Em busca da genealogia do golpe de 2016
- Opinión
As forças que se uniram para derrubar Dilma e o PT, nem sempre coordenadas ou convergentes, miraram o desmanche da política de fortalecimento do Estado e dos direitos sociais para iniciar uma ‘regressão liberal-conservadora’, resgatando a agenda neoliberal
Lançado recentemente pela Fundação Perseu Abramo, o livro “Brasil 2016: Recessão e Golpe” traz o resultado de um trabalho alentado do Grupo de Conjuntura da fundação para desvendar a genealogia do golpe de 2016, a partir de uma visão interdisciplinar. Doze professores e especialistas em áreas como economia, ciências sociais e relações internacionais fizeram um levantamento minucioso dos acontecimentos dos últimos anos atrás das causas não apenas da recessão em que o país mergulhou a partir de 2015, mas que já dava sinais entre 2011-2014, como da deposição da presidenta eleita e da ascensão de um governo com um programa totalmente diverso daquele escolhido nas urnas.
Entre 2014 e 2016, tudo virou do avesso no país. O Brasil saiu de uma democracia razoavelmente estabilizada, com pleno emprego, renda média em alta, colhendo os frutos da redução de desigualdades históricas e de um recém-conquistado protagonismo mundial, para viver um cenário de instituições em colapso, crise econômica aguda e de ataques aos direitos sociais duramente conquistados e consolidados na Constituição de 1988.
“A partir do espanto acerca dessas mudanças tão negativas é que nasceu esse livro”, explica um dos autores, o professor da Unicamp Guilherme Santos Mello.
Com base na constatação de que houve, de fato, um golpe, que resultou de uma conspiração, o trabalho busca responder algumas questões inquietantes. Entre elas: A quem servem o golpe e o governo Michel Temer? Por que o programa econômico de governo imposto aos brasileiros após o impeachment é ainda mais liberal do que aquele defendido pelos opositores de Dilma durante as eleições de 2014? Por que a presidenta perdeu apoio de setores industriais se ela pôs em prática muitas das propostas defendidas por suas entidades representantes, como a Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp) e a Confederação Nacional da Indústria (CNI)?
Nos 11 capítulos, é possível encontrar ainda o roteiro da erosão da governabilidade de Dilma e da sua popularidade, a análise de alguns problemas estruturais da economia brasileira herdados por ela, as razões da recessão e as diferenças marcantes entre os dois projetos, o de Lula-Dilma e o do conjunto de forças representado por Temer. Os quatro capítulos finais são dedicados a destrinchar o programa golpista e a estratégia de “desmanchar a herança do Estado desenvolvimentista dos governos do PT”, o que ocorre em meio ao aprofundamento da recessão.
Segundo Ana Luíza Matos de Oliveira, doutoranda no IE-Unicamp e também autora do estudo, o golpe de 2016 traz “uma visão de mundo que é a retomada dos valores dos anos 1990 com velhos e novos atores, como o Movimento Brasil Livre (MBL)”. Um claro roteiro programático do que pretendem os novos ocupantes do Executivo e os setores que eles representam está traçado nos documentos do PMDB Agenda Brasil e Ponte para o Futuro, de 2015, e Travessia Social, de 2016, que são tema de um capítulo inteiro.
Nesses documentos, analisados em detalhe, estão a inspiração da agenda de retrocessos sociais que Temer vem impondo ao país, a exemplo da emenda do teto para os gastos primários (PEC 55), da reforma da previdência e do recém-aprovado projeto com regras para ampliação da terceirização e trabalho temporário, como parte de uma reforma trabalhista em andamento. “Desfaz-se assim a justificativa de que o impeachment seria combate à corrupção: ao contrário, os arquitetos do golpe buscam, através dele, impor ao povo brasileiro um projeto privatizante, conservador e sem o crivo das urnas”, concluem os autores.
O mal-estar entre empresários e governo
No capítulo intitulado “A construção do golpe”, os autores buscam entender como se construiu a narrativa do processo de impeachment a ponto de ele ser aprovado tanto pelo Congresso como pela opinião pública, independentemente da comprovação de qualquer crime cometido por Dilma. O fato é que o que derrubou a petista pouco teve a ver com as famosas “pedaladas”. Em busca das respostas, as análises vão lá atrás, em 2011.
Antes mesmo das jornadas de junho de 2013, quando os jovens ocuparam as ruas inicialmente liderados pelo Movimento Passe Livre (MPL) – um ponto de inflexão na popularidade de Dilma – já havia um início de crise entre o governo e setores empresariais. Entre os motivos, a queda da Selic e das taxas de juros a partir dos bancos públicos, a política de exoneração fiscal para a indústria e o controle de preços administrados pelo governo, que “geraram um enfrentamento de parte das elites econômicas do país”.
Esse mal-estar, segundo o estudo, também se devia aos efeitos da crise econômica que se anunciava, e prenunciava uma disputa em torno dos cortes que viriam com a recessão – a chamada tese do conflito distributivo. Depois de Dilma reeleita, numa eleição apertadíssima, outros setores se posicionaram ainda mais fortemente contra o governo: os que perderam nas urnas, a imprensa e o Judiciário com sua Operação Lava Jato e a caçada seletiva aos corruptos.
Fato é que a configuração de forças que se aglutinou contra Dilma e o PT, a ponto de derrubar seu governo, era formada pelos grandes meios de comunicação, liderados por sete famílias, setores empresariais oligopolistas, associações patronais como a Federação Brasileira dos Bancos (Febraban), Fiesp, CNI e movimentos que se utilizam de mídias sociais, como MBL, Vem Pra Rua e Revoltados OnLine, mobilizadores da classe média.
Coordenados ou não, com interesses convergentes ou não, o resultado foi um “golpe de Estado contra o Estado”, que é o que estamos colhendo agora. Ou seja, o desmanche da política dos governos Lula e Dilma, com sua “arquitetura estatal baseada no fortalecimento dos investimentos e fundos públicos e no robustecimento das empresas estatais”, por um governo que iniciou uma “regressão liberal-conservadora” resgatando a agenda neoliberal. Agenda essa que, “se por um lado, impõe o Estado mínimo para os direitos sociais e trabalhistas, por outro promove o Estado máximo para os interesses do rentismo e do patrimonialismo”.
Leia o estudo na íntegra acessando aqui.
- Paula Quental é jornalista e integrante da equipe editorial do Brasil Debate
05/04/2017
http://brasildebate.com.br/em-busca-da-genealogia-do-golpe-de-2016/