Democracia de joelhos e cárcere sem voz

13/08/2018
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Sergio Moro
Foto: Guilherme Santos/Sul21
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Joyce Cary, romancista irlandês (1888, Derry -1957, Oxford), certa feita falando a um crítico sobre o seu “processo de escrita”, lembrou uma cena na qual vira uma jovem num pequeno barco – no entorno da Ilha de Manhattan – que lhe chamara atenção. Ela vestia uma saia surrada, tinha cerca de 30 anos, estava alegre e possuía uma testa crispada de muitas rugas. Cary disse a um amigo que lhe acompanhava: “Eu poderia escrever acerca desta jovem…”. Algumas semanas depois o escritor despertou pela manhã, com a pergunta: “por quê todas essas rugas?” E deu-se conta, então, que já estava escrevendo um conto cuja heroína inglesa era inspirada na jovem de saia surrada, que solta sob os céus de New York repousara na sua memória..

 

“O lugar que se volta é sempre outro”, lembra a epígrafe de um livro de Fernando Pessoa. Tanto é um lugar na recordação como espaço físico, como um lugar amoroso ou político que guardamos na memória, sempre construída nas geleiras e nas incandescências da vida. Para Joyce Cary, a volta inconsciente à jovem da saia surrada lhe permitiu atravessar aquele momento da vida com a tarefa que lhe identificava no tempo histórico do espaço presente: um autor buscando um personagem, um escritor buscando uma causa, um ser humano voltando a uma identidade remota.

 

Como – não em semanas – mas nos anos adiante, olharemos o tempo de agora? Já estamos escrevendo com a devida potência de indignação – sem ter consciência – sobre violência organizada, exceção cínica, prisões sem provas? Já reclamamos o suficiente da promoção do fascismo, da manipulação da informação, dos processos seletivos e dos debates caricatos? Já denunciamos – com a devida força – os deboches aos direitos fundamentais, a submissão da Suprema Corte a uma instância inferior, que interpretou a Constituição pela via que ele, Estado de Direito, permite a pilhagem dos direitos da cidadania, escorado no seu lado obscuro de exceção? Quando olharmos para trás o lugar buscado pela memória será outro e as rugas da História poderão ter desaparecido nos anais infinitos do mercado.

 

“Soberano é quem decide sobre o Estado de Exceção”. A sentença de Carl Schmitt chama para o presente, pois ela indica – na verdade – quem manda na democracia. Indica quem decide se uma transição vai ser degradante ou ascendente, nas suas crises e, no caso concreto do nosso Brasil, se o “imbroglio” em que nos meteu o golpe dos corruptos maiores – engendrado nas instâncias do oligopólio da mídia – vai ser decidido a partir do Preâmbulo da Constituição ou das dicas dos “especialistas” privados do mercado de capitais. O mercado está inquieto com as eleições, escolham bem o seu candidato, senão ele se irrita!

 

Tal proclamação nos mostra nos tempos que correm, que a deslegitimação da soberania popular não tem limites, até porque – quando tornaram Lula refém da exceção – não esperavam que esta se tornasse refém de Lula. Sua prisão, por si só, mostra no cenário nacional e global, que não estamos no curso de eleições justas e livres e que, talvez um dia, um escritor acorde e se lembre que estará – se estiver recordando sobre hoje – escrevendo sobre uma degradação democrática: nela o Supremo tornou-se refém de um juiz, que colocou a democracia de joelhos e o melhor Presidente da História num cárcere sem voz.

 

agosto 12, 2018

- Tarso Genro foi Governador do Estado do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre, Ministro da Justiça, Ministro da Educação e Ministro das Relações Institucionais do Brasil.

 

https://www.alainet.org/pt/articulo/194664
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