Gritos perdidos na indiferença

06/10/2016
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Depois de dez anos e meio como bispo de Boa Vista, no Estado da Roraima, a partir de Dezembro de 2015, Dom Roque Paloschi é arcebispo de Porto Velho, capital da Rondónia. Alguns meses antes da sua transferência, o prelado – nascido na pequena cidade de Progresso – no Estado do Rio Grande do Sul – tinha sido nomeado presidente do Conselho Indigenista Missionário (CIMI), a organização criada em 1972 para apoiar a luta dos povos indígenas do Brasil. No final de Julho, o CIMI obteve o estatuto de consultor para a temática indígena no Conselho Económico e Social (Ecosoc) das Nações Unidas.

 

Este momento histórico 

 

Dom Paloschi, o Brasil está a viver um período histórico muito particular.

 

Sem dúvida. É um momento que nasce também de uma luta contra as conquistas sociais obtidas nos últimos anos. O novo Governo de Michel Temer é composto por corruptos, como o demonstra a situação de vários ministros. 

 

No decurso do último ano, passou da diocese de Boa Vista para a de Porto Velho. Tornou-se também presidente do Conselho Indigenista Missionário (CIMI). Qual das duas tarefas considera que será mais difícil?

 

São dois desafios novos que exigem muito empenho. Todavia, não há dúvida que a questão indígena é hoje uma temática crucial no Brasil.

 

Falemos então do CIMI, o organismo da Conferência Episcopal Brasileira.

 

Foi criado nos anos 70 para acompanhar o caminho dos povos indígenas. Após oito anos com D. Erwin Kräutler à frente, desde há um ano eu assumi a sua presidência. Hoje o organismo está a viver um momento muito absorvente por causa da difícil condição dos indígenas. No Mato Grosso do Sul foi inclusive criada uma Comissão Parlamentar de Inquérito para investigar sobre o seu comportamento.

 

O CIMI tornou público no passado 15 de Setembro, como faz cada ano, o relatório sobre as violências perpetradas contra os povos indígenas no Brasil. Que quadro se apresenta?

 

Que também no decurso de 2015 os povos indígenas sofreram um grande número de violências. Este relatório é um trabalho reconhecido a nível internacional. Com ele nós denunciamos a violência das empresas mineiras, das da agro-indústria e da madeira, mas também do Governo com as suas repressões policiescas em relação às populações indígenas.

 

Em finais de Dezembro, um menino de etnia Kaingang foi morto na estação dos autocarros perante os olhos da mãe. Como é que o país reagiu?

 

O assassino do Victor (1), um menino de dois anos, demonstra que a sociedade é discriminatória, muitas vezes alimentada pelos grandes meios de comunicação social do Brasil. A sua morte provocou, evidentemente, uma certa comoção, mas não há uma atitude de aceitação da sociedade brasileira face aos indígenas e a sua cultura. É violenta.

 

A política «Bala, Boi, Bíblia»

 

Pode fazer uma lista dos principais problemas dos povos indígenas do Brasil?

 

O maior problema é a indiferença da sociedade brasileira. Uma indiferença histórica, que parte dos colonizadores que viam nos povos indígenas uma cultura atrasada. Como se não fossem pessoas com uma dignidade. O segundo problema é a agressão aos direitos que, a custos elevadíssimos, foram introduzidos na Constituição de 1988. Hoje há uma tentativa de desconstrução destes direitos através de muitas propostas de alterações constitucionais (Proposta de emenda constitucional, Pec). Há depois a invasão das terras demarcadas por mão de vários sujeitos: as companhias mineiras, as empresas da madeira, as companhias para as grandes obras do Governo. Podemos aqui recordar as centrais de Belo Monte, Balbina, Jirau e muitas outras. Há por fim o grande problema da saúde indígena, que se encontra num caos generalizado: as suas perspectivas são muito difíceis.

 

Antes de ser destituída, a presidente Dilma não tinha feito muito pela questão indígena. Basta pensar que tinha como ministra da Agricultura Kátia Abreu, conhecida ruralista e anti-indígena. 

 

Para os povos indígenas o governo Temer constituirá uma prova bem mais difícil do que o governo de Dilma. O objectivo deste governo é eliminar os direitos dos povos indígenas. É abrir o acesso às terras indígenas. É cortar as políticas de promoção indígena: da educação diferenciada às universidades. Nós não temos ilusões quanto ao governo Temer. Como não as temos quanto ao Congresso Nacional, cada vez mais hostil com a causa indígena e a causa afro. É um Congresso extremamente conservador e interessado apenas no capital internacional.

 

Dom Roque, o senhor confirma que o Congresso brasileiro é dominado por partidos adversos aos povos indígenas?

 

Confirmo. No Congresso nacional temos três bancadas anti-indígenas: a da Bíblia, a da bala e a do boi (2). Também o poder judiciário tem uma atitude completamente contrária. Numa palavra, todos os poderes do Estado mostram uma grande intolerância face aos povos indígenas.

 

A ilusão do desenvolvimento

 

Dom Roque, uma das objecções que se levantam às políticas indigenistas pode sintetizar-se numa frase: demasiada terra para poucos indígenas.

 

É uma objecção infundada. Primeiro, toda a terra do Brasil era deles. Eles habitavam-na desde há muito tempo. Segundo, os indígenas têm um usufruto da terra e não a propriedade. Terceiro, é geralmente reconhecido, também pelo próprio Governo brasileiro, que as terras indígenas estão mais bem conservadas que as outras. Não mostram a destruição da Natureza como as outras. Os rios em terra indígena, os que não foram invadidos pelos garimpeiros, são de água cristalina. Por último, não é que a terra pertença aos indígenas, são os indígenas que pertencem à terra. Pertencer à terra em vez de ser seu proprietário é o que caracteriza um indígena. Esta é a diferença que, à primeira vista, aos nossos olhos parece incompreensível.

 

Uma outra objecção diz respeito à necessidade do desenvolvimento económico, sobretudo agora que o país passou do milagre económico à crise.

 

O país tem de encontrar o equilíbrio. Todos estes projectos servem? Nós temos de perguntar-nos que desenvolvimento queremos. Um desenvolvimento onde poucos têm muito e muitos não têm nada? Ou um desenvolvimento equilibrado em que haja uma relação correcta com o ambiente e a criação? Esta Casa comum – como a chama o papa – é muito mal administrada. Os povos indígenas são os que podem ensinar-nos a cuidá-la e a mantê-la. Segundo: com este ritmo de desenvolvimento não poderá haver recursos para todos. É necessário um percurso de austeridade, uma vida mais sóbria em vez da actual que prevê o consumo pelo consumo.

 

É um facto que na Amazónia se esteja a fazer de tudo. De modo legal e ilegal.

 

A Amazónia foi sempre vista como o lugar da abundância. Por Portugal primeiro, pelo Brasil depois, mas não pelos povos indígenas. Os seus recursos estiveram ao serviço do capital, nacional e internacional. Os projectos caem de cima e não respeitam os modos de viver dos que ali vivem desde sempre. Por outras palavras, são pensados para servir os grandes interesses e não certamente os povos amazónicos.

 

O CIMI é muitas vezes acusado de fazer política. Como são as suas relações com o poder?

 

A nossa relação é extremamente discreta. O nosso trabalho não precisa de presidentes. Nós seguimos o Evangelho.

 

A Casa comum: destruidores e defensores

 

Dom Roque, o que pensa da atitude do Papa Francisco a respeito dos povos indígenas? E dos erros cometidos no passado pela Igreja Católica em relação a eles?

 

Já na Evangelii Gaudium o papa tinha falado dos povos indígenas. Na Laudato Si’ foi mais além escrevendo quase um hino de reconhecimento à riqueza dos povos indígenas. Quanto ao passado, em vários discursos proferidos na Bolívia e no México, Francisco reconheceu os pecados cometidos pela Igreja Católica relativamente a eles. Nós esperamos a sua visita ao Brasil em 2017. Estamos a procurar inserir uma etapa no Pará e em particular na região do rio Tapajós, onde a construção dos diques – estão previstos pelo menos 43 – está a pôr em risco a existência de muitos povos, inclusive alguns ainda incontactados (3).

 

Desde sempre os povos indígenas são apontados como populações retrógradas. O senhor defende que as suas modalidades de vida podem ensinar muito a nós ocidentais.

 

Desde há 500 anos que os povos indígenas puseram em causa a rapina e a violência contra a Mãe Terra, imposta pelo Ocidente com o seu modelo económico e de desenvolvimento fortemente destrutivo. Os povos indígenas podem-nos ensinar uma relação harmoniosa com o ambiente e a Natureza. Podem-nos ensinar a viver sem ser escravos do dinheiro e da acumulação.

 

Dom Roque,(4) como vê o futuro o presidente do CIMI?

 

A decisão está nas nossas mãos: ou acolher o grito dos povos indígenas ou destruir a nossa Casa comum em nome do lucro e do bem-estar de poucos. 

 

Notas

 

1. Sobre os assassinos dos indígenas na América Latina, veja-se: Além-Mar, Junho 2016.

 

2. A bancada da Bíblia é liderada pelo pastor neopentecostal Marco Feliciano, a do boi pelo médico e ruralista Ronaldo Caiado e a da bala pelo militar Jair Bolsonaro.

 

3. Sobre as obras em terras indígenas, veja- -se: CIMI, Empreendimentos que impactam terras indígenas, 2014.

 

4. Veja uma recente entrevista a D. Paloschi no canal de YouTube de Paolo Moiola: www.youtube.com/user/pamovideo.

 

- Paolo Moiola, Revista Além Mar (Lisboa, Portugual)

 

https://www.alainet.org/pt/articulo/180757
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