200 anos de Marx
- Opinión
É difícil superestimar a importância de Karl Marx, cujo bicentenário se comemora neste 5 de maio, para as mais diversas áreas das ciências humanas. Trata-se de um autor revolucionário e genial, que transcendeu a tradicional divisão das ciências parcelares: enveredou, com substanciais contribuições, por diversas disciplinas, da economia à estética, do direito à antropologia. Dono de uma capacidade analítica excepcional e profunda, de uma verve sarcástica e repleta de belas imagens, era um estudioso incansável que, mesmo pesquisando por toda a vida, deixou sua principal obra inacabada. Obcecado pela compreensão da sociabilidade sob a regência do capital, nesse mister não hesitava em criticar duramente mesmo as proposições teóricas dos mais próximos de seus amigos e as próprias associações que integrava, ciente de que princípios e teorias não se negociam – nem se negligenciam.
Inobstante, seu pensamento sofreu um destino trágico. Desde cedo, ainda em vida, enfrentou as mutilações, as más interpretações e as deturpações de sua teoria por leitores mal ou bem-intencionados, inimigos e amigos, além da guerra do silêncio com que a burguesia cercou sua obra principal. No início do século XX, foi fortemente associado aos dilemas e limites das sociedades pós-revolucionárias do Leste europeu e assemelhadas, e no final do mesmo século, dado como morto e enterrado sob os destroços do assim chamado “socialismo real”. Não é de hoje, portanto, que se declara sua morte intelectual, celebrada pari passu a declarações de vitória final do capital tão retumbantes quanto celeremente desmentidas pela realidade. Um titânico filósofo duro de matar, que revive – fortalecido e lúcido – a cada crise, pois é o único que tem mostrado envergadura para enfrentar a esfinge que nos desafia: “decifra-me ou te devoro!”.
Por tudo isso, no bicentenário marxiano é forçoso reconhecer a ingente necessidade de voltar a Marx, redescobri-lo, ler suas obras sem as viseiras enquadradoras que lhe foram postas pelos partidos e pelas interpretações dominantes, do lado dos seus adeptos; e longe dos desentendimentos e limitações dos seus detratores, situados pela determinação social em subníveis de compreensão. Esta tarefa é, a um tempo, dificultada e facilitada pela nossa época: facilitada pela cada vez mais evidente inadequação das teorias não marxistas para responder aos dilemas do mundo; dificultada por esses mesmos dilemas, que impõem barreiras à efetiva compreensão do real, além do peso histórico dos feitos e mal-entendidos das sociabilidades pós-revolucionárias. Afastamo-nos cada vez mais destes últimos – em que pesem as apologias cegas ainda de grupos cada vez mais reduzidos –, mas do outro lado só cresce a usina do falso que se interpõe entre nós e o mundo.
Faz parte desse imbróglio, desde quase sempre, a miscelânea nascida da fusão entre marxismo e outras visões de mundo de todo alheias aos seus fundamentos. Muito cedo se atrelou o marxismo a “três fontes”, que representariam os mais avançados domínios do pensamento social de sua época – a economia política inglesa, o socialismo francês e a filosofia especulativa alemã –, pressupondo-se de antemão a possibilidade de retalhamento, composição e síntese entre tradições filosóficas não só distintas como opostas entre si e em comparação com o próprio pensamento marxiano. Atribuindo-se a Marx lacunas ou insuficiências das mais diversas naturezas, propôs-se depois sua “complementação” – ora com Kant, ora com Hegel, ora, ainda, com qualquer outro teórico da moda no momento e local em questão. Posteriormente, o surgimento de um “marxismo weberiano” mostrou o quão elásticas eram as possibilidades de (in)compreensão do marxismo. Após um século na mesma direção, nos dias de hoje o quadro se agudiza, porque, voluntária ou inadvertidamente, tenta-se mesclar Marx com as mais insidiosas teorias antimarxistas nascidas sob o influxo do capital avançado, mormente aquelas abarcadas pelos ideais pós-modernistas – e no interior desse mélange é o marxismo que é visceralmente desconfigurado. Mais grave: as diversas lutas práticas que se (des)orientam pelas teorias mescladas restam tristemente invertebradas, desvirtuados seus objetivos e estreitados seus horizontes.
Impõe-se, pois, voltar a Marx. Precisamos recuperar suas densas e originais contribuições – inclusive para criticá-las, se necessário, pois a crítica só se pode fazer de forma honesta quando se compreende profundamente os objetos de que ela se ocupa, intensiva e extensivamente. O que há a recuperar de Marx?
Há que entender adequadamente, antes de tudo, a própria nova forma de crítica que ele instaura. Em Marx, a crítica é o resultado de uma investigação histórico-social concreta. Não se resume à análise interna dos processos, fatos e relações: busca explicações para sua gênese, especifica e explica suas contradições e inter-relações, investiga seu desenvolvimento processual, tendo sempre por parâmetro os próprios processos histórico-reais. Em outros termos, o critério de verdade é a própria realidade, pela qual se mede o conhecimento.
Nesse contexto, há três críticas fundamentais no pensamento marxiano.
A crítica ao pensamento especulativo mantém, incrivelmente, sua atualidade: afinal, no mesmo momento em que as ciências promovem um inédito e inimaginável domínio da natureza, as teorias predominantes teimam em negar a objetividade do mundo, reduzido a interpretações, leituras e afins. Marx criticava duramente a filosofia especulativa por motivos semelhantes. O método hegeliano não só diferia do seu, mas era o exato oposto, dizia, porquanto apresentava a realidade de forma invertida: para o idealismo, a entidade ontológica originária era a Ideia, a qual teria posto o mundo sensível ao se alienar/objetivar. Para Marx, é preciso pôr sobre os pés aquilo que em Hegel está sobre a cabeça, ou seja, reverter a inversão hegeliana que faz do sujeito predicado e torna o predicado o criador do seu criador – em poucas palavras, trata-se de partir da constatação da objetividade do real.
A retomada da crítica à politicidade é urgente no seio dos que se põem no campo da esquerda, diante das inúmeras e acachapantes derrotas que têm sofrido em seu itinerário – muitas delas devidas às armadilhas do politicismo, da confusão entre fins e meios (o mito do partido) e do estatismo que vigoram nesse campo. A força do aparato político, “o poder organizado de uma classe para a opressão de outra”, advém das energias sociais extraídas do homem, coaguladas num poder material sobre o qual não tem controle, desfiguradas e voltadas contra ele próprio. O cidadão abstrato, base da ilusória comunidade política, é a contraface do indivíduo egoísta, alienado, fragmentado, devotado a seus interesses particulares. Assentado na contradição entre vida pública e vida privada, o estado está fadado à impotência e a política é uma esfera determinada, não determinante; mas os diversos partidos políticos encontram a razão de todo mal não na própria essência da política, mas na política do grupo contrário ou em uma determinada forma de governo, pleiteando sua substituição. A emancipação humano-societária, possibilitada por uma revolução social, radical, é a recuperação daquelas forças sociais alienadas na política, a aquisição da capacidade de auto-regulagem pelos indivíduos livremente associados.
Por fim, a crítica à economia política marxiana poderia facilmente ser repetida para a maioria dos economistas atuais, perdidos em meio à poeira dos fatos mortos sem nunca alcançar o que é substancial para o entendimento do mundo. Segundo Marx, todas as concepções anteriores à sua deixaram de abordar a base real da história ou a consideraram algo acessório, sem relação com o desenvolvimento histórico. A economia política tem a propriedade privada como pressuposto, não explica suas origens e suas características e não compreende seus nexos internos, criando leis a partir de generalizações abstratas de forma a naturalizar as instituições capitalistas. Por seu lado, a análise marxiana parte da pressuposição de que as categorias econômicas se referem às formas de produção e reprodução da vida humana e que esta só é possível quando os homens produzem os meios indispensáveis à sua sobrevivência. Ao produzirem seus meios de vida, produzem a si mesmos, num infinito processo de autoconstrução para o qual a natureza fornece os pressupostos que a sociabilidade modifica constantemente. Por isso, a história da humanidade deve ser sempre estudada a partir da conexão entre a história da produção e a do intercâmbio.
Na simultânea efetivação dessas críticas e instauração da sua própria análise, o pensador alemão que hoje se homenageia distancia-se de dicotomismos que acompanham as ciências desde priscas eras. Assim, demonstra que indivíduo e sociedade não são duas coisas opostas e exteriores, mas dois momentos do mesmo ser, o ser social, no seu polo singular e no seu polo plural. Ainda, ele comprova que “estrutura” e “conjuntura”, como necessidade e liberdade, são aspectos simultâneos e inseparáveis de um mesmo processo, enquanto sua vertente passiva e seu fator ativo (práxis), eliminando toda desconjunção entre a determinação objetiva e possibilidades de atuação do homem. Em Marx, objetividade e subjetividade estão entrelaçadas, cada uma atuando historicamente sob forma específica, sofrendo determinações mútuas, e embora o momento preponderante seja a objetividade, também há uma objetividade socialmente posta. A lista poderia seguir por várias páginas.
É preciso voltar a Marx, finalmente, para escapar de profundos equívocos associados à sua teoria no tocante ao socialismo. A assim chamada esquerda costuma comumente, em sua crítica teórica e prática, envergar a vara na direção oposta àquela apontada pelas forças dominantes. Assim (e aqui forço as tintas): se a sociabilidade burguesa e as análises teóricas correlatas partem do (e reforçam-no) individualismo, a pseudoesquerda aposta no coletivismo; se a ordem atual gera e legitima a desigualdade (muitas vezes, sob o manto fraternal da diferença), contrapõe-lhe o igualitarismo; se o capital exacerba o consumo, certa esquerda defende radicalmente a pobreza, a rusticidade e a simplicidade; o capital propugna a sacralidade da propriedade privada e a anarquia da produção, defronta-se-lhe a propriedade e o planejamento estatais; o capitalismo é o reino dos conflitos e contradições, o comunismo seria uma sorte de reino dos céus profano. Ora, esse “comunismo grosseiro” não só não encontra eco em Marx como é duramente criticado por ele.
Para Marx, o comunismo é necessário, antes de tudo, para permitir o desenvolvimento da personalidade humana em sua riqueza, diversidade, singularidade e liberdade, garantidas as condições materiais (ou seja, a opção pela pobreza, o igualitarismo e o coletivismo estão desde logo descartados). A comunidade de produtores livremente associados deve, para isso, tomar o controle da produção altamente desenvolvida e reorientá-la para o atendimento das necessidades humanas renovadas e ampliadas. Assim, os homens podem fruir de todas as criações, apropriar-se delas de maneira omnilateral. Abolidas as classes e seus antagonismos, não haverá também poder político. Que regulação do intercâmbio com a natureza tenha sido tomada por planejamento estatal já era um equívoco em sua época, e na era dos algoritmos e da internet das coisas se torna ainda mais indefensável. Por outra, o século XX foi fértil em demonstrar na prática a conhecida lição da Comuna de Paris: não se pode tomar o estado e usá-lo para atender aos fins humanos, é preciso destruí-lo. Ademais, uma comunidade em que o livre desenvolvimento de cada um é a condição para o livre desenvolvimento de todos não seria o fim da história, mas o começo da história propriamente humana.
Voltar a Marx é urgente e ainda mais necessário porque vivemos um momento de intensa ofensiva do capital. Uma ofensiva antecedida por dois séculos de derrota das forças representantes do trabalho e das propostas associadas a elas. Uma vitória inconteste do capital, embora não definitiva – a revolução social continua sendo uma possibilidade efetiva e uma necessidade imperativa, ainda que não visível no horizonte histórico atual –, pavimentada por todo tipo de miséria e degradação humana objetiva e subjetiva, a tal ponto que o mal-estar dos indivíduos consigo mesmo e com os demais é cotidianamente escancarado em manchetes com letras garrafais que falam de epidemia de sofrimento e adoecimento psíquico – já para não falar da miséria material. A vitória do capital e a derrota de seu adversário, as encarnações da lógica onímoda do trabalho, são frequentemente atribuídas aos erros do próprio Marx. A questão exata é o oposto: justamente o fato de não termos vencido, é o acúmulo de tantas e tão sofridas derrotas que deve nos levar de volta a ele e à sua décima primeira tese. É evidente: não podemos transformar o mundo só a partir do entendimento de Marx, precisamos pensar por nós mesmos a realidade atual, de tantas formas diferente da dele. Mas se, 200 anos depois do seu nascimento, não podemos transformar o mundo só com Marx, certamente não podemos fazê-lo sem ele.
- Vânia Noeli Ferreira de Assunção é Professora da Universidade Federal Fluminense (UFF – Rio das Ostras). E-mail: vanianoeli@uol.com.br.
05/05/2018
https://espacoacademico.wordpress.com/2018/05/05/200-anos-de-marx/
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