concreta – ao contrário do niilismo pós-moderno que, com sua inação, com sua descrença na razão e seu desprezo pelas estruturas que comandam nossas vidas, acaba por apoiar a manutenção das injustiças e privilégios.

 

Tática dos donos do poder: cientificismo nas armas e pós-modernismo na cultura

 

Apesar disto, na atualidade o marxismo está ainda longe de se alçar como “a mais forte corrente cultural” (como falsamente propagado pela atual aliança neoliberal-fascista), pois as instâncias de planejamento econômico, produtivo e militar são meios ainda controlados pelo cientificismo conservador das grandes corporações e Estados imperiais, enquanto o âmbito da cultura vem sendo lançado há décadas no poço sem fundo do nonsense pós-moderno (como se vê em grande parcela da produção das artes e mesmo da academia).

 

Em suma, tanto o cientificismo (com sua estreita visão de mundo), como seu falso antípoda, o pós-modernismo (seita irracional desprovida de deuses e moral), não passam hoje de pensamentos superados nos meios do saber que respeitam a vida e levam o conhecimento humano a sério. E se estas doutrinas detêm ainda tanto poder, isto se dá artificialmente, motivado por interesses de uma minúscula fração de privilegiados que investem fortunas para que tais teorias arcaicas permaneçam em posição de absoluta hegemonia cultural.

 

Este é o lugar confortável que os donos do mundo reservam aos intelectuais e artistas submissos, ajoelhados ao sistema, cujas pesquisas e (especialmente) as “soluções” interessam aos sócios do imperialismo.

 

https://www.alainet.org/pt/articulo/201351
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