A liberdade de expressão não é absoluta
- Opinión
Uma série de decisões proferidas pelo Poder Judiciário esta semana, em diferentes varas, instâncias e estados do País, reafirmam o conceito – consolidado em tratados internacionais e na Constituição brasileira – de que a liberdade de expressão não pode ser usada para violar outros direitos fundamentais. Como afirma a Declaração Universal dos Direitos Humanos e um conjunto de pactos internacionais ratificados pelo Brasil, os direitos fundamentais são interdependentes e indivisíveis, não podendo ser estabelecida uma hierarquia entre eles. Ou seja, o limite de um direito é o outro – e, nos casos avaliados pela Justiça esta semana, o limite colocado à liberdade de expressão veio de direitos como a dignidade humana, a liberdade de crença, a livre orientação sexual e à não incitação à violência.
Na terça-feira 24, o Tribunal de Justiça de São Paulo reverteu a condenação da ex-ministra Eleonora Menicucci, que chefiou a Secretaria de Políticas para as Mulheres no governo Dilma Rousseff, a pagar R$ 10 mil de indenização por danos morais a Alexandre Frota. Em 2014, Alexandre Frota fez piada no programa “Agora é Tarde”, do apresentador Rafinha Bastos, na TV Bandeirantes, ao relatar um caso de estupro que teria praticado contra uma mãe de santo. Na ocasião, o Intervozes e outras organizações protocolaram representação contra o ator junto ao Ministério Público Federal (MPF), denunciando, além do preconceito religioso, a incitação ao estupro que Frota havia praticado em rede nacional, sob risos de Rafinha Bastos e da plateia.
O MPF infelizmente arquivou o caso, que havia gerado indignação entre entidades que lutam contra a violência contra a mulher e, anos depois, levou Eleonora Menicucci a acusar Alexandre Frota de apologia ao estupro. Agora, a Justiça de São Paulo, apesar de não ter se pronunciado sobre o caso que originou a ação – as declarações de Frota a Bastos –, entendeu que a crítica de Eleonora ao ator respondia a uma manifestação violadora da dignidade humana por parte do artista.
“O que ele falou foi inadmissível numa sociedade em que as mulheres não podem mais ser oprimidas”, afirmou Eleonora depois do resultado final. Para ela, a decisão da Justiça foi, também, uma condenação da cultura do estupro no Brasil.
No dia seguinte, a 9ª Vara Cível de Brasília teve entendimento semelhante ao condenar o mesmo Alexandre Frota, agora sim, por manifestações ofensivas conta o deputado federal Jean Wyllys. Pela decisão, Frota terá que pagar uma indenização de 10 mil reais ao parlamentar do PSOL, por um conjunto de publicações em suas redes sociais, avaliadas por Jean Wyllys, além de injúria e difamação, como práticas de incitação à violência e discurso de ódio. A juíza de Brasília condenou Frota por entender que ali não havia uma intenção do réu de “expressar sua visão de mundo”, mas “o dolo de ridicularizar, achincalhar e zombar” o deputado. Ou seja, há limites em jogo.
Ódio aos transgêneros
Também no dia 24 de outubro, a 10ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça (TJ) de São Paulo condenou o jornalista Reinaldo Azevedo, a rádio Jovem Pan e a revista Veja a indenizarem em 100 mil reais a cartunista Laerte Coutinho. A sentença, queconfirma a decisão tomada em primeira instância, afirma que Laerte teve sua dignidade atingida ao ser chamada pelo jornalista, nos diferentes veículos, de termos como “fraude moral”, “baranga na vida” e “fraude de gênero”.
Na ocasião do comentário, a chargista havia publicado, na Folha de S. Paulo, uma charge sobre os protestos em apoio ao impeachment da Presidenta Dilma. Depois de condenado em primeira instância, Reinaldo Azevedo repetiu os ataques a Laerte em suas colunas. O desembargador Carlos Alberto Garbi, relator do recurso, entendeu que a crítica foi feita em função de Laerte ser transgênero e, por isso, manteve a condenação do jornalista.
A advogada de Laerte, Márcia Rocha, lembrou que 150 pessoas já foram assassinadas este ano no país em função do preconceito de gênero. “No Brasil, pessoas trans são privadas de seus direitos cotidianamente. (…) Nossa dignidade é ameaçada todo o tempo. E por que? Em razão de valores que permeiam o senso comum, que entendem que somos seres de outra categoria, de segunda ou terceira categoria”, declarou Márcia, primeira advogada transexual a fazer uma sustentação oral no TJ.
Luta permanente
Os três casos trazem um alento a movimentos e organizações da sociedade civil que, cotidianamente, enfrentam discursos de preconceito e violência cada vez mais crescentes no país. E que, na maioria das vezes, não encontram no Poder Judiciário a responsabilização necessária dos agentes violadores.
Como mencionado acima, no caso da piada de Frota acerta da violência sexual que teria praticado, o próprio Ministério Público Federal compreendeu que a fala do ator estaria protegida por seu direito à liberdade de expressão. Episódios de incitação clara à violência, veiculados indiscriminadamente nos chamados programas policialescos, exibidos em canais de TV em todo o país, também não sofrem nenhum tipo de responsabilização pelo Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovação e Comunicações – que tem o dever de fiscalizar o conteúdo das emissoras. Páginas promotoras da violência de gênero se multiplicam nas redes sociais sem decisões céleres da Justiça que coibam tais conteúdos.
O desafio, portanto, é permanente. Veja:
Ao final do julgamento desta semana, Alexandre Frota gravou um vídeo, disponível na internet, com novas declarações homofóbicas. Disse que foi “julgado por um juiz ativista do movimento gay”, por um juiz que “não julgou com a cabeça, julgou com a bunda e deu a causa para a Eleonora”.
Ou seja, como declarou a ministra, “a luta não para aqui; ela continua, porque ela nos remete a um compromisso muito maior, que é não deixar que nenhuma mulher seja estuprada e nenhuma mulher morra pelo fato de ser mulher. Então esta é uma celebração de luta, que é árdua e é intensa”.
Em tempos de crescimento também do cerceamento à liberdade de expressão daqueles que lutam por seus direitos, encontrar o equilíbrio entre o exercício dessa liberdade e o respeito aos demais direitos humanos é tarefa das mais urgentes à nossa sociedade. Pensemos nisso.
- Bia Barbosa é jornalista, especialista em direitos humanos, integra a Rede Mulher e Mídia, a coordenação do Intervozes e do Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação. Colaborou Marina Pita, jornalista e integrante do Conselho Diretor do Intervozes.
26/10/2017
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