História já presta homenagem a Fidel
- Opinión
Vamos reconhecer que a história reservou uma última e até divertida homenagem a Fidel Castro. Enfrentando a pior crise desde 1929, quando conquistas importantes dos trabalhadores têm sido revogadas em cruéis programas de austeridade na maioria dos países desenvolvidos, enquanto a população super explorada de antigas reservas coloniais é obrigada a fugir da fome, da miséria e da guerra em barcaças pelo Mediterrâneo, em fronteiras clandestinas no Sul dos Estados Unidos e outras operações que apenas revelam a permanência de vergonhosas tragédias humanas em pleno século XXI, Fidel morreu como o mais irredutível adversário do regime capitalista de nosso tempo.
É possível fazer muitas críticas e apontar atos incoerentes em sua existência como líder revolucionário e homem de governo. Você irá ler algumas delas em alguns parágrafos deste texto. Mas em primeiro lugar é preciso registrar um ponto, uma prioridade, que diferencia Fidel dos demais.
Fosse em Cuba, fosse em sua intervenção internacional, ele construiu uma linha permanente de resistência ao regime capitalista e de combate ao imperialismo. Todas as tentativas de assassinato que enfrentou tinham uma meta principal: devolver Cuba ao grande cassino do capitalismo, à folia dos especulares e exploradores. Mas Fidel conseguiu resistir, dentro das fronteiras e fora delas.
Encarou cinco décadas de um bloqueio injusto, moralmente covarde e politicamente reacionário, para chegar ao fim da existência com uma sustentação única. Amealhou um apoio amplo e profundo que fez a maioria dos adversários, internos e externos, jamais se animar para defender eleições diretas no país, pois não era nem um pouco difícil imaginar quem seria vitorioso.
A prioridade no combate à desigualdade estrutural de Cuba – equivalente as demais nações do Continente -- pagou seus frutos. A qualidade da educação pública faz do trabalhador cubano uma mão de obra com lugar assegurado no mercado de qualquer nação do mundo. A eficiência de seu sistema de Saúde já foi comprovada diretamente pelos brasileiros – e outros povos do planeta -- através do Mais Médicos.
Nas guerras de independência de Angola, sua atuação teve um valor além das fronteiras, contribuindo de forma decisiva para a destruição do apartheid apoiado pelos campeões de uma época em que se profetizava o fim da História, Ronald Reagan e Margaret Thatcher. Na América Latina, a atuação nos bastidores diplomáticos fez de Fidel um dos principais adversários da ALCA, o programa de recolonização promovido por Washington na década de 1990. Mesmo excluído das reuniões plenárias, em função do bloqueio diplomático, sua influência sobre vários presidentes sul-americanos era conhecida, em particular junto a Hugo Chávez, que chegou a denunciar a ALCA num encontro em Ottawa, chamando o presidente brasileiro Fernando Henrique Cardoso a fazer o mesmo, sem ser atendido, naturalmente.
Personagem e protagonista de seu tempo, seria até injusto colocar o papel de Fidel acima de bem e do mal. Mas eu acho que vale a pena debater dois pontos. Se é verdade que a história registra poucas epopeias espetaculares como a vitória dos guerrilheiros barbudos que desembarcaram em Cuba a bordo de um iate, é difícil negar que o próprio Fidel acreditou demais numa repetição desses episódios, em outros países, outras sociedades, outras latitudes. Não foi assim, sabemos todos.
Em 1968, na Primavera de Praga, quando se processava a mais importante tentativa de reformar um regime socialista por dentro, Fidel assegurou apoio incondicional às Tropas do Pacto de Varsóvia que invadiram um dos países mais avançados da Europa Central e ali instalaram um regime submetido a Moscou. Pela autoridade imensa que a Revolução Cubana lhe assegurava, perdeu uma oportunidade – única na história – para fazer um debate necessário, que envolve socialismo e democracia, ou revolução e liberdade, questões que a humanidade não resolveu até hoje.
Numa das esquinas frequentes do jornalismo, acompanhei de perto uma das múltiplas tentativas de assassinato de Fidel. Não estou falando de um atentado, mas de uma informação grave e errada, divulgada em 2006, de que estava condenado por um câncer terminal.
A notícia foi divulgada pela Time, a lendária semanal americana que, entre seus fundadores, teve um admirador confesso de Adolf Hitler. Reproduzida no mundo inteiro num ambiente de comemoração de uma mídia que desprezava até uma boa hipocrisia fúnebre, teve impacto mundial. Seu caráter falso, contudo, logo se tornou um segredo de polichinelo em Havana, como pude comprovar numa visita que fiz ao país, revezando direitos de turista com a curiosidade de jornalista. Após várias conversas em círculos diplomáticos da capital cubana, publiquei uma reportagem no Estado de S. Paulo informando da tremenda derrapada do jornalismo mundial. O tempo mostrou que essa versão estava correta. Não me recordo de nenhuma publicação que tenha reconhecido o erro naquele período, em mais uma prova de que, conforme o personagem envolvido, o interesse ideológico pode falar mais alto do que o respeito a informação correta – ainda que se trate de uma notícia de câncer sobre um dos principais líderes políticos do mundo.
Por essa amostra, ao vivo e a cores, podemos imaginar a qualidade das informações sobre Cuba que a grande mídia apresentou no último meio século sobre Cuba.
- Paulo Moreira Leite, jornalista e escritor, é diretor do 247 em Brasília
30 de Novembro de 2016
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