O incógnito 2018
- Opinión
2017 caracterizou-se pela forte ofensiva neoliberal, que aprofundou a construção da ponte para o Estado mínimo, obra regressiva iniciada com o golpe contra a presidenta eleita, Dilma Rousseff. Mesmo pressionado pela crescente e enorme rejeição, o governo Temer, o mais reprovado desde a redemocratização, reuniu ampla maioria no Congresso em diversas ocasiões, seja para aprovar seu programa impopular ou para o chefe do Executivo livrar-se de processo pelo STF, nas duas rodadas de denúncias da Procuradoria Geral da República.
A reforma trabalhista alterou 100 itens da CLT, esvaziando-a substantivamente, e fortaleceu o poder dos empregadores nas relações contratuais trabalhistas, além de ter enfraquecido tanto a Justiça do Trabalho (a começar pela prevalência do negociado sobre o legislado), como os sindicatos, com o fim do imposto sindical. O governo pós-golpe contra a presidenta eleita logrou êxito em aprovar a Lei nº 13.483/2017, que aproximou as taxas de juros pagas pelo setor privado aos financiamentos do BNDES às oferecidas pelo mercado financeiro, diminuindo o papel desenvolvimentista desse histórico banco de fomento aos investimentos de longo prazo.
Realizaram-se os dois primeiros leilões de campos de exploração da mega reserva de pré-sal sob as regras de exploração aprovadas em 2016, pelas quais a Petrobras não mais precisa ter participação obrigatória nos novos blocos exploratórios vendidos. Conforme visava o governo, a novidade desses leilões foi a presença das multinacionais, como a Shell, ainda que o investimento estrangeiro não tenha vindo na dimensão esperada pelos estrategistas do Brasil dependente.
Temer também anunciou o processo de privatização de 57 empresas, entre elas a Eletrobras e a Casa da Moeda. Pesquisa recente do Datafolha mensurou que 70% dos brasileiros desaprovam as privatizações. Só entre os mais ricos, com vencimentos acima de dez salários mínimos, a maioria (55%) defende a venda das empresas estatais. Por outro lado, o adiamento para este ano da votação da reforma da previdência foi a principal, senão a única, derrota política do governo em 2017, mas passível de ser revertida em fevereiro, quando a polêmica matéria deverá ir a voto no plenário da Câmara dos Deputados. Essa derrota provisória também prejudica os interesses materiais e ideológicos dos grupos sociopolíticos coalizados nessa ofensiva liberal-conservadora, sobretudo os rentistas, financistas e a grande mídia.
Em 2017 também passou a vigorar a Emenda Constitucional 95, que estabeleceu, por um período de duas décadas, o teto de gastos públicos conforme a variação da inflação. Tal política contém as despesas primárias, mas não as financeiras, que favorecem os credores da dívida pública. Seus efeitos já se fizeram presente em 2017 em várias áreas, a começar pelas duas políticas sociais fundamentais estabelecidas no pacto social de 1988, desestruturado com a emenda do teto: a saúde e a educação.
Na saúde, por exemplo, os 13 milhões de desempregados pressionam por mais serviços e recursos do SUS, uma vez que os demitidos perdem o acesso aos planos privados patrocinados pelas empresas onde trabalham. Na educação, pode-se citar, por exemplo, o caso das universidades federais, sufocadas duplamente, pela redução dos recursos e pelo contingenciamento dos repasses. Assim se pronunciou o presidente da Andifes, Emmanuel Tourinho: “O orçamento de 2017 é aproximadamente 15% menor nos recursos de manutenção e de 50% na verba de investimentos das universidades em relação a 2014”. A recessão, seguida pelo atual crescimento em nível muito baixo, além da redução da presença social do Estado, enfim, todos esses fatores juntos têm impactado na regressão dos indicadores da desigualdade de renda, que estão piorando.
Em síntese, 2017 foi marcado, entre outros, pelo desemprego, pela retomada tímida do crescimento (Boletim Focus prevê 0,89% de variação do PIB), pelo aumento da desigualdade de renda e pelo esforço político visando a uma ampla reestruturação produtiva, trabalhista e previdenciária, para redesenhar o padrão de acumulação e de relações entre Estado, economia e sociedade. Ocorre uma ampla e profunda ruptura com os treze anos de governos petistas, que se esforçaram, ainda que com limites e erros, mas também com certos êxitos, para juntar, por um lado, o desenvolvimentismo do século 20, que erigiu o Estado como principal indutor e coordenador do desenvolvimento capitalista nacional, e, por outro lado, a perspectiva político-social de incluir, na repartição das riquezas geradas pelo sistema econômico, o grande contingente de brasileiros historicamente jogado na informalidade, na pobreza e na miséria.
A internalização extremada do padrão financeiro de acumulação, produzido nos países centrais e alastrado nas relações econômicas e políticas da globalização e do sistema internacional, radicaliza no Brasil a tendência verificada lá fora de desacoplamento entre capitalismo e democracia, deslocando o centro decisório do conjunto da população nacional para os grandes investidores globais, que submetem os governos e as sociedades aos ditames do capital financeiro.
A crise de representatividade e legitimidade do sistema político brasileiro, exponenciada em 2017, se expressa não apenas na continuidade de um governo ilegítimo do ponto de vista procedimental, por ter se originado em um golpe apenas aparentemente constitucional, mas também na facilidade com que os novos donos do poder aprovam no Congresso Nacional medidas fortemente impopulares, sem qualquer debate público consistente e muito menos por consulta direta ao povo. O Executivo e o Legislativo tornam-se, assim, espelhos políticos do grande capital, e não do conjunto dos cidadãos que, em tese, representam.
Paralelamente a isso, e em consonância com o que ocorre em outros países da América Latina, como a Argentina, há o lawfare do Judiciário, apoiado abertamente pela grande mídia oligopolizada, contra lideranças populares de esquerda, individuais e coletivas, sobretudo Lula e o PT. Em julho, o ex-presidente foi condenado pelo juiz Sergio Moro, sem provas claras. O objetivo é retirar da disputa política lideranças e partidos não só comprometidos com um projeto nacional de desenvolvimento e inclusão social, mas também com capacidade organizacional e relacional de colocá-lo em prática.
Almeja-se reduzir a competição eleitoral em favor do centro direita e da direita, que esposam o liberalismo conservador emerso no processo político da crise brasileira. A principal consequência dessa empreitada político-jurídica, que desrespeita o devido processo legal, é o enfraquecimento do caráter democrático das instituições políticas, tornando-as menos pluralistas e representativas e mais oligárquicas e excludentes. O regime passa por um processo de desdemocratização, embora haja oposição a ele.
Paradoxalmente, com as inúmeras denúncias de corrupção envolvendo diretamente o governo Temer e com o aprofundamento do neoliberalismo e do lawfare, os grupos e partidos que os apoiam se veem às voltas com a perda de popularidade e o risco de perder as eleições de 2018 para uma candidatura de esquerda, principalmente Lula, que assume a liderança absoluta em todas as pesquisas de intenção de voto. Nesse cenário, as forças de direita competem pela liderança da manutenção do projeto golpista no quadriênio a se abrir em 2019.
Por um lado, a candidatura de Bolsonaro, alinhando-se completamente ao neoliberalismo, procura oferecer aos rentistas e financistas a segurança de que seus interesses materiais estarão garantidos em um contexto de crescente autoritarismo e conservadorismo. Por outro, o golpismo aberto do general Mourão, ainda que sem tanto apoio visível, aponta no sentido de posicionar o Exército como ator autônomo na crise, não mais contido na retaguarda do golpe. Falta, entretanto, coesão interna na corporação para avançar nesse sentido e seu papel constitucional de defensor armado da soberania nacional é posto em xeque pela tolerância às privatizações e pela abertura da Amazônia a operações militares estadunidenses.
O balão de ensaio da candidatura de Luciano Huck, apoiada por forças neoliberais não vinculadas ao conservadorismo comportamental e saudada como de “centro”, em contraposição aos “extremismos” de Lula e Bolsonaro, foi abortado em menos tempo que o do seu antecessor, o prefeito de São Paulo João Doria Jr., devorado pela sua própria ambição. O pré-candidato do Podemos, Álvaro Dias, mantém-se discreto. O tucano Geraldo Alckmin conseguirá se manter distante dos escândalos de corrupção e entusiasmará o eleitorado? E o que será da opção Meirelles, que se apresentou com cara de presidenciável no programa de TV do PSD? Ademais, parece não estar descartada a possibilidade de implementação do semipresidencialismo já neste ano.
2017 terminou sem resolver a crise. Diversas questões continuam em aberto: o governo Temer é viável até o fim? As medidas impopulares, aprovadas sem terem sido submetidas ao crivo eleitoral de 2014, resistirão ao governo seguinte? Qual será o impacto da crise de legitimidade do governo Temer nas eleições de 2018? A condenação de Lula será confirmada e impedirá a sua candidatura? Quem serão os candidatos a presidente? Haverá eleições? Por ora, qualquer previsão pode ser um exercício pouco útil, devido à multiplicidade e à complexidade dos fatores envolvidos na disputa política e na economia. O país passa por uma encruzilhada histórica. As decisões e desenlaces de 2018 serão cruciais para o destino do Brasil e dos brasileiros.
- Marcus Ianoni é cientista político, professor do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal Fluminense (UFF), realizou estágio de pós-doutorado na Universidade de Oxford e estuda as relações entre Política e Economia
- Felipe Maruf Quintas É mestrando do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal Fluminense (UFF)
http://brasildebate.com.br/o-incognito-2018/
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