Mexer com Lula é mexer com a democracia
- Opinión
Lula é um símbolo de luta, de conquista democrática. Ao se tratar Lula como um bandido, trata-se a democracia como uma bandidagem. O que acaba sobrando, nesse cenário de terra arrasada, são os fascistas celerados em torno de Bolsonaro e outras figuras que hoje pululam nas redes sociais, transformando-as em parques de diversões para exporem suas atitudes de raiva, ódio e intolerância. Imagens: Lula Marques
Eugênio Aragão – Parte 1
https://www.youtube.com/watch?v=3yiIFPI1NS0
O assunto de hoje vai ser uma matéria que eu cheguei a publicar no Consultor Jurídico e gerou algumas reações, muitas favoráveis e poucas que são vamos dizer assim de pessoas absolutamente inconformadas com qualquer tipo de crítica que se faça em relação a atuação da chamada operação Lava-Jato.
A matéria que se trata aqui diz respeito a certas distorções que são feitas por agentes do Estado, que trabalham na persecução penal, em relação ao instituto da delação premiada. Nós temos vistos várias vezes esses agentes do Estado apelarem para o Direito comparado para dizer que aquilo que eles estão fazendo no uso desse instrumento da delação, na verdade, já está consagrado em outros países. E o que tem sido mais utilizado como paradigma é o Direito italiano. Nós vimos aqui os colegas se referirem sempre as Mani Pulite a operação que se deu no início da década de noventa de desbaratamento da máfia na Itália e de todas as relações que essa máfia mantinha com a classe política. Essa operação que para muitos é um símbolo da atuação eficiente no combate a corrupção, na verdade, foi um grande desastre para a Itália.
Porque a partir dela nós vimos todos os partidos políticos que se formaram ao longo da História do pós-guerra da Itália, como o Partido Democrata Cristão, o Partido Comunista, o Partido Socialista e muitos outros simplesmente desaparecerem da paisagem política e abrindo espaço para aventureiros de todos os tipos para ocuparem as cadeiras vazias deixadas por esses partidos tradicionais. Berlusconi é, vamos dizer, um produto dessa operação Mani Pulite e com certeza não foi um ganho para a Itália. Porque o grau de hipocrisia em relação e diria até mais o grau de cinismo em relação as más práticas se tornou uma marca permanente daquele governo. Berlusconi não só colocou a Itália quase a pique, mas ainda por cima introduziu na política italiana não só o ódio como também introduziu nela novos traços de fascismo. É isso o que sobrou da política italiana. É isso o que nós vamos querer pro Brasil? Eu pergunto. Porque essa comparação com as Mani Pulite tem sido feita de uma forma muito elogiosa e de uma forma extremamente entusiasmada por parte dos nossos agentes persecutórios.
Como se fosse uma grande coisa que a Itália tivesse conseguido. E no entanto, apesar de todo esse desastre que as Mani Pulite foram pra Itália, aqui no Brasil temos que olhar para aspectos próprios da persecução da corrupção no país. Que a política no Brasil não é coisa de carmelitas de pés descalços, isso até as pedras sabem. Brasil tem uma prática política extremamente corrupta pelo patrimonialismo arraigado nos nossos agente públicos e também pelo clientelismo que faz parte das relações entre os grandes atores do Estado. Essa coisa de uma mão lava a outra e as duas mãos lavam a cara é uma marca da política brasileira, a política do jeitinho. Mas é o que nós conseguimos fazer durante todo esse mais de século de República. Nesses últimos anos em que nós conseguimos dar alguns saltos na nossa cultura democrática, é exatamente nesse período que então o Ministério Público e o Judiciário resolvem apertar o parafuso da persecução a corrupção secular no Brasil. Não para pegar os seus atores tradicionais, mas aqueles que tiveram que se aliar a eles para conseguir o mínimo de estabilidade e de governabilidade nos seus programas de inclusão social.
Não se vai dizer aqui que só tem santo em qualquer um dos lados. Já lhes disse há pouco que política no Brasil não é coisa de carmelitas de pés descalços. Mas essa seletividade, esse tratamento diferenciado que se deu a alguns em detrimento dos outros, nem na Itália se viu. Na Itália o que se viu foi uma política de terra arrasada, que da esquerda até a direita. No Brasil parece que quem está sendo alvo dos petardos mais pesados é a esquerda. Mas, caros amigos e caras amigas voltando as Mani Pulite e uma comparação com a Lava-Jato. Essa comparação do ponto de vista técnico ela é grosseira. Porque? Porque a legislação italiana quando trata da delação premiada, ela o faz dentro de um contexto de combate a organizações mafiosas. O que são organizações mafiosas? São organizações construídas na base do segredo interno para agirem dentro de um mercado paralelo do crime. As organizações mafiosas têm uma cultura da violência que está marcada principalmente na sanção gravíssima que se dá aos traidores.
A máfia com sua omertà exige de seus membros absoluto silêncio para fora de seus negócios internos. E quando esse silêncio é quebrado, aquele que violou essa regra da omertà só tem uma coisa a esperar: a morte, sua ou de seus familiares. Então, é um contexto muito diferente de combate a criminalidade se comparado com aquilo que virou um certo abuso das autoridades persecutórias no Brasil no manejo da expressão de organizações criminosas.
Eugênio Aragão – Parte 2
https://www.youtube.com/watch?v=AxQpwGYY8-4
No Brasil nós temos organizações criminosas muito próximas ao tipo mafioso. Que é o comando vermelho, os amigos dos amigos, o terceiro comando no Rio de Janeiro ou o primeiro comando da capital, em São Paulo. São organizações também construídas na base da violência que também sancionam de forma drástica os seus traidores e que impõe uma lei extremamente draconiana a população que eles usam como escudo nos morros onde fazem os seus negócios. É muito parecido, mas nós vamos ver que nossa legislação que cuida do crime organizado ela não se restringe que nem a italiana a esse tipo de organização. Não, ela dá uma definição tão ampla a organizações criminosas que basta que haja uma estrutura, que haja uma divisão de trabalho e que isso tudo seja feito em proveito do crime lucrativo.
Em função disso nós temos visto essa compreensão extremamente flexível do que seja uma organização criminosa. Nós temos visto desde o mensalão que é anterior a essa legislação um abuso do Ministério Público e da Polícia no uso dessa expressão. Nós vemos partidos, nós vemos instituições financeiras, nós vemos qualquer tipo de sociedade empresarial num piscar de olhos, de uma hora para a outra, ser qualificada como organização criminosa. Se dentro de um modelo teórico se vislumbra que essas pessoas coletivas tenhas qualquer tipo de relação com algum tipo de negócio escuso. Chegou-se até mesmo a querer qualificar o governo federal de organização criminosa. O que é um completo contrassenso.
Então, banalizou-se o uso, e se você banaliza o uso dessa expressão gravíssima que é reservada a tipo de crimes de uma certa envergadura, claro que os usos dos instrumentos típicos para o combate dessas organizações que cometem crimes graves, acabam tendo uma aparência abusiva, de abuso. Porque passa-se a adotar táticas extremamente duras e violentas contra pessoas que não são violentas e das quais não se deve esperar qualquer tipo de atitude, de ameaça a outro, à integridade física ou até à vida de seus delatores, por exemplo.
Condução coercitiva tem sido usada de forma absolutamente exagerada. Quando nós vimos, por exemplo, há quase um Lula ser conduzido coercitivamente em um verdadeiro show midiático, sendo que ele sequer tinha sido intimado para um ato judicial ou um ato de instrução. Mas isso aconteceu não só com o Lula. Isso aconteceu com inúmeros atores da política nacional e da economia nacional. Mas com o Lula teve até uma gravidade maior, pelo símbolo que Lula encerra. Como um político que nas últimas duas décadas teve um papel central na democratização desse país. É um símbolo de luta, um símbolo de conquista democrática. E ao se tratar Lula como um bandido, na verdade, se trata a democracia como uma bandidagem. E o que acaba sobrando é na verdade, nesse cenário de terra arrasada na política e na democracia são os fascistas celerados em torno de Bolsonaro e outras figuras que hoje infelizmente pululam nas redes sociais transformando-as em parques de diversões para exporem as suas atitudes de raiva, de ódio e de intolerância. Então, mexer com Lula é mexer com a democracia. E é mexer com valores que são muito caros para a nossa civilização democrática. Mas isso se deu sobretudo porque nós utilizamos mecanismos que são destinados no Direito comparado para organizações perigosas tipo mafioso ou terrorista para atacar politicamente alguns atores previamente selecionados.
Então essa é uma forma sim, não de se criminalizar a política, mas sobretudo de criminalizar a democracia. E isso é extremamente grave.
Com o uso de um instrumento que não foi feito para isso. Da mesma forma quando as autoridades italianas conceberam a delação premiada, eles a conceberam para beneficiar pessoas que por serem arrependidos e terem ousado quebrar o código de silêncio da organização correm extremo risco de vida. Então, essas pessoas estão dispostas a tudo para salvarem a pele e a pele de sua família. É muito diferente de um empresário que é preso e é mantido preso kafkianamente sem prazo apenas para que diga o que saiba. Esse empresário se for abrir a boca ele não tem nenhum risco em relação a sua vida ou integridade de sua família. Pelo contrário, na verdade, ele talvez até virará um herói nacional dessa direita ensandecida, se ele atacar pessoas previamente selecionadas. Então, para ele dizer qualquer coisa que lhe passe pela cabeça e que agrade aos seus interlocutores inquisidores não é problema nenhum. Então aí acaba faltando seriedade na própria delação. Qual é a veracidade ou a certeza de veracidade de uma delação tomada de alguém que apenas quer se livrar de um incômodo de estar preso e voltar para casa. Mas que não está correndo grandes riscos.
Essa pessoa inventa qualquer coisa pra se ver livre desse incômodo, que não deixa de ser uma extorsão de um depoimento dessa pessoa. Um situação completamente diferente. E aí nós temos situações, por exemplo, como a de Delcidio Amaral que no outro dia ainda disse que ele é acostumado a bazófias em relação aos outros. Ou seja, admitiu que muita coisa que ele disse não tinha nenhum grau de veracidade dentro das delações. Mas causou dor de cabeça em muita gente. E depois a gente teve aquele outro empresário que disse que deu um cheque de um milhão para o PT, pra campanha de Dilma. E depois aparece o tal do cheque nominal a Michel Temer. E isso que ele dizia que era uma operação de suborno ou de caixa dois, de repente, ele quer retificar o seu depoimento pra dizer: não, por se tratar de Michel Temer, essa era uma doação legal. Qual é o grau de confiabilidade desses depoimentos? Então, é importante que Ministério Público se atenha nessas operações à letra estrita da lei. E a lei não permite que se saia divulgando delações que não tem conteúdo sério nenhum. Que apenas mexem com a presunção de inocência de muitos atores políticos, muitos deles, honestos. Sim, existe no Brasil também políticos honestos. Não seria justo com eles colocarem todos dentro do mesmo saco.
E normalmente esses honestos sofrem muito mais quando são envolvidos injustamente numa delação. Portanto nós temos um mau uso de um instrumento com resultados pífios. E aí fica então a advertência para os próximos dias quando começarem a surgir as informações relativa a tão esperada delação de Marcelo Odebrecht. Vejamos isso sempre cum grano salis, ou seja, com muito cuidado. Não nos afobemos. Não entremos nessa febre de querer apontar o dedo para o outro. Até porque muitos de nós, que apontam o dedo para o outro, não têm nenhuma moral para isso. Muito obrigado senhores ouvintes, senhoras ouvintes e até a próxima.
Eugenio Aragão é um jurista brasileiro, membro do Ministério Público Federal desde 1987, sub-procurador-geral da República.
http://www.nocaute.blog.br/brasil/mexer-com-lula-e-mexer-com-democracia.html
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