Reforma política: algumas certezas e muitas dúvidas
- Opinión
Se há um tema que sempre está na pauta é a reforma política. Diferentes legislaturas organizaram comissões e apresentaram propostas para modificar o sistema eleitoral e partidário do país e candidatos sempre anunciam durante as eleições sua disposição de modificar a forma como os brasileiros escolhem seus parlamentares. Tanto à esquerda como à direita, parece haver um consenso de que o sistema apresenta problemas e que merece ser modificado. Essa defesa da reforma política não se restringe somente aos políticos. Em qualquer debate, da mesa no almoço de família aos comentários nas mídias sociais, a reforma é sempre a prescrição para os males do nosso sistema.
Entretanto, o consenso termina nesse enunciado geral: a necessidade de reforma política. Quando se avança para saber quais mudanças são mais indicadas e quais os verdadeiros problemas do nosso sistema político, as divergências afloram. É como se houvesse uma concordância na prescrição do remédio, mas uma discordância na doença. Mas, assim como na medicina, um diagnóstico preciso seria fundamental para a escolha do melhor medicamento. É comum o debate apontar que o problema é a governabilidade, propondo, paradoxalmente, medidas que não limitam o grande número de partidos no Congresso, por exemplo. Assim como existem aqueles que criticam a baixa representatividade dos nossos políticos e defendem sistemas em que o desperdício de votos é maior do que no modelo atualmente adotado.
Mas talvez o aspecto mais preocupante desse tema seja a fé excessiva de que com a mudança de regras assistiremos ao nascimento de um Parlamento impoluto, ágil e que seja uma espécie de correia de transmissão do desejo popular. É obvio que as mudanças nas regras teriam um impacto no comportamento dos políticos e dos próprios eleitores. Novas estratégias precisariam ser desenhadas a partir das modificações do sistema eleitoral, mas nenhum sistema evita uma certa distância entre os desejos dos eleitores e o comportamento dos representantes, entre aquilo que é expresso nas urnas e a composição do Parlamento. A adoção de um sistema eleitoral alemão não fará, necessariamente, com que nossos deputados se comportem como seus colegas europeus. E mais, por sempre envolver alguma imprevisibilidade, corre-se o risco da reforma piorar o que é considerado ruim.
Como de praxe, na atual legislatura, instituiu-se uma comissão de reforma política na qual se discutem modificações no sistema político brasileiro tanto em questões constitucionais quanto na legislação infraconstitucional. A gama de assuntos é expressiva: vai do financiamento das campanhas eleitorais, passando por mecanismos de incentivo à participação feminina na política, propaganda eleitoral em rádio, TV e internet, até a divulgação de pesquisas eleitorais. Até o momento, os resultados não são animadores, especialmente em relação à mudança do sistema eleitoral.
Com exceção dos parlamentares da comissão que votaram na proposta e outros que a defendem abertamente, parece ser unanimidade que o sistema eleitoral conhecido como “distritão” é um desastre. Aprovado na Comissão Especial de Reforma Política na Câmara de Deputados, mas que ainda precisa passar por outras etapas dentro do Congresso Nacional, o sistema que dizem só existir em países com baixa tradição democrática prevê que nas próximas eleições para deputados federais, estaduais e vereadores se adote um sistema majoritário em que o desperdício de votos dos eleitores será uma das grandes marcas. Assim, em São Paulo, por exemplo, os setenta candidatos mais votados terão assentos na Câmara de Deputados, enquanto os votos dados aos candidatos a partir da 71ª classificação serão desconsiderados para a construção da bancada do estado. É inegável que é um sistema de fácil compreensão, quase intuitivo. Justamente por isso, e pela descrença nos políticos e nos partidos políticos, o “distritão”, infelizmente, pode receber apoio da popular. Esse modelo eleitoral votado na comissão, entretanto, é tão desastroso para a composição das bancadas que não reforçará a representatividade e tampouco a governabilidade.
Com a adoção do “distritão”, parcelas expressivas da sociedade, embora minoritárias, correm o risco de ficar sem representação, cercadas por sistemas exclusivamente majoritários para todos os níveis do governo, o que é prejudicial do ponto de vista da representatividade do sistema. Há grande chance de que a maioria dos votos seja desperdiçada. No sistema proporcional adotado para a escolha dos deputados e vereadores até a última eleição, demonizado como se ele por si só fosse o responsável pela seleção da lamentável atual legislatura federal, a distribuição de cadeiras leva em conta os votos de todos, refletindo de alguma maneira o desejo de amplas parcelas dos eleitores.
Nem mesmo a governabilidade, muitas vezes colocada no extremo oposto da representação justamente porque é facilitada quando menos partidos recebem assentos no Parlamento, se beneficia do “distritão”. Como não será mais necessário que se somem os votos dados aos candidatos do partido para a definição do número de cadeiras que a agremiação teria direito, os partidos perderão peso. Pequenas e inexpressivas legendas poderão eleger candidatos populares sem precisar construir um cociente eleitoral, com grandes chances de aumentar, ou pelo menos não diminuir, o número de partidos na Câmara de Deputados. Teoricamente, quanto maior o número de partidos, maior seria a dificuldade de se construir maiorias e, portanto, maior a dificuldade de se governar.
Portanto, o “distritão” enfraquece os já combalidos partidos políticos, que terão um papel secundário nas eleições. Outro efeito possível é o encarecimento das campanhas, que serão disputadas em uma lógica majoritária e poderão demandar mais votos individualmente aos candidatos sem nenhum tipo de transferência partidária (no sistema atual, todo voto é um voto de legenda e, mesmo aquele que não é eleito, colabora para a eleição de um colega de partido ou coalizão). Outro efeito colateral do “distritão” pode ser o desestímulo para que novos atores disputem eleições, a não ser aqueles conhecidos pelo público em outras atividades com pouca relação com a militância política e social. E muita gente reclamava que o sistema proporcional elegeu um Tiririca...
Pelo projeto aprovado na comissão, a partir de 2022, o sistema deixaria de ser o atual proporcional de lista não ordenada (conhecido como lista aberta) e passaria a ser uma combinação do sistema proporcional e majoritário, como sempre defendeu o PSDB. Segundo o relator, em artigo publicado no jornal Folha de S. Paulo1, esta seria a única alternativa possível em um sistema polarizado entre o “distritão” e a defesa do sistema proporcional de lista fechada, ou pré-ordenada.
O texto da PEC aprovado propõe a regulamentação do sistema distrital misto em 2019. Até lá, caso o projeto também seja aprovado nos plenários do Congresso Nacional, teremos que conviver com algumas dúvidas. Por exemplo, como serão organizados os distritos? Há vários relatos de controvérsias em países que adotam eleições majoritárias em distritos uninominais. Há o risco de que o desenho beneficie um partido em detrimento de outro. A PEC também não é tão clara se transportaremos todos os aspectos e particularidades do sistema alemão, o país que inspirou o modelo. Adotaremos, por exemplo, uma cláusula de exclusão para aqueles partidos que não tiverem uma votação mínima nacionalmente?
A pergunta que pode ser feita, e eu sei que vários dos meus colegas cientistas políticos o fazem, é: qual a necessidade de se modificar o sistema eleitoral nesse grau sem ter garantias de que efetivamente ele passaria a funcionar a contento? Para as eleições de 2018, o consenso sobre o desastre do “distritão” é inequívoco. Mas mesmo em relação ao sistema distrital misto é possível questionar se os ganhos seriam assim tão expressivos. Some-se a isso que o sistema alemão teria a desvantagem de sua complexidade para o eleitor. Se o sistema combina virtudes, como disse o relator, não há garantias que impeça os problemas, como a convivência de parlamentares de dois tipos: aqueles com votação direta em seu distrito e outros escolhidos pelos partidos. Em suma, embora o sistema chamado de distrital misto não seja de todo mau, a questão é se os ganhos seriam assim tão expressivos que justificassem a mudança e a incerteza sobre as consequências. Isso sem contar que os políticos podem gostar do “distritão” e adiem ainda mais a adoção desse sistema.
Outro ponto levantado pela Proposta de Emenda Constitucional é em relação ao financiamento das campanhas eleitorais. É quase senso comum o diagnóstico de que as campanhas são caras e estabelecem laços não desejáveis entre doadores e políticos. A fórmula para se resolver essa questão, entretanto, está longe de ser um consenso, e a proposta aprovada na comissão enfrentará alguma dificuldade para ser aceita pela opinião pública, especialmente nesse momento de criminalização da política patrocinada pelo sistema de Justiça e pela imprensa brasileira. O relator Vicente Cândido (PT-SP) propôs a criação do Fundo Especial de Financiamento da Democracia (FEFD), composto principalmente por “dotações consignadas em lei orçamentária” e “arrecadação oriunda de doações e contribuições”.
Vários especialistas apontam que a limitação das doações ou o financiamento público não impediriam o uso de recursos não declarados. Somente a possibilidade de que o partido concorrente possa vir a buscar atalhos ao financiamento público poderia incentivar que os outros também buscassem financiadores tentando equilibrar a disputa, transformando instrumentos para baratear as campanhas em lei morta. Os que defendem a criação de instrumentos de financiamento público, por sua vez, argumentam que a definição a priori dos valores de cada campanha facilitaria a fiscalização. Campanhas muito caras chamariam atenção justamente porque a Justiça Eleitoral, os outros partidos, a imprensa e a sociedade saberiam com mais clareza os recursos destinados a cada partido. Essa medida, contudo, seria mais eficaz se atrelada a campanhas eleitorais coordenadas por partidos políticos, o que parece ser contrário ao “distritão”.
Outras pequenas modificações no sistema constavam no projeto aprovado pela Comissão Especial de Reforma Política, como a mudança na idade mínima para se candidatar ao cargo de governador de estado e tirar a posse dos eleitos do complicado dia 1º de janeiro para uma data mais razoável. Além disso, foram aprovadas propostas relativas ao Supremo Tribunal Federal, aos Tribunais e aos Tribunais de Contas. Embora esse debate tenha ganho ainda mais urgência frente aos acontecimentos políticos recentes, a inclusão desses temas nessa proposta de emenda constitucional parece um pouco fora de lugar. Seria mais apropriado um debate específico e mais amplo sobre novas formas de indicação e criação de mandatos para os ministros do TCU e STF, inclusive sobre suas atribuições institucionais.
No atual momento político, uma reforma política para mudar as regras eleitorais, que sempre pode gerar resultados adversos ao pretendido, é um risco considerável. Reforma nem sempre significa a criação de algo melhor do que o modelo que será substituído. Parte dos defensores da reforma política, inclusive no campo da esquerda, se apegaram ao enunciado geral e não se preocuparam em ler a conjuntura e a composição de forças no Parlamento. Depois das diversas demonstrações do que esse Congresso é capaz, por que os parlamentares votariam em instrumentos que aumentassem as incertezas sobre suas sobrevivências políticas e que reforçassem a democracia? Pois é, pior do que está, pode ficar.
- Fábio Kerche é doutor em Ciência Política pela USP, é pesquisador da Fundação Casa de Rui Barbosa, RJ. Foi organizador, junto com Maria Victoria Benevides e Paulo Vannuchi, do livro Reforma Política e Cidadania (SP, Editora Fundação Perseu Abramo, 2003)
Notas
1. Cândido, Vicente. “O debate da reforma política”. Folha de S. Paulo, 26/03/2017
Edição 163, 14 agosto 2017
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