Dom Pedro Casaldáliga: Luta e Vida pelos povos da terra

O exemplo de Dom Pedro deixou raízes profundas no povo que com ele participaram do processo de luta de libertação dos povos da terra.

25/07/2019
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Dom Pedro Casaldáliga
Foto: CEBI
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Em julho de 1968, movido pela Teologia da Libertação, desembarca do caminhão após viagem de 7 dias, o padre Pedro, espanhol da Catalunha, da ordem Claretiana, para ser padre da região de São Félix do Araguaia, no Mato Grosso. Região de conflitos de terra, escolhida por padre Pedro para a sua ação pastoral a favor dos pobres e oprimidos.

 

O Papa Paulo VI cria em maio de 1969 a Prelazia e de 1970 a 1971 Pedro foi o responsável, administrador apostólico de uma região de 150 mil Km quadrados. Na região com grande concentração de terras, se depara com miséria extrema, exploração do homem do campo e condições de vida absolutamente inaceitáveis. Em 1971, apesar de relutar, foi sagrado bispo, por insistência de D. Tomás Balduíno. Nesta ocasião, escreveu uma carta afirmando seu compromisso pastoral com os povos do campo “Uma Igreja da Amazônia em conflito com o latifúndio e com a marginalização social”, a qual foi divulgada no país e no exterior. Em plena ditadura militar, D. Pedro gritou ao mundo a realidade injusta do interior do país. Desde o início demonstrou muita coragem e rebeldia. Sua sagração deu-se numa pequena igreja à beira do Araguaia e desde esse momento não usou nenhum símbolo episcopal, mitra, anel de ouro…, o que causou grande impacto no Brasil e na Espanha.

 

Vivia de maneira austera num casebre, se vestia de forma simples com calças e camisas que ele mesmo lavava. Muitas vezes cozinhava para si e para os hóspedes.

 

Sua inserção na região foi muito profunda e perene. Logo na primeira semana de São Félix do Araguaia, recebeu em sua porta 4 crianças mortas em caixas de sapato. Sua indignação ultrapassou limites, selou seu compromisso definitivo com o povo do campo marcado pela rebeldia constante do Bispo dos “Pés Descalços” pela libertação de seu povo.

 

Paulo Freire a inspiração do trabalho de educação popular

 

Desde sua ida para São Félix do Araguaia, convidou clérigos e leigos que quisessem fazer parte do trabalho da Prelazia. Sacerdotes, freiras, diáconos, educadores, professores, profissionais liberais, técnicos especializados de diversas profissões foram convidados a fazer parte deste desafio. Desafio de lutar por justiça, formação e construção de outro mundo possível para os posseiros, homens e mulheres do campo, espoliados em seus direitos e sem acesso a recursos públicos que garantissem condições básicas de trabalho digno, saúde, moradia, vida…

 

“Dom Pedro tinha uma visão muito clara, a luta pela terra não é uma coisa só da Prelazia, mas é todo um conjunto. Articulou-se com Dom Tomás Balduíno, CPT – Comissão Pastoral da Terra, CNBB –Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, UNICAMP, UNESP, Rio de Janeiro. Trabalho de muitas mãos, de muitos corpos… Eu participava de um grupo de Igreja em Campinas, quando eu conheci o Canuto e grupo de seminaristas claretianos que foram convidados por Dom Pedro para ir para o Araguaia. Ele ainda não era bispo e viu a carência enorme na educação. Isso é interessante porque Dom Pedro não construiu primeiro a igreja, mas um colégio. Para ele, fazer um trabalho de evangelização decente era necessário fornecer ao povo o instrumento que precisavam: leitura, escrita, uma educação digna. Eu estava ligada ao grupo de ex seminaristas, fui para o trabalho de educação, no primeiro grupo, no Ginásio Estadual do Araguaia – GEA”. Eunice

 

“Aos 20 anos, em julho de 1985, fui de carona para a região do Araguaia porque fiquei sabendo pelo meu pai que era posseiro lá, que precisavam de professor para trabalhar com educação básica. Apesar de não ser professor, fui para lá. Eles precisavam de muita gente, lá não tinha professor, fiz um teste, fui aprovado e passei a ter contato com professores de lá a Águeda, a Lucinha e me envolvi com as questões da carreira da educação e também com as questões políticas que aconteciam no Araguaia. As coisas eram todas entrelaçadas, a educação, a saúde, questões políticas da resistência e de luta e conquista pela posse da terra” João – 54 anos

 

“Fui para o Araguaia em 1977, em plena ditadura militar. Eu era militante da UNE clandestina, na resistência pelas lutas democráticas. Tinha essa ideia de contribuir, da revolução,  mas o que realmente me fez ir para a Prelazia foi a paixão. Tinha me apaixonado pela Fernanda, uma antropóloga folclorista que tinha um desejo imenso de morar entre camponeses indígenas na Ilha do Bananal”. Cascão – 67 anos

 

“Com 20 anos eu fui trabalhar como contadora na Prelazia a convite do Canuto, numa cooperativa de posseiros. Fiz também concurso na educação e passei, eles precisavam de professora dentro da escola. Casei-me, tive meus filhos. Trabalhei na rede pública o tempo todo. Ir lá para a Prelazia foi tudo”. Terezinha -74 anos

 

A ousadia de toda uma equipe

 

A equipe da Prelazia constituiu-se em uma verdadeira comunidade, os desafios cotidianos no enfrentamento da realidade, movidos pelo “Ver, Julgar e Agir” eram partilhados entre todos.

 

“Madalena e eu fomos para a Prelazia em 1973 e lá formávamos equipes a que Jesus chamava de comunidades. Comunidade não só de religiosas, padres, leigos e irmãs religiosas vivendo na mesma casa. Lá aprendemos a verdadeira partilha. Cada um tinha o seu salário que era colocado numa caixinha e repartido. Eu era enfermeira e Madalena ajudava na educação de adultos com os princípios de Paulo Freire. O padre cuidava mais da parte sacramental mas também acompanhava os problemas da terra. Era uma equipe muito integrada. Eu cuidava mais dos doentes numa região que não tinha médico. O mais próximo estava a 300 kms ao norte de São Félix e 250 kms de Xavantina, em estrada de chão, às vezes com chuva e muita malária naqueles tempos… O que era interessante era a integração nossa no trabalho. Eu trabalhava na saúde, outros na educação, outro trabalhava na criação de sindicatos de trabalhadores rurais que naquele tempo não existiam. A gente se reunia e partilhava tudo, todos os desafios eram comuns, tudo no mesmo rumo. Era a igreja que tentava libertar a pessoa em todos os níveis, não só espiritualidade mas também corporalidade e para a pessoa ter acesso a uma vida melhor. A gente ajudava os posseiros a se organizarem para as lutas de defesa da terra contra os grileiros” Bia – 78 anos.

 

“Eu não tinha consciência política, fui prá lá em 1972, com espírito de aventura. Em 1973 fui presa, não tinha tido nem tempo de formação, eu não sabia nada de JEC e JUC (Juventude Estudantil Católica e Juventude Universitária Católica, movimentos da igreja comprometidos com as lutas por justiça. Eles perguntavam quem é Dom Pedro Casaldáliga? Ele tem foice? Depois eu fui tomando consciência da participação popular”. Terezinha – 71 anos.

 

“Fui parar na Prelazia através da Professora Maria Nilde Mascelani. Meu trabalho foi basicamente voltado para a educação, era uma das atividades baseada no Paulo Freire em todo o processo educacional. O povoado que eu trabalhei mais tempo foi o Rio das Mortes, onde tinha conflito de terra bastante grande. Com a educação e todo o trabalho com os alunos, com os pais e com as crianças. Alfabetizávamos em 3 meses e agora querem acabar com o Paulo Freire que para mim foi a vida. O sucesso deles aprenderem, do prazer de escrever, eles não acreditavam que eram eles que estavam lendo e escrevendo. Foi muito forte. Esse trabalho ajudou os homens e mulheres do campo a recuperar a terra com um processo judicial que a fazenda abriu contra eles. Fazíamos reunião na escola com os lavradores. A gente fazia reuniões secretas. Os fazendeiros estavam em cima e a gente ia com eles lá pro sertão. Dizíamos que era reunião da escola. Os professores iam para fazer comida para dar apoio para os posseiros. Isso resultou que eles ganharam a questão e os fazendeiros foram obrigados a sair judicialmente”. Judite – 78 anos.

 

“Juntamos os trapos e fomos nos somar à equipe pastoral de Dom Pedro que tinha uma horizontalidade e ecumenismo fantástico. A equipe tinha freiras, padres, leigos, ateus como nós e nas equipes pastorais até evangélicos”. Cascão – 67 anos

 

“Minha relação com a Prelazia é muito forte, de formação. O meu ser profissional, pessoal, foi constituído pela Prelazia. Sou de Araguaí de Goiás, mas fui para lá muito criança. Desde a minha adolescência que participo de todas as ações da Prelazia e isto foi constituindo meu mundo, minha história. Nestes tempos participei de um documentário, Matas Grossas, eu precisava escolher uma janela. Escolhi a janela de Dom Pedro Casaldáliga. Foi ela que me lançou para o mundo das causas sociais defendidas pela Prelazia de São Félix” Lourdes – 54 anos.

 

“Conheci Dom Pedro numa passagem por Rio Claro indo para o Mato Grosso, se instalar em São Félix. Ajudei ele carregar o caminhãozinho com os móveis para a casa dele e desde aí criou-se a expectativa, uma coisa que me atraía. Em 1969, eu fazia parte do grupo de seminaristas que foi expulso da congregação. Dom Pedro ficou sabendo e nos convidou” Luis

 

“Luis e eu nos casamos e voltamos para o Paraná. A idéia era que a gente se renovasse. Novamente Dom Pedro nos convidou para irmos para um trabalho na Aldeia dos Tapirapés, no município de Santa Terezinha. As irmãzinhas que trabalhavam lá pediram um casal, a região era um isolamento muito grande, só se chegava de avião ou de barco, dias e dias. Pessoas solteiras que tinham ido, não agüentavam o isolamento. A gente aceitou, com um filho pequeno. Pensamos que iríamos ficar só um pouquinho, 3 a 4 anos e a gente está lá até hoje. Isso foi em 1973, fomos para a aldeia conhecer o povo, conhecer a cultura e aprender a língua para iniciar o processo de alfabetização, criar o alfabeto indígena, iniciar o processo de alfabetização de adultos com o método Paulo Freire. Eles queriam escola porque estavam empenhados na luta pela terra, luta para conquistar o território demarcado. Até então, não havia necessidade de demarcação. Isto veio com o conflito que se instala com as frentes de expansão. Os posseiros achavam que a escola era capaz de fornecer instrumentos para esta luta. Montamos o processo de alfabetização com colegas que já tinham mais domínio (Antônio Carlos e Ilda), primeira pesquisa de temas geradores, palavras-chaves, slides. Estava tudo pronto e veio a repressão. Eles vieram com muita força, achavam que o grupo de São Félix era ligado à Guerrilha do Araguaia. Éramos jovens, alguns foram presos. Fugimos, tínhamos criança de colo, bebezinho ainda. Fugimos de canoa, cavalo, barco, depois de carro e fomos para Goiânia. Só ficaram as irmãzinhas. Fecharam o Ginásio que durou só três anos porque eram contra o trabalho que a gente fazia. Desde aquele tempo, educação não pode. Em 1973, a FUNAI (um braço da ditadura) começa a dar aula para as crianças, eles tinham outra linha de trabalho. Voltamos quando acalmou e a gente discutia com os Tapirapés. Eles tem um processo de discussão bonito, todos os dias. Espaço central, fazem um cerimonial no centro da aldeia. É um processo de discussão coletiva. Conversamos mostrando a eles que eles mesmos tinham mais condições de trabalhar com as crianças. Ficamos juntos, ajudamos e assim começou um trabalho de formação de professores indígenas. Quando chegamos, a população era de 120 pessoas, hoje tem 80 professores e a população é de 1200. Chegaram a uma redução de 50 pessoas. Hoje, a população é forte, a língua adquiriu um papel fundamental na educação, a língua é Tapirapé”. Eunice e Luis

 

“O trabalho de educação implantado pela Maria Nilde foi muito importante para toda a região. Ensino médio, magistério que incluía pessoas da zona urbana, rural e do sertão, sem essa preocupação com a escolaridade. Naquela linha de que todo ser humano tem seu saber, cultura. Pessoas com 4ª série, o saber científico e o popular podem se entrelaçar, conviver. O Projeto Inajá marcou toda a região. Até curso superior parcelado a UNIMAT assumiu no mesmo espírito” Eunice

 

“Sou religiosa, da Congregação Francesa da Divina Providência. Cheguei aqui no Brasil com 26 anos. Fui para Goiânia, queria trabalhar com os pobres, motivada pela encíclica populorum progressum… quando terminei o curso de enfermagem, o padre de Santa Terezinha, da Prelazia de São Félix, pediu ajuda de uma enfermeira. Fui em 1973, na região havia muito conflito de terra. A CODEARA (Cooperativa d e fazendeiros) estava querendo acabar com a propriedade de Santa Terezinha, expulsar o povo de lá, os posseiros de muito tempo, que estavam construindo um posto de saúde. Em 3 meses a CODEARA veio com os tratores destruir o posto. Os posseiros reagiram, não teve feridos mas 40 pessoas se esconderam na mata. Estavam com malária. Encontramos uma equipe trabalhando, o pessoal que havia chegado de Campinas, São Paulo, o padre Canuto e mais alguns jovens e a gente se integrou. Comecei o trabalho de saúde mas também ajudando as mulheres a colherem o arroz porque os homens estavam escondidos na mata. O povo precisava ser ajudado a defender as suas terras, eram posseiros de longa data, tínhamos que ir também para a roça”. “Tinha muitos doentes, não tinha médico, não tinha nada. Eles vinham do sertão muitas vezes com 40 graus de febre. Tinham andado 40, 50 kms a cavalo… aos poucos a gente deu fé que não adiantava cuidar só das doenças, elas voltavam. Fizemos cursinhos de saúde no sertão. Eu ensinava higiene, como se transmitem as doenças, como podemos evitar, primeiros socorros, como dar injeção pois eles não tinham nenhum preparo. Era uma região de peão, naquele tempo as fazendas eram desmatadas pelas pessoas mesmo, sem motosserra, na mão mesmo, trabalho escravo. Muita gente chegava para eu atender: cortada, baleada, acidentada de todo tipo”. Com as parteiras eu explicava que não queria fazer o trabalho delas, dava orientações de higiene para a criança não ter a doença do 7º dia, tétano umbilical. Elas usavam teia de aranha ou carvão para secar o umbigo… Elas me chamavam quando era um parto difícil e eu ajudava… Criamos comissão de saúde com animadores e pessoas que ajudavam com os remédios e nos cursos. Fazíamos slides, fotos com casas muito bonitas na cidade e casebres do sertão, água encanada e água de sítio, estradas com asfalto e estradas de chão para mostrar os contrastes. Com isso as pessoas tomavam consciência das desigualdades que existiam, na roça e no sertão. A comissão de saúde foi a Cuiabá para reivindicar posto de saúde… Este trabalho foi feito nos municípios de Porto Alegre do Norte, Santa Terezinha e em outras regiões que havia irmãs trabalhando. Fomos ampliando e formando redes com este trabalho da saúde”.  Bia -78 anos

 

“Em Ribeirão Bonito, quando deram tiro no padre João Bosco, cuidei dele para tentar salvá-lo. Fomos com dr. Luís para Goiânia, no banco de trás eu segurando soro à noite toda, naquelas estradas horrorosas, tinha chovido, para buscar um avião. Quando chegamos em Goiânia, ele foi internado mas o cérebro já tinha morrido, com uma bala que tinha estraçalhado… Depois quando eu trabalhava no Bico do Papagaio o padre Josimo que era nosso vigário foi morto. Ele foi baleado em Imperatriz, a gente ia para uma reunião na CPT – Comissão Pastoral da Terra, não tinha médico anestesista para operá-lo e ele morreu de hemorragia… fui testemunha de vários mártires, assassinatos de outras pessoas, lavradores que a gente conhecia. É por isso que a gente tem o compromisso de lutar. Estávamos tão próximas destas pessoas”. Bia – 78 anos.

 

“Formamos Fernanda e eu uma dupla de educadores populares e atuamos em várias frentes: na pastoral, na educação, na luta pela terra. Fernanda teve um foco mais ligado à CPT-Comissão Pastoral da Terra, como assessora sindical, na luta pela reforma agrária. Eu tive um corte mais voltado para a cultura, liderando a Companhia de Teatro Arroz com Abroba, onde fizemos várias peças falando da história da luta pela terra no Brasil, da história local. Acabamos depois de um tempo aportando em Porto Alegre do Norte, numa fase da Prelazia que foi a conquista de poderes locais. Em 1987, me elegi prefeito do recém emancipado município. Fernanda esteve junto comigo na administração municipal, na área de cultura e comunicação. Tivemos uma experiência fantástica, que se somou a várias experiências do PT, PCdo B e mesmo do MDB progressista, relatada no livro Democracia do Araguaia, em que radicalizamos a participação popular através de Conselhos, Assembléias Populares. Fizemos uma inversão de prioridades levando estradas, escolas, hospital para aquele Brasil profundo dos posseiros, a defesa dos indígenas. Um projeto revolucionário de outros companheiros prefeitos ligados à Prelazia em Santa Terezinha, São Félix, Canaranas. Fui alvo de um atentado e tivemos que sair da região (com 3 filhos pequenos). Elegemos um sucessor”. Cascão 67 anos

 

Raízes da Prelazia de São Félix do Araguaia

 

A vivência na Prelazia deixou marcas, transformou pessoas, criou subjetividades e valores que perduram pelo resto da vida. O exemplo, a liderança e o testemunho de Dom Pedro, do bispo de Pés Descalços deixou raízes profundas no povo e nas pessoas que com ele participaram do processo de luta de libertação dos povos da terra, raízes que se espalharam por este Brasil afora.

 

“Hoje estou na UNIMAT – Universidade do Mato Grosso e continuo como educador. Conseguimos com muita luta que a universidade fosse para o interior. Estou na graduação e na pós. Fiz mestrado em matemática e atua em programa de formação indígena”… “Minha família sempre teve ligação com a música, violão. A arte sempre fez parte da minha vida. Quando eu fui para o Araguaia passei a produzir junto com essa equipe, o Benone a criar, a cantar o que estava acontecendo lá. Nossas músicas cantam sempre a situação do Araguaia e das lutas”. João -54 anos

 

“Atualmente sou professor aposentado. Faço trabalhos voluntários, dei aula para refugiados sírios e nigerianos. Trabalho na igreja com um jornalzinho e articulamos com o bispo de Guarulhos um grupo de Fé e Política” – Piau 72 anos.

 

“Depois de um tempo de clandestinidade retomamos a vida aqui em Minas num projeto Araguaia Pão e Circo, que se desdobrou em Parangolé, Arte e Mobilização. Trabalho de arte na rua com vertente de mobilização social colocando estratégias de participação em causas públicas como Meio Ambiente, Direitos Humanos. Já tem 20 anos de trabalho, vinculados a movimentos sociais de resistência nas periferias, com apoio de governos democráticos populares. Desenvolvemos também o projeto Cordel nos Cafundós com escolas, grupos e artistas periféricos disseminando a cultura popular, esse saber enraizado da literatura de cordel que foi legitimado pelo IPHAN – Instituto de Patrimônio Histórico e Cultural, no ano passado… Apesar do que estamos sofrendo com o desmonte do Ministério da Cultura e com a falta de apoio do governo do estado, estamos montando o Cordel Móvel, um micro ônibus com acomodações, captação de energia solar, banheiro e camarim, para a gente conseguir rodar aí por esses grotões, periferias, com autonomia e para isso estamos buscando recursos solidários”. Cascão – 67 anos

 

“Hoje estamos no Município de Formoso do Araguaia, na Lagoa da Onça, trabalhando num assentamento de 314 famílias, a 60 km da cidade. A Madalena e eu temos o compromisso pela Congregação de ajudar as pessoas a ficar de pé, ajudar as crianças e jovens a ser gente. Pessoas inteiras, não oprimidas, não submetidas, dignas. Ajudar as pessoas a fazer da roça, um lugar bom para se viver. O povo tem direito de ter no campo, tudo de bom que tem na cidade: luz nas ruas, coleta de lixo, posto de saúde, escola. Ajudar o pessoal a tomar consciência do problema, ir às autoridades reivindicar. Junto com as mulheres colho arroz, oriento para fazer uma horta sem agrotóxicos, temos um centro de direitos humanos. Estamos há 10 anos neste assentamento”. Bia – 78 anos.

 

“São 46 anos de convivência na Aldeia dos Tapirapés e até hoje vivemos um processo de troca muito rico, aprendemos tanta coisa, outro modo de vida, estamos sempre aprendendo. São sociedades diferentes, a convivência e o cuidado com o meio ambiente. As sociedades indígenas sobreviveram por milênios e muito bem. Quando as sociedades indígenas estão com o ambiente intacto eles tem fartura de alimentos, ninguém passa fome. Não tinham doenças, as nossas é que os matam. A sabedoria da natureza, a convivência, as relações de respeito, de autonomia, a compreensão da criança como um ser que traz sabedoria. Hoje fazemos um trabalho de assessoria, formação continuada com professores, oficinas de apoio da UNIMAT, produção de materiais pedagógicos. Os professores da Aldeia fizeram história em quadrinhos na língua indígena, inédito em nosso país”.  Eunice e Luis

 

“Hoje estou em Cáceres, na UNIMAT. Aposentei faz 16 anos mas a gente cria laços. Minha área é a linguagem e sempre tenho o que fazer com alunos com mais dificuldades. Tenho um grupo que topou e estamos sempre recriando, participando dos movimentos”. Judite -78 anos

 

“Minha mãe, meu irmão, minha avó nasceram em Cascalheiras. Elas sempre me contaram o que foi esse movimento por lá, que ajudou as pessoas pobres da região, como ela saiu da pobreza. Fiquei com interesse de saber como as pessoas viveram. Identifiquei-me com as lutas da Prelazia, movimento que lutou contra a polícia. No meu cotidiano tento quebrar o que impede a minha desenvoltura, meu pensamento. Lutar para que todos tenham os mesmos direitos e para que tenham o mesmo nível de compreensão”. Nicolas 16 anos

 

“Já participei de muitos projetos alternativos da educação na região apoiados e incentivados pela Prelazia. Hoje meu foco de interesse maior é a educação do campo. Sou sertaneja, sou camponesa, isso tem muito da minha história: a dificuldade de sair para estudar, fui me alfabetizar já grande, adolescente. Fiz faculdade com muita dificuldade. Sou pedagoga e discuto na minha prática pedagógica com meus alunos/educadores essas questões. Trabalho num centro de formação e atualização de professores lá em São Félix do Araguaia”. Lourdes – 54 anos.

 

“A Prelazia ficou como uma marca de vida de Paulo Freire, de Dom Pedro Casaldáliga, da Teologia da Libertação. Aprendi a ter uma visão diferenciada da igreja comprometida com os pobres e um sentimento muito forte da importância dessa aliança campo/cidade, da amplitude dos movimentos sociais, do respeito à diversidade. Hoje isso se reflete nas lutas identitárias: LGBTs, comunidades tradicionais quilombolas e ciganas, especialmente comunidades indígenas, que nos ensinam acima de tudo a cultura da paz, da solidariedade e da prática do amor e do afeto”. Cascão – 67 anos

 

“Cheguei junto ao pessoal da Prelazia porque estou fazendo pós em Geografia lá no Rio. A gente pesquisa o agronegócio, as fronteiras do Brasil. O Araguaia é uma fronteira do agronegócio que vem se consolidando com fronteira dita moderna, da soja e do milho. A Júlia, minha orientadora, irmã da Tereza Adão que foi presa e torturada na ditadura, tinha uma ligação muito forte com o Araguaia. Fui ao encontro de Belo Horizonte no ano passado. Fiz vários amigos, muita gente que eu levo prá vida”. Daniel 27 anos.

 

O 6º encontro dos Cabras da Prelazia: O Resistir como Existência

 

Periodicamente essa turma, alguns que permanecem na Prelazia de São Félix e muitos espalhados por esse Brasil afora, se reúne para troca de afetos, experiências, análises de conjuntura, reforçar os laços de fraternidade e de luta. Encontros que realimentam a alma, que renovam a esperança e impulsionam para as lutas de resistência e insurgência, especialmente nestes dias tão sombrios.

 

Tive a alegria de ter sido incluída neste grupo, neste 6º Encontro de Amigos, “Cabras da Prelazia” que contaram nestes 3 dias de encontro com a Assessoria de  Pedro Pontual, educador popular com vínculos antigos com Dom Pedro e com participantes da Prelazia. De acordo com a metodologia da Educação Popular ele  ajudou a construir e realizar o encontro com participação ativa de todos os participantes, numa construção coletiva do conhecimento.

 

A situação política que estamos vivendo, de avanço das políticas neoliberais e perda dos direitos civis e sociais, dilapidação de nosso patrimônio cultural, econômico e social e de nossas reservas, incentivo à violência, ao ódio e ao individualismo, repressão a lideranças e a movimentos, onda conservadora e fundamentalismo religioso, arbitrariedades de todo tipo a cada dia não pode nos paralisar.

 

Quais as saídas possíveis diante de um governo comprometido com as milícias, um Congresso, um Judiciário e a mídia hegemônica coniventes com a situação política vigente e com o governo golpista? Diante de tantas incertezas, de retrocessos nas conquistas, fraca mobilização popular, descrédito nos sindicatos, nos partidos e na maneira de se fazer política, o que fazer?  Como mobilizar os trabalhadores, os jovens e a sociedade em geral para as lutas de resistência e  para a construção de um outro mundo possível? Como interagir com outros grupos, “furar a bolha”, criar redes de luta e práticas de insurgências? Com dinâmicas culturais e participativas, entremeadas com muita música, poesia e místicas diversas, ressaltou-se a importância de se batalhar por questões que unifiquem, ter a prática da observação e de escuta desse mundo que pulsa e em transformação. O Resistir como Existência.

 

Esta análise de conjuntura é central para se entender os desafios que temos pela frente que devem enfatizar a formação política com questionamento dos valores consumistas da sociedade capitalista e recuperação da solidariedade e do conceito do que é o Bem Viver. A defesa dos direitos humanos, da luta pela terra, trabalho e pão; por uma vida digna em que os jovens e o povo possam ser protagonistas. Agentes na construção das políticas públicas, nas decisões do país, ter direito a condições de vida digna, acesso à saúde, educação, ao lazer e à cultura. A valorização da economia solidária e da quebra do individualismo, romper cercas e construir teias, pensar em novas formas criativas envolvendo a juventude, pensar globalmente e agir localmente.

 

É importante ter muita criatividade e paciência, cavar espaços à primeira vista impossíveis e saber que também fazendo coisas pequenas em lugares insignificantes, é que se faz a diferença. Viver a festa, a alegria e o humor na ação política, a territorialidade e o avizinhar, tecer redes, horizontalidade nas ações, viver a dimensão do coletivo e recuperar o espontâneo das praças e os espaços públicos, no cotidiano. Novas linguagens, meios simples e acolhimento são elementos fundamentais para a reafirmação de um novo jeito de se fazer política.

 

Práticas insurgentes apontadas como sinais de esperança!

 

Ocupação de escolas, cursinhos populares e projetos criativos de escolas, círculos e fóruns de crianças e adolescentes, Bandas RAP e Saraus na periferia, SLAMs, Circos e Assembléias, Grupos de música como o Triá,  Carnaval: escolas e blocos como manifestação da cultura, crítica e resistência popular, Grupos de Teatro Mambembe, Linhas do Horizonte, Linhas de Sampa e Coletivo Flores pela Democracia,  Centros de Defesa de Direitos Humanos, Memes, Blogs, Sites progressistas, Fórum Xavante, Rede de Sementes Crioulas envolvendo várias etnias e municípios no Xingu, Araguaia e Cerrado, 10.000 pamonhas em Corumbá servidas para a população pelo MST, Teia dos Povos na Bahia e no Maranhão, Sarau na Beira do Rio em Palmas em movimento pela água em que fazendeiros contaminaram as águas com venenos, Mulheres Indígenas em Mariana que serviram água e alimentos contaminados para a direção da Vale em reunião. Alguns exemplos e certamente teremos muito mais se estivermos atentos a esse mundo que pulsa onde o Resistir é Existir.

 

Encontro que impulsiona o desejo de querer mais

 

“Vir a esse encontro para mim tem um significado muito forte, da minha constituição enquanto sujeito. É como se um paciente estivesse na UTI e encontrar um remédio que faz levantar da cama. Num momento de tanta violência, tanta perda de direitos, aqui a gente vê que está acontecendo em tantos lugares do Brasil, práticas insurgentes, é um certo levantar da cama e voltar bem animado, com as coisas acontecendo apesar dele…” Lourdes – 54 anos.

 

“Significativo. Recuperar a história com o legado de dom Pedro, numa perspectiva de futuro. Como divulgar as lutas e as causas de Dom Pedro”. Piau, 72 anos

 

“Trabalhei na Prelazia 28 anos, de 71 a 97 e de lá fui para a Comissão Pastoral da Terra – CPT Nacional. Esse encontro, além de ser um encontro de amigos que labutou muitos anos na Prelazia de São Félix do Araguaia, ajuda a abastecer as energias em nossa caminhada, sobretudo em tempos tão sombrios como estamos vivendo hoje. Aquilo que se viveu lá nos primeiros tempos da Prelazia e a luta enfrentada, servem de luz para a gente enfrentar os desafios que a realidade apresenta hoje. O conflito no campo é muito violento, sobretudo na região da Amazônia,. Hoje na região da Prelazia já não tem tantos conflitos tão intensos. Pará, Amazonas e toda a região mais pro Norte, conflitos muito violentos, com mortes, tentativa de despejo de famílias de Sem Terra que ocuparam área que era grilada ou completamente largada, como sempre aconteceu” – Canuto – 78 anos

 

“Esse encontro para mim é fundamental. A gente encontra pessoas que visitei na cadeia na ditadura, o Edgar, a Terezinha. É uma história, não é para chorar o passado não. A gente vê como isso nos formou. Fui freira, fui para o Araguaia com 30 anos e isso foi a minha salvação, se eu tivesse ido para a minha família, eu não tinha dado conta…” Judite – 78 anos

 

“Fiquei surpreso, o que eu vivi aqui eu nunca esperava. Conheci pessoas com histórias de luta. Vou falar para todos os meus amigos e pessoas que eu conheço que lutam pelos direitos das famílias pobres. Além disso, foi uma oportunidade cultural, bonita, com as celebrações, poesias e música”. Nicolas -16 anos

 

“Muita gente exemplo, especialmente os mais velhos que estão aí na luta e tem muito que nos ensinar. Isso é muito importante, saber que tem gente de todos os cantos que pode somar na nossa luta, fazendo essa teia aí nesse Brasil todo, principalmente neste momento que está tão difícil”. Daniel – 27 anos

 

Na Caminhada e até o próximo encontro

 

Seguimos o caminho de flores, folhas e pedras, com o desenho de nossos pés e expressão dos mais fortes sentimentos: amorosidade, solidariedade, esperança, coragem, sabedoria, caminhar, permanecer n’Ele, gratidão, teimosia, escuta, indignação e rebeldia; embalados pela poesia de Manoel de Barros, O menino que ganhou um rio https://www.tudoepoema.com.br/manoel-de-barros-o-menino-que-ganhou-um-rio/; pelo Samba da Utopia de Jonathan Silva https://www.letras.mus.br/ceumar/samba-da-utopia/; pela música do Triá de Cabras da Prelazia, que animaram o nosso encontro, seguimos com muitos desafios, impulsionados pelo exemplo de Dom Pedro e por seu testemunho de vida, por esse Brasil afora, com o compromisso de RESISTIR e EXISTIR!

 

25/07/2019

https://jornalggn.com.br/cidadania/dom-pedro-casaldaliga-luta-e-vida-pelos-povos-da-terra-por-cecilia-figueira/

 

https://www.alainet.org/pt/articulo/201214

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