O vocabulário da luta

13/09/2016
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Um militante socialista alemão -- que nasceu e morreu no século 19 -- dizia que a classe trabalhadora tem três tarefas permanentes: estudarorganizar e lutar.

 

Outro militante socialista -- um russo que nasceu no século 19 e morreu no século 20 -- dizia que o segredo da vitória da classe trabalhadora estava na ação coletiva.

 

Estudo, organização e luta coletiva: estes são três aspectos permanentes de nossa ação.

 

O sucesso de cada um destes aspectos está em parte vinculado ao convencimento individual, ao engajamento individual, à responsabilidade individual.

 

Mas da mesma forma que "uma andorinha só não faz verão", a ação da classe trabalhadora só tem êxito quando dezenas, centenas, milhares, milhões de trabalhadores e trabalhadoras se engajam.

 

Por quais motivos um indivíduo se engaja na luta? São os mais variados.

 

Por quais motivos milhões de trabalhadores e trabalhadoras se engajam na luta? Em geral, trata-se de uma reação às agressões feitas pelos empresários, diretamente e/ou através das instituições que agem em favor dos capitalistas (ou seja, da classe que explora quem vende sua força de trabalho em troca de um salário).

 

Todo dia há indivíduos que despertam para a luta.

 

Mas não é todo dia que milhões de pessoas despertam para a luta. Aqueles que já são lutadores precisam lidar com este descompasso entre a consciência das “vanguardas” e a consciência das “massas”.

 

As alternativas básicas para lidar com isto são:

 

a) aguardar passivamente que as “massas” despertem;

 

ou...

 

b) tentar substituir a ação das massas pela ação de uma minoria;

 

ou...

 

c) fazer alianças com os empresários e seus representantes (não podendo vencer, unir-se ao inimigo);

 

ou...

 

d) estudar, organizar e lutar, sendo que esta luta deve ocorrer na medida (forma e conteúdo) necessária para contribuir na alteração do nível de consciência e organização dos milhões. 

 

Esta quarta alternativa baseia-se em pelo menos dois pressupostos:

 

a) que a ação política e ideológica das vanguardas pode estimular, acelerar e direcionar o processo de conscientização das massas;

 

b) que este trabalho político e ideológico organizado, combinado com o processo espontâneo de conscientização e mobilização, pode fazer a maioria da classe trabalhadora adquirir consciência acerca de seus interesses e converter-se em uma maioria política com consciência de si.

 

Para saber como fazer isto, para organizar melhor e lutar do jeito certo, é fundamental que as vanguardas estudem (compreendendo por estudar não apenas tomar contato com conhecimento já produzido, mas também investigar a realidade e produzir conhecimento novo).

 

Estudar quem somos, pelo que lutamos, contra o quê e contra quem lutamos; aprender com quem lutou antes de nós e com os que lutam em outras regiões do Brasil, da América Latina e do mundo. Responder as velhas questões e também as novas questões.

 

Estudar é trabalhar; e trabalhar exige disposição, esforço e técnica. Um dos aspectos técnicos envolvidos no estudo é o domínio da linguagem.

 

Cada profissão tem seu vocabulário, um conjunto de termos que os trabalhadores daquela profissão utilizam para se comunicar.

 

Qual é o vocabulário da luta? Quais os termos, as palavras, as categorias, os vocábulos utilizados pela classe trabalhadora na luta por seus interesses?

 

Como sempre acontece, o verbo surge da ação, da vida cotidiana da classe, das lutas que ela desenvolve, muitas vezes tomando as palavras de empréstimo das demais classes (assim como tomamos palavras de empréstimo de outros povos, de outras línguas e de outras épocas).

 

Um bom exemplo disto é a palavra greve.

 

Segundo alguns estudiosos, a palavra tem origem latina, designando areia ou cascalho. Estes estudiosos nos informam que a Place de Grève (Praça da Greve) ficava em Paris, à beira do rio Sena, num ponto em que se acumulava areia e cascalho. Nesta praça reuniam-se trabalhadores que estavam sem trabalho, à busca de um emprego. Mais adiante, o termo será empregado não para designar trabalhadores em situação passiva (parados por falta de um empregador), mas sim trabalhadores em situação ativa (parado contra seus empregadores).

 

O vocabulário da luta é atualizado de forma permanente.

 

Certas palavras vão mudando de significado. Outras palavras possuem diferentes significados, a depender do país, do momento da história, do setor da classe que as utiliza.

 

Por exemplo: governo e poder.

 

É muito comum ouvirmos algumas pessoas falarem que “o PT chegou ao poder em 2002”. Ao que outras respondem: “o PT nunca chegou ao poder, apenas conquistamos o governo”. E outras lembram que a questão não está em que um partido chegue ao poder, mas sim que a classe trabalhadora chegue ao poder.

 

Por trás destas três frases e de suas variantes, há visões distintas acerca do que seja a política, o poder, o Estado, o governo e os processos eleitorais, a relação entre os partidos e as classes etc.

 

Portanto, um dos desafios que enfrentamos, quando se trata de estudar, é dominar o vocabulário “técnico” com o qual descrevemos a luta e planejamos nossa intervenção nela. 

 

Há várias maneiras de fazer isto. A que consideramos mais adequada é a que toma como referência -- como “critério da verdade” -- a realidade.

 

Ou seja: cada um pode significar como quiser termos como classes sociais luta de classesEstado e políticapartidos sindicatosconjuntura, tática e estratégia.

 

Mas para que haja diálogo e ação comum, é preciso que muitas pessoas signifiquem da mesma forma.

 

E para que isto seja possível, é preciso que aqueles termos expressem algo em comum para muitas pessoas. E este “algo em comum” é... a realidade, a prática social, a ação e o produto da ação de dezenas e centenas de milhões de pessoas.

 

Com um detalhe importante: a realidade social se transforma o tempo todo. E esta transformação ocorre antes de ser traduzida em palavras, em conceitos, em categorias, termos e vocábulos. Por isto é comum que utilizemos palavras antigas (que designam fenômenos passados) para denominar acontecimentos do “presente” e previsões que fazemos sobre o futuro.

 

Como dizia um poeta alemão, a coruja do conhecimento alça voo ao anoitecer. As palavras que utilizamos para falar do presente e do futuro tiveram origem no passado e designavam originalmente realidades passadas.

 

Um exemplo disto: a palavra utopia. O termo é de origem grega: u-topos, não lugar, um lugar que não existe. Foi utilizado como título para um livro publicado por volta de 1516 (há 500 anos, portanto). Naquele livro, Thomas Morus criava um personagem que descrevia uma sociedade existente em uma ilha a qual chegara através de um naufrágio. Portanto, uma sociedade que era contemporânea aos personagens do livro e também aos leitores do livro.

 

Pois bem: desde o século 19 até hoje o termo utopia é muito utilizado para designar uma sociedade... futura!!!

 

Aqui se faz necessário falar de um “detalhe” importante: a ação humana faz parte da realidade, tanto como observadora quanto como construtora da realidade.

 

Se muitos seres humanos acreditam em algo e organizam-se em função desta crença, isto gera uma realidade, mesmo que aquela crença seja fantástica, ficcional, artificial, ilusória, um mito. As ideias quando são incorporadas por muita gente convertem-se em força material.

 

Aliás, um filósofo alemão do século 19 dizia que não foi Deus que criou o homem, foi o homem que criou Deus. Ou, poderíamos dizer, os seres humanos criaram vários deuses, igrejas e doutrinas que serviram como linguagem para expressar determinados interesses sociais durante muitos séculos. Os deuses podem não existir, mas as igrejas e os movimentos religiosos existem, assim como existem e atuam aquelas milhões de pessoas que são crentes.

 

Antes de existir o vocabulário da luta da classe trabalhadora, existiu o vocabulário da luta dos burgueses. E antes disto, o vocabulário utilizado para expressar os interesses dos senhores feudais (e também pelos que se opunham aos feudais) era um vocabulário religioso.

 

Foram as revoluções burguesas (séculos 17 a 19) que “criaram” um vocabulário político laico.

 

Entre 1789 e 1917, a classe trabalhadora de todo o mundo utilizou um vocabulário político surgido principalmente da revolução francesa.

 

O exemplo clássico disto: as palavras esquerda e direita, bem como a expressão partidos políticos.

 

A revolução francesa, por sua vez, foi buscar estes e outros termos políticos na antiguidade grego-romana. Por exemplo: democracia, república e proletariado. Mas também resgatou e adaptou termos utilizados por movimentos religiosos, econômicos e políticos dos séculos anteriores!!!

 

Partindo do vocabulário surgido da grande revolução francesa de 1789, o movimento da classe trabalhadora ao longo do século 19 foi “criando” -- o que geralmente significa resignificar ou customizar -- seus próprios termos.

 

É o caso de termos como greve, proletariado, socialdemocracia, trabalhismo, anarquismo, populismo, cooperativismo, socialismo e comunismo.

 

Com a revolução russa de 1917 surgiu um novo paradigma: até então, o vocabulário político tinha como referência a revolução francesa de 1789. A partir de 1917, passou a existir uma nova referência. Processo semelhante ocorreria com outras revoluções, que pelo seu impacto na realidade converteram-se em fonte de transformação, de inspiração, foram tomadas como modelo ou exemplo.

 

A partir de 1917 e até hoje, o vocabulário da luta continuou mudando.

 

Mudanças no capitalismo, mudanças na luta da classe trabalhadora, surgimento (ou reconhecimento da existência) de outros setores sociais e de outras questões, diferentes tentativas de transição socialista, além de muitas derrotas, todas estas novidades se expressaram em palavras velhas ou novas, assim como em inventos como é o caso do termo neoliberalismo.

 

Portanto, estudar o vocabulário da luta não é a mesma coisa que estudar matemática básica. Podemos dizer que é mais parecido com o estudo da literatura ou da pintura, em que uma mesma obra pode gerar diferentes percepções e avaliações, sendo sempre necessário distinguir entre os aspectos “objetivos” e os aspectos “subjetivos” da obra. E poucas vezes é possível chegar a um acordo, embora seja possível entender o que cada um quer dizer.

 

Com todos estes cuidados, quais são os termos fundamentais que precisam ser conhecidos por quem deseja organizar melhor e lutar melhor? Que vocabulário básico precisa ser dominado pelos militantes, lutadores, revolucionários?

 

Alguns dos termos essenciais são: classes sociais, luta de classes, formação social, modo de produção, Estado, politica, partido político, reforma, revolução, estratégia, tática, conjuntura.

 

Não há definições universais para cada um destes termos. O que veremos a seguir é -- mais que um dicionário -- um guia para estudo.

 

Classes sociais

 

O que diferencia os seres humanos de outros animais? Fundamentalmente a capacidade de transformar a natureza, ou seja, o trabalho.

 

Temos aqui uma interessante história, que envolve o uso da mão; a extensão da mão em ferramenta; a ferramenta combinada com a ação coletiva, convertendo um animal fisicamente frágil em um caçador poderoso; a coleta e a caça convertendo-se pouco a pouco em criação e reserva; o desenvolvimento de novos conhecimentos e novas ferramentas, como o fogo; a constituição de agrupamentos cada vez mais numerosos e uma crescente divisão de trabalho entre os integrantes deste agrupamento.

 

Em algum ponto desta história originária, a divisão de funções técnicas serviu de base para uma divisão social mais permanente, que nos acompanha até hoje: a divisão entre produtores e proprietários.

 

Resumindo de outro jeito a mesma trajetória: os dois elementos básicos de qualquer sociedade são as relações que os seres humanos estabelecem entre si e as relações da humanidade com a natureza, para produzir e reproduzir suas condições de existência.

 

Note-se que os seres humanos se convertem em seres humanos, na medida em que agem socialmente, em comunidade, em humanidade.

 

As relações que os seres humanos estabelecem entre si no processo de produção podem ser de cooperação e a subordinação. Que por sua vez desdobra-se em conflitos e lutas. Ou seja: cooperação, subordinação e conflito.

 

Ao longo da história, estes tipos estiveram presentes em proporções que foram variando.

 

Numa fábrica moderna, por exemplo, existe alto nível de cooperação entre os trabalhadores (e em alguma medida também entre estes e os capitalistas). Ao mesmo tempo há alto nível de subordinação dos trabalhadores aos capitalistas. E, portanto, graus variados de conflito entre os trabalhadores e os capitalistas, indo das reclamações às sabotagens, das greves a outros atos de insubordinação.

 

Na sociedade atual, não sobreviveríamos sem água e energia elétrica, que são produto de um alto nível de cooperação, de subordinação e de conflito. Como sabemos, em sociedades tecnicamente capazes de produzir e fornecer água e luz para todos/as, o acesso não é universal: depende de diferentes níveis de cooperação e subordinação, conflito e luta, tanto na produção quanto na distribuição.

 

É importante lembrar sempre que as relações humanas não se limitam ao processo de produção e reprodução das condições materiais de existência.

 

Mas como não existe sociedade sem produção, as relações de produção constituem as relações fundamentais, que influenciam todas as demais.

 

Ao longo da história, podemos identificar vários tipos de relações de produção.

 

As mais comuns foram a escravidão, a servidão e o assalariamento.

 

Embora seja óbvio, vale lembrar: uma relação de produção é uma... relação, uma unidade de contrários: se há escravidão, há escravizados e senhores de escravizados; se há servidão, há servos e senhores; se há assalariamento, há trabalhadores assalariados e capitalistas.

 

Qual o nome que damos para estes “partes”, estes grupos de pessoas que ocupam um mesmo lugar numa determinada relação social de produção? Classes sociais.

 

E qual o nome damos para a relação que estes grupos sociais estabelecem entre si? Luta de classes.

 

Esta luta se exprime das mais diversas maneiras e nos mais diferentes espaços. Quando um patrão e um empregado firmam um contrato, há luta de classes. No processo de produção – inclusive na definição sobre o direito de ir ao banheiro -- há luta de classes. A luta de classe também está presente nas definições públicas e privadas que decidem como será o transporte do trabalhador até sua casa, como serão suas condições de moradia, de saúde, de educação, de cultura e lazer. De igual maneira, a luta de classes está presente nas lutas sindicais, nas batalhas eleitorais, nas definições de governo e parlamentares, em cada ato cotidiano da vida pública e também da vida privada. Inclusive nas telenovelas, nas missas, no esporte.

 

As pessoas podem ou não ter consciência dista, mas numa sociedade dividida em classes sociais, tudo que fazem ou deixam de fazer está atravessado pela luta de classes.

 

Ao longo da história não existiram sempre as mesmas classes sociais, portanto a luta de classes nem sempre foi a mesma.

 

Claro que há semelhanças: os escravizados, os servos e os assalariados têm em comum o fato de serem produtores subordinados à exploração dos proprietários. Da mesma forma, senhores de escravizados, senhores de terra e senhores de capital têm em comum o fato de serem proprietários não-produtores que exploram os produtores diretos.

 

Mas há diferenças muito importantes, motivo pelo qual falamos que há não apenas diferentes classes, mas sociedades diferentes, modos de produção diferentes.

 

Um exemplo destas diferenças: o escravizado era tratado como propriedade, o assalariado é considerado uma pessoa livre.

 

Outro exemplo destas diferenças: em geral, o escravocrata compra e vende tanto os trabalhadores quanto os bens materiais produzidos por eles; o senhor feudal não é dono dos servos da gleba, mas se apropria da maior parte do que eles produzem; o capitalista se apropria da maior parte do valor produzido pelo assalariado para acumular e reproduzir, de forma ampliada, o... capital.

 

Numa mesma sociedade, podem coexistir diferentes tipos de cooperação, subordinação e conflito. É o predomínio de uma determinada combinação destas variáveis que define a sociedade como um todo.

 

Exemplo: no Brasil, por volta de 1850, era a exploração do trabalho escravo, a dificuldade em continuar importando “peças escravas”, as fugas e revoltas, a organização de quilombos e o abolicionismo que determinavam o curso geral da sociedade.

 

Já no Brasil, por volta de 1950, era a exploração do trabalho assalariado, as reivindicações, lutas e greves dos trabalhadores, e a repercussão disto junto aos demais setores, que determinavam o curso geral da sociedade.

 

Tanto num caso como noutro, ao lado da escravidão e do assalariamento, respectivamente, existiam outros tipos de relações de produção. Mas havia uma relação que era dominante. Noutras palavras, havia um modo de produção que era dominante.

 

Falamos em modo de produção comunista primitivo, modo de produção escravista, modo de produção feudal e modo de produção capitalista exatamente para deixar claro qual a relação de produção que predomina (e, por decorrência, que tipo de cooperação/subordinação/conflito predomina).

 

Mas devemos sempre lembrar que nas sociedades realmente existentes, é comum encontrarmos vários modos de produção coexistindo. E não apenas isto: em sociedades onde predomina um determinado modo de produção, é comum encontrarmos este modo de produção sob diferentes formas. Por exemplo, um capitalismo predominantemente agrário, ou predominantemente industrial, ou predominantemente financeiro etc.

 

Tanto em 1950 quanto em 2016, o capitalismo é o modo de produção predominante nos EUA, Inglaterra, Brasil e Índia (em todos predomina a exploração do trabalho assalariado), mas nestes quatro países há sociedades com semelhanças mas também com muitas diferenças.

 

Nas sociedades onde predomina o modo de produção capitalista, é comum encontrarmos outras classes sociais, além dos casos extremos de proprietários capitalistas não-produtores  e produtores assalariados não-proprietários. Por exemplo, os artesãos de ontem e os pequenos-proprietários urbanos e rurais de hoje.

 

Assim como é comum encontrarmos grandes diferenças no interior das duas classes sociais fundamentais. Diferenças tão grandes, que muitos autores tratam uma fração da classe trabalhadora, como se fosse uma classe social autônoma: a “famosa” “classe média”.

 

Para dar conta destas diferentes combinações, dessas diferenças que existem entre sociedades em que predomina um mesmo modo de produção, é que utilizamos o termo formação social (alguns preferem falar de formação socioeconômica).

 

Por exemplo: a formação social brasileira dos anos 1889 até 1930 foi diferente da formação social brasileira dos anos 1930 até 1980. Que por sua vez difere do que passa a existir desde então até os dias atuais.

 

Importante perceber que os conceitos de modo de produção e de formação social “derivam” dos conceitos de classe e luta de classes.

 

Dizendo de outra maneira: são as relações de produção que os seres humanos estabelecem entre si, para produzir e reproduzir as suas condições materiais de existência, portanto são as classes sociais e a luta de classes que existem em cada época e lugar, que definem qual “formação social” existe e qual “modo de produção” predomina.

 

Por isto, a questão básica que deve ser respondida sempre é: quais são as classes e como lutam entre si? Pois uma classe social nunca existe sozinha. Se todos fizessem parte de uma única classe, não haveria classes nem luta de classes...

 

Estado e luta de classes

 

Onde há classes, há luta de classes. Notem que isto é diferente de falar que “onde há tribos, há luta pelo controle do território”.

 

Nas épocas originárias, havia luta entre os seres humanos, por exemplo entre diferentes tribos.

 

Mas esta luta era diferente da luta de classes, que surgiu quando as sociedades se dividiram internamente entre produtores não-proprietários e proprietários não-produtores.

 

Quando uma sociedade está dividida em classes, isto significa dizer que uns exploram outros. E para que a exploração se converta em parte normal da vida cotidiana, é preciso que haja “argumentos” fortes: o controle das armas e o controle das mentes, sendo que este último inclui a inexistência (ou desconhecimento) de alternativa melhor.

 

Ao longo de séculos, as diferentes classes dominantes desenvolveram mecanismos, instrumentos, discursos, hábitos voltados a converter a exploração e a dominação em parte do cotidiano. O “estado normal” seria a divisão entre ricos e pobres, senhores e escravos...

 

Deste processo milenar surgiu o que hoje chamamos de Estado, uma instituição construída pela luta entre as classes sociais, uma instituição que foi pouco a pouco assumindo um duplo propósito:

 

a) impedir que os conflitos inerentes a uma sociedade dividida por interesses antagônicos paralisem esta sociedade;

 

b) ao fazer funcionar uma sociedade dividida em classes, perpetuar esta divisão em benefício dos interesses essenciais da respectiva classe dominante.

 

Há tantos Estados quanto há sociedades.

 

Podemos, para fins didáticos, falar em Estado escravista, Estado feudal e Estado capitalista. Mas é preciso ter claro que estas palavras expressam algo tão óbvio quanto saber qual a cor do cavalo branco de Napoleão. Ou seja: qual ordem social é protegida pelo respectivo Estado.

 

Mais importante do que isto é saber como a classe dominante faz, em cada sociedade concreta, para impedir que os conflitos inerentes a uma sociedade dividida por interesses antagônicos paralisem esta sociedade; como ela faz, portanto, para perpetuar a divisão em benefício dos interesses essenciais da respectiva classe dominante.

 

A resposta é intuitiva: através da cooperação e da subordinação. Utilizando outras palavras: através do convencimento e da dominação. Ou ainda: através das palavras e das armas.

 

Como por definição os dominantes sempre são em menor número que os dominados, a forma “normal” de fazer uma sociedade funcionar precisa estar baseada no convencimento. Pelo menos as pessoas têm que achar que assim é.

 

Para usar outros termos, a forma “normal” de fazer uma sociedade funcionar tem que estar baseada no consentimento, na hegemonia, no convencer as maiorias a seguir as opiniões das minorias.

 

O uso da subordinação explícita, da dominação, da repressão militar, não pode ser a forma permanente. Se fosse isto, a sociedade viveria eternamente em guerra civil, o que por sua vez perturbaria os interesses fundamentais da classe dominante.

 

Porém, nos momentos de crise, nos momentos em que podem ocorrer mudanças profundas, o que decide o conflito é a força bruta. Por isto, aliás, falamos de classe dominante: aquela que dispõe dos meios para dominar.

 

Mas se queremos entender como uma classe dominante prevalece por tanto tempo sobre um número incrivelmente maior de dominados, mais importante do que saber como funcionam as forças armadas e a segurança pública, é entender os mecanismos pelos quais a classe dominante consegue que uma maioria de explorados coopere, aceite, tolere sua própria exploração.

 

Ou seja: mais importante que saber como uma classe domina, é saber como ela dirige uma sociedade.

 

Aqui se faz necessário compreender a força do hábito (“sempre foi e sempre será assim”), o papel do racismo (“naturalizando” a inferioridade de um setor social frente a outro), o papel das religiões oficiais (definindo hierarquias e estimulando o conformismo), o papel da cooptação (confrontar africanos escravizados contra indígenas, brancos pobres contra escravizados negros, trabalhadores locais contra migrantes, trabalhadores homens contra mulheres etc.), o papel do medo (inclusive o medo da fome).

 

Estes e outros mecanismos vão se tornando mais sofisticados e poderosos, à medida que o tempo vai passando.

 

Basta pensar no que era o Estado escravista e compará-lo com o Estado capitalista, ou pensar no Estado existente no Brasil da colônia e o Estado existente hoje.

 

Por qual motivo o Estado foi se tornando mais sofisticado e poderoso, seja no que diz respeito aos mecanismos de convencimento, seja no que diz respeito aos mecanismos de dominação?

 

Entre outros motivos porque a sociedade se tornou mais complexa, tornando cada vez mais difícil impedir que os conflitos inerentes a uma sociedade dividida por interesses antagônicos paralisem esta sociedade.

 

Evitar que a sociedade capitalista seja paralisada pelas crises do próprio capitalismo exige cada vez mais Estado, mesmo que este Estado sirva essencialmente para cobrar tributos e transferir recursos para o capital financeiro.

 

Acontece que a ampliação do Estado -- ampliação indispensável para que ele possa cumprir o papel de estabilizar o funcionamento de uma sociedade cada vez mais conflitiva -- é em si mesmo um processo potencialmente conflitante com o objetivo de beneficiar os interesses essenciais da respectiva classe dominante.

 

De maneira geral, o Estado capitalista é mais “ampliado” que o Estado feudal e o Estado escravista. Também de maneira geral, o Estado capitalista no século 21 é mais ampliado do que o Estado capitalista no século 19.

 

Parte desta ampliação implica em um grande número de funcionários públicos, que não têm origem na classe dominante. O que introduz contradições. Basta pensar na diferença de comportamento entre as cavalarias formadas por nobres, as tropas formadas por mercenários e os exércitos formados por alistamento.

 

Outra parte da ampliação do Estado consiste em dar a outras classes sociais os meios de interferir em algumas decisões do Estado, por exemplo: elegendo presidentes, parlamentares e juízes. Óbvio que este tipo de ampliação introduz contradições no papel do próprio Estado.

 

A ampliação do Estado deixa cada vez mais clara a diferença entre duas dimensões da ação estatal: aquela destinada a fazer funcionar a sociedade (por exemplo o SUS, a educação pública, o controle de trânsito) e aquela destinada a preservar os interesses da classe dominante (as forças armadas, as polícias, o judiciário).

 

A ampliação do Estado não apenas deixa cada vez mais claras aquelas duas dimensões, como reforça potencialmente a contradição entre elas.

 

Esta contradição se manifesta de maneira mais aguda nos períodos de crise e/ou de baixo crescimento econômico.

 

Nestes períodos, os recursos são escassos e a luta por eles é maior. Por exemplo: mais impostos ou menos impostos? Impostos para pagar juros ou para financiar políticas sociais?

 

Esta contradição potencial se manifesta também quando o eleitorado dá vitória a governos e parlamentos contrários, em maior ou menor medida, ao status quo.

 

Quando isto acontece, fica claro o limite da democracia.

 

Esta palavra tem um significado muito forte para a maioria das pessoas, significado sempre carregado de significados positivos. Democracia seria o governo da maioria, portanto o oposto de uma ditadura.

 

Mas quando observamos ao longo da história, veremos que nem sempre foi assim. Na origem, aliás, democracia era o governo dos homens proprietários de escravos. E durante muito tempo, não se exigia de um governo democrático que fosse democrático para todos, pois durante parte do século 19 e 20, o “povo cidadão” não incluía todos os habitantes adultos.

 

à medida que a luta da classe trabalhadora foi conquistando o direito de votar e ser votado para todos os adultos, homens e mulheres, independente de raça, religião e propriedade, a classe dos capitalistas foi agindo para impedir que este direito universal de voto afetasse seus interesses fundamentais.

 

Esta ação dos capitalistas consiste, por exemplo, em desestimular a participação política, criar dificuldades para o registro eleitoral, corromper o processo através do dinheiro e da mídia, cooptar os partidos e os eleitos de esquerda, sabotar os governos de orientação popular e, no limite, praticar magnicídios e golpes de Estado.

 

Ou seja: a democracia existente no capitalismo é plenamente democrática apenas para uma parte da sociedade. Para a classe dominante, existe muita democracia. Para a classe dominada, existe pouca democracia. O que, especialmente nos momentos de crise, pode ser dito assim: em alguns momentos e para alguns setores sociais, a democracia capitalista não passa de uma ditadura dos capitalistas.

 

Esta constatação traz muitas implicações para a ação política dos partidos vinculados à classe trabalhadora.

 

A principal implicação é a seguinte: os partidos ligados aos capitalistas não lutam pelo poder, pois eles já o possuem.

 

Os partidos capitalistas são instrumentos para ajudar na gestão dos negócios do Estado, um dos instrumentos para selecionar o pessoal que vai gerir a máquina estatal. E nem sempre são o instrumento principal. Na história do Brasil, por exemplo, as forças armadas e as grandes empresas de comunicação já demonstraram ter, em algumas situações, maior importância do que os partidos.

 

Já os partidos ligados à classe trabalhadora estão diante de uma disjuntiva.

 

Podem ser um instrumento para ajudar a classe trabalhadora a participar da gestão da máquina do Estado; ou podem ser um instrumento para ajudar a classe trabalhadora a se converter em poder de Estado.

 

Claro que na luta cotidiana, não há contradição absoluta entre estes dois objetivos.

 

Quem luta contra o capitalismo pode e deve, também, lutar por melhorar a vida aqui e agora, inclusive os salários, as condições de trabalho. Assim como pode e deve lutar por reformas democráticas, ou democrático-burguesas (agrária, urbana, política, sanitária, educacional, tributária). Mas também pode e deve lutar pelo fim do capitalismo, o que conduz a lutar por reformas mais profundas, democrático-populares e socialistas (que incluem a supremacia popular sobre o Estado, a supremacia das empresas estatais nas áreas econômicas estratégicas, a orientação do Estado sobre o mercado e sobre o conjunto do desenvolvimento econômico e social, a hegemonia da orientação democrático-popular na educação, saúde e outros serviços e questões sociais).

 

Mas embora possa ser assim, embora aquelas duas dimensões possam ser combinadas -- ajudar a classe trabalhadora a participar da gestão da máquina do Estado e ajudar a classe trabalhadora a se converter em poder de Estado -- existe sempre uma contradição potencial entre os dois objetivos (governo e poder), pois no limite eles podem corresponder a metas diferentes: reforma ou revolução, capitalismo ou socialismo. E os caminhos que levam a uma e a outra meta não são exatamente os mesmos, fato que fica claro no dia-a-dia, mas principalmente nos momentos de crise aguda da sociedade.

 

No caso da política, por exemplo, aqueles que têm como objetivo final lutar por reformar o capitalismo tendem a se integrar aos mecanismos do Estado.

 

As eleições se convertem no seu objetivo principal, seus partidos passam a ser financiados da mesma forma que os partidos burgueses, a vida interna de suas organizações vai ficando cada vez mais tradicional e – principal alteração, pois está na base das demais— seu programa de transformações é influenciado cada vez mais pelos capitalistas e seus interesses.

 

Claro, se considerar ou se afirmar “revolucionário” não impede que aconteça o mesmo. Há muitas organizações e partidos que se proclamam revolucionárias, comunistas, socialistas, mas seu comportamento prático é igual e às vezes pior que o de partidos que se assumem como reformistas.

 

Como sempre, não se deve nunca medir ninguém, partido ou pessoa, pelo que ela diz ou acha de si mesma. A prática é o critério da verdade. E em muitos casos, só no longo prazo se pode medir a correção ou erro de uma determinada linha política.

 

Por isto o debate estratégico é tão importante.

 

Estratégia em debate

 

Entre os que valorizam as experiências dos governos progressistas e de esquerda iniciada em 1998, existem diferentes pontos de vista, que dizem respeito não apenas às estratégias passadas, mas também à qual deva ser a estratégia no período em que estamos e futuramente.

 

Estas diferentes visões às vezes são expressas num mesmo vocabulário (as pessoas concordam quanto ao significado das categorias, conceitos e termos, mas discordam no mérito), outras vezes são expressas através de vocabulários distintos, em que uma mesma palavra ganha significados distintos ou simplesmente não é adotada.

 

Neste texto entendemos “estratégia” com base no significado originalmente militar da palavra, a saber: o conjunto de ações que tem como propósito ganhar uma guerra

 

Uma guerra é composta de várias batalhas. O conjunto de ações que tem como propósito ganhar uma batalha é o que denominamos de tática.

 

O termo estratégia exige, portanto, uma definição preliminar: de que “guerra” estamos falando? 

 

Responder a esta questão implica em definir inimigos, aliados e objetivos estratégicos.

 

No nosso caso, a “guerra” de que falamos é a luta entre a classe dos trabalhadores assalariados e a classe dos empresários capitalistas.

 

É legítimo falar de “guerra”, não tanto para destacar o caráter violento da luta, mas principalmente para acentuar o componente de dominação envolvido no processo e, portanto, para deixar claro que se pretende alterar a relação fundamental entre as partes em luta.

 

Embora capitalistas e assalariados existam há mais tempo, foi nos séculos 19 e 20 que foi predominando, no interior de cada país e no conjunto do mundo, um tipo de sociedade baseado nas relações de produção entre aquelas duas classes.

 

Hoje o chamado capitalismo é dominante, em escala local e global.

 

Evidentemente, nem o capitalismo é determinado apenas pela relação entre capitalistas e assalariados; nem os destinos de cada sociedade e do mundo são determinados apenas pelos rumos do capitalismo.

 

Mas ambos os fenômenos (capitalismo, luta de classes entre capitalistas e trabalhadores) são variáveis fundamentais para compreender o conjunto dos conflitos sociais dentro de cada país e o conjunto dos conflitos internacionais.

 

Por isto escolhemos falar de uma classe determinada, ao invés de adotar expressões como “o povo”, “os explorados”, “os oprimidos” ou “os excluídos”.

 

Tais categorias genéricas expressam fenômenos reais e tem utilidade analítica e na retórica política, mas não são adequadas para precisar o conteúdo das definições estratégicas mais gerais.

 

Portanto, estratégia é o conjunto de ações que a classe dos trabalhadores assalariados desenvolve para ganhar a guerra que trava contra a classe dos capitalistas.

 

A classe dos trabalhadores assalariados não é homogênea: sua formação (no duplo sentido: sua história e sua composição) varia de região para região, e varia de época para época.

 

Em cada momento dado, há ao mesmo tempo diferentes classes trabalhadoras assalariadas convivendo, assim como diferentes frações da classe trabalhadora assalariada convivendo.

 

Isto pode ser nítido em âmbito internacional (os trabalhadores assalariados do Brasil vis a vis os trabalhadores assalariados de outros países); mas também ocorre em plano nacional, o que nem sempre é devidamente considerado.

 

A saber: a classe trabalhadora assalariada brasileira possui diferentes “frações” internas, em função de fatores “objetivos” como a região, a idade, o sexo, o ramo de atividade; e em função de fatores “subjetivos” como a experiência adquirida na própria luta de classe.

 

Na prática, isto significa que quando nos referimos à “estratégia da classe dos trabalhadores assalariados”, estamos nos referindo à estratégia que defendemos deva ser assumida e praticada por esta classe, mas que nunca é a estratégia de todos os integrantes da classe, pois sempre haverá diferenças no interior da classe que resultarão em diferentes posições políticas, portanto diferentes estratégias.

 

A mais geral destas diferenças políticas existentes no interior da classe dos trabalhadores assalariados consiste no seguinte: em todo momento, o conjunto da classe está submetida à exploração, mas apenas uma parte da classe reage coletivamente a isto.

 

Quando ocorre, a reação coletiva pode ter dois propósitos fundamentais: o de melhorar as condições de vida da classe, nos marcos do capitalismo; e/ou o de “mudar de vida”, superando o capitalismo.

 

Ambos os propósitos (“melhorar a vida” ou “mudar de vida”) exigem enfrentar o capitalismo. Os dois propósitos podem ser apresentados sob a forma de raciocínios estratégicos, que historicamente foram denominados como “estratégia reformista” e “estratégia revolucionária”.

 

Neste caso, a denominação -- “reformista”, “revolucionário” -- diz respeito ao objetivo final que se persegue, não aos caminhos utilizados.

 

É por isto que – na prática histórica – vemos pessoas que se definem como revolucionárias dedicando a maior parte do seu tempo militante à educação política, à luta sindical, à atividade parlamentar ou governamental.

 

E vemos, também, pessoas que se definem como reformistas envolvidas em guerrilhas, guerras de libertação nacional e outros tipos de mobilizações sociais e politicas extremamente radicais.

 

Há, no interior da classe trabalhadora, vários pontos de vista, vários objetivos estratégicos, portanto várias estratégias.

 

Estas estratégicas desdobram-se, em alguns casos, em alianças com outras classes. Por exemplo, alianças estratégicas com setores que mantém conflitos com o capitalismo, como é o caso dos trabalhadores que são pequenos proprietários, urbanos ou rurais, entre os quais também há quem se proponha enfrentar o capitalismo, seja para conviver com ele em melhores condições, seja para superá-lo.

 

Em tese, estas variadas estratégias podem ser concorrentes, mas não precisam ser inimigas, uma vez são estratégias adotadas por diferentes frações da classe dos trabalhadores assalariados.

 

Na prática, entretanto, ocorrem situações em que o conflito entre diferentes estratégias transforma-se num conflito frontal. É o caso, por exemplo, quando determinada estratégia conduz a alianças estratégicas com a classe dominante.

 

Componentes de uma estratégia

 

Sendo estratégia o nome que damos para o conjunto de ações que a classe dos trabalhadores assalariados deve desenvolver para superar o capitalismo, então estas ações podem ser definidas como basicamente três: estudar, organizar e lutar

 

O “estudar” significa fundamentalmente compreender o funcionamento do capitalismo e o que entendemos por superar o capitalismo.

 

Consideramos que este é um aspecto fundamental do debate estratégico.

 

A superação do capitalismo exige uma reorganização social profunda, tornando possível que aqueles que produzem a riqueza social decidam como produzir, o que produzir e como distribuir esta riqueza social. É isto que entendemos por socialismo e, portanto, quando nos referimos a superar o capitalismo estamos falando de construir o socialismo.

 

Aceita esta premissa, então estratégia é o nome que damos para o conjunto de ações que a classe dos trabalhadores assalariados deve desenvolver para construir o socialismo.

 

Fica clara, nesta definição, que existe uma distinção formal entre o objetivo final (construir o socialismo) e a estratégia propriamente dita (o conjunto de ações). 

 

Falamos de distinção formal, porque evidentemente há uma relação entre meios e fins.

 

No que diz respeito ao objetivo final, ele pode ser entendido de duas maneiras diferentes: 1) “construir o socialismo” como dar início à construção do socialismo; 2) “construir o socialismo” como construir uma sociedade socialista plena, portanto, superar completamente o capitalismo. 

 

Esta distinção pode ser apresentada de duas maneiras, nos seguintes termos: 1) transição ao socialismo e socialismo pleno; 2) transição socialista e comunismo.

 

Pensar a estratégia tendo como objetivo final uma sociedade socialista plena (aquilo que Marx e Engels denominavam comunismo) nos colocaria diante do seguinte desafio: imaginar um processo em escala mundial, com a duração de várias décadas ou séculos.

 

Como isto seria tão genérico quanto não operacional, preferimos pensar a estratégia como uma conduta que tem como objetivo iniciar a construção do socialismo (ou, noutros termos, iniciar a transição socialista).

 

Portanto, entendemos por estratégia o conjunto de ações que a classe dos trabalhadores assalariados deve desenvolver para iniciar a construção do socialismo. Ou, dito de outra forma: para poder dar início à transição socialista.

 

O que significa “construção do socialismo”?

 

Alguns compreendem que a construção do socialismo começa quando um trabalhador adere à sua organização coletiva de classe, quando a classe trabalhadora cria e fortalece estas organizações, quando a classe trabalhadora consegue vitórias concretas na luta contra os capitalistas, vitórias que podem ser econômicas, políticas, sociais, ideológicas, no plano nacional, regional ou mundial.

 

Outros compreendem que a construção do socialismo supõe não apenas estas atitudes e conquistas parciais, nos marcos do domínio capitalista, mas também alterações mais profundas, que só são possíveis quando parcelas fundamentais da vida social passem a ser controladas pela classe trabalhadora. O que supõe, em maior ou menor medida, que a classe trabalhadora detenha um poder econômico e político equivalente ao que hoje constitui monopólio da classe capitalista.

 

A rigor, a diferença fundamental entre estas duas abordagens reside em como enxergam o tema do chamado poder de Estado. O que implica discutir a força política relativa entre as classes sociais. 

 

O poder é uma relação de força, portanto nenhuma classe ou setor de classe detém todo o poder. Mas na maior parte do tempo, na maior parte das sociedades, o poder é distribuído de maneira desigual entre os diferentes setores sociais.

 

Por isto é correto afirmar que o poder de Estado está com as classes ou setores de classe que controlam um conjunto de mecanismos (produtivos, militares, comunicacionais, legislativos, executivos, nacionais e internacionais) que permitem a estes setores manter e/ou definir o rumo geral de funcionamento de uma dada sociedade.

 

Por exemplo: no Brasil, no dia 18 de agosto de 2016, a classe dos capitalistas controla direta ou indiretamente o governo federal, a maior parte dos governos estaduais e municipais, a maioria dos parlamentos em todos os níveis, a maior parte do judiciário, a maior parte das polícias e forças armadas, a maior parte das empresas privadas e também das empresas estatais, a maior parte dos meios de comunicação, da indústria cultural e educacional, bem como das igrejas.

 

Para construir o socialismo, a classe trabalhadora necessita do poder necessário para alterar o funcionamento da sociedade. Isto supõe ampliar o poder da classe trabalhadora e reduzir o poder da classe dos capitalistas. Neste processo de ampliação/redução, há um momento fundamental: quando os trabalhadores adquirem poder suficiente para manter e/ou definir o rumo geral de funcionamento de uma sociedade. Quando chegamos neste momento, falamos que a classe trabalhadora passou a deter o “poder de Estado”.

 

Por isto, ter o “poder de Estado” é um indicador fundamental, uma preliminar para a construção do socialismo.

 

Por isto, podemos definir estratégia como o conjunto de ações que a classe dos trabalhadores assalariados deve desenvolver para ter o poder de Estado e assim poder iniciar a construção do socialismo.

 

Esta definição permite compreender (no sentido de “incluir no contexto” e “dar significado”) o conjunto de ações que a classe dos trabalhadores assalariados desenvolveu, nos diferentes países do mundo, ao longo dos séculos 19 e 20, bem como ao longo dos primeiros 16 anos do terceiro milênio, para construir suas condições de poder (o que pode incluir tanto auto-organização quanto ocupação de espaços no Estado) e/ou para conquistar o poder revolucionariamente (organizando-se para derrotar o Estado vigente e construir outro), assim como as várias situações híbridas e intermediárias de que a história está feita.

 

Aqui vale retomar um assunto que provoca seguidas confusões: o duplo sentido com o qual se utiliza, no debate estratégico, os termos “reformista” e “revolucionário”.

 

Já dissemos antes que estes termos podem ser utilizados para definir o objetivo final (“melhorar a vida” ou “mudar de vida”, capitalismo ou socialismo).

 

Já dissemos, também, que na prática histórica os que buscaram estes diferentes objetivos muitas vezes trilharam os mesmos caminhos e utilizaram os mesmos métodos.

 

Portanto, tivemos revolucionários extremamente moderados e reformistas extremamente radicais no que diz respeito às formas de luta.

 

Ocorre que os termos “reformista” e “revolucionário” também são utilizados para designar diferentes formas de conquistar o poder de Estado.

 

Neste caso, chama-se geralmente de “reformista” quem defende conquistar o poder de Estado, ocupando espaços no seu interior (por exemplo, disputando eleições, mas também organizando a classe trabalhadora e seus aliados para pressionar e obter conquistas frente ao Estado capitalista).

 

E chama-se geralmente de “revolucionário” quem, participando ou não das eleições e das lutas cotidianas da classe, considera que o “problema do poder” só será resolvido através da destruição do Estado burguês e sua substituição por outro de natureza distinta.

 

Devido a este duplo sentido, há correntes políticas e ideológicas que se consideram como “reformistas revolucionárias”, ou seja, defendem que lutemos através de meios reformistas para atingir um objetivo revolucionário.

 

Vejamos a seguir qual a implicação – na estratégia -- das diferentes visões acerca de como lidar com o poder de Estado.

 

Já dissemos que estratégia é o conjunto de ações que a classe dos trabalhadores assalariados deve desenvolver para ter o poder de Estado e poder assim iniciar a construção do socialismo.

 

Nesta definição, ter o poder de Estado é uma preliminar. Como fazer isto é a questão a ser respondida.

 

Para os que adotam uma resposta “reformista”, o como resulta da acumulação progressiva de forças, que num determinado momento resultará em que a classe trabalhadora detenha mais poder que a classe capitalista.

 

Não há, nesta visão “reformista” acerca do processo de como chegar ao poder de Estado, um momento fundamental, transcendental, um ponto de ruptura.

 

Podem até existir vários momentos de embates profundos, de recuos e de avanços; mas o que predomina é a noção do acúmulo progressivo.

 

Para os que adotam uma resposta “revolucionária”, a acumulação de forças inclui dois momentos combinados, porém qualitativamente distintos.

 

Um deles é o de acúmulo progressivo de forças; mas quanto este acúmulo de forças chega próximo de dotar a classe trabalhadora do poder de Estado, inaugura-se um novo momento, uma nova etapa: ou bem a classe trabalhadora conquista o “poder de Estado”, ou bem ocorrerá um retrocesso na acumulação de forças.

 

Nesta visão “revolucionária” acerca do processo de como chegar ao poder de Estado, a conquista do poder não resulta de um acúmulo “gradual”, mas sim de um salto, de uma ruptura, de uma mudança qualitativa.

 

Destas duas respostas decorrem diferentes implicações práticas e também conceituais.

 

Para os “revolucionários”, a estratégia deve responder a duas questões: quais as maneiras de acumular forças e quais as maneiras de conquistar o poder.

 

Já para os “reformistas”, a estratégia deve responder a uma única questão, pois a maneira de acumular forças também é a maneira pela qual se consegue ter o poder.

 

Em alguns textos debatidos pelo Partido dos Trabalhadores nos anos 1980, isto era apresentado da seguinte forma: para os revolucionários, o poder deve ser construído, mas também deve ser conquistado. Já para os reformistas, o poder apenas se constrói (não existindo um momento especial onde se “toma” o poder, quando se “assalta o Palácio de Inverno” – uma frase sobre a qual já se disse muita besteira, tanto pró quanto contra).

 

Ao longo dos últimos duzentos anos, em diferentes países do mundo a classe trabalhadora construiu uma “modalidade” reformista e três “modalidades” revolucionárias para tentar resolver o problema do poder.

 

A modalidade reformista foi uma combinação entre a organização da classe (sindicatos, partidos, organizações populares diversas, e suas respectivas alianças) e a conquista de espaços institucionais (executivos, legislativos, democratização de outros aparatos de Estado).

 

Em nenhum país esta modalidade reformista de lidar com o problema do poder “resultou na”/”permitiu a” construção do socialismo. Porém, em diversos países esta modalidade reformista resultou na/permitiu a construção de melhores condições de vida nos marcos do capitalismo.

 

Vale lembrar, entretanto, que a classe dominante destes países citados no parágrafo anterior geralmente se beneficiava da exploração imperialista sobre outros povos, o que permitiu/facilitou concessões à sua própria classe trabalhadora.

 

Donde resulta um questionamento acerca de como se combinaram -- para viabilizar a melhoria citada nas condições de vida nos marcos do capitalismo -- a luta por reformas e a “gordura” disponível para a classe dominante graças à exploração imperialista.

 

Já as três modalidades revolucionárias foram: a insurreição urbana, a guerra (guerra de guerrilhas, guerra popular prolongada, guerra de libertação nacional, guerra de ocupação) e a “via chilena para o socialismo”.

 

Exceto o caso da Revolução Russa de 1917, todas as demais experiências de construção do socialismo tiveram início na conquista do poder através de guerras. E mesmo a experiência de 1917 ocorreu em meio a uma guerra mundial e incluiu, depois da revolução, uma sangrenta guerra civil. Fatos que marcaram profundamente as características das respectivas tentativas de construção do socialismo.

 

É importante, por outro lado, notar que a “via chilena” para o socialismo não resultou na construção do socialismo em nenhum dos países em que foi tentada.

 

A “via chilena” para o socialismo

 

A “via chilena”, como o nome sugere, foi elaborada e experimentada no Chile, especialmente no período de governo da Unidade Popular (1970-1973).

 

Deixemos de lado as características especificamente chilenas e nos concentremos no que é proposto por esta modalidade estratégica, enquanto solução para o problema do poder: a ideia central é utilizar os mecanismos de construção do poder (modalidade “reformista”), para possibilitar a conquista do poder (modalidade “revolucionária”). 

 

Dito de outra forma, fazer da disputa e da conquista eleitoral de governos uma parte fundamental da disputa e da conquista do poder.

 

Os defensores da “via chilena” pretendiam, desta forma, resolver um problema que provavelmente angustiou e segue angustiando muitos dos que se pretendem revolucionários: como agir, do ponto de vista estratégico, em sociedades ou em momentos históricos em que não estão ocorrendo, nem estão no horizonte visível, processos revolucionários, crises revolucionárias, revoluções.

 

A “via chilena” oferecia, em tese, a seguinte resposta: utilizar a maioria eleitoral para viabilizar uma presença nos governos, governos que protagonizariam mudanças tanto de ordem econômico-social quanto de ordem política, mudanças que ao fim e ao cabo alterariam a natureza capitalista do Estado e da sociedade.

 

Obviamente, os defensores da “via chilena” tinham consciência de que a implementação desta estratégia provocaria uma reação por parte dos capitalistas: a oposição, a sabotagem e no limite o golpe de Estado.

 

Portanto, uma questão implícita era como criar as condições para que esta reação não tivesse êxito.

 

Uma primeira resposta era obter maiorias eleitorais, que permitisse controlar os órgãos executivos e legislativos, a partir dos quais se promoveria a democratização dos demais órgãos de Estado e/ou a convocação de processos constituintes, que no limite permitiriam substituir, a partir de processos eleitorais, o Estado capitalista por um Estado popular.

 

Uma segunda resposta era neutralizar os instrumentos que a classe capitalista utiliza para fazer oposição, sabotar e dar golpes: o controle da economia, o controle dos meios de comunicação e o controle das forças armadas. Isto se traduziria na ampliação da presença do Estado na economia, na quebra do controle capitalista sobre os meios de comunicação e na submissão das forças armadas ao controle democrático.

 

Este aspecto teve grande importância no caso chileno, onde uma parcela da esquerda acreditou que as forças armadas chilenas seriam fieis a uma suposta tradição legalista e não apoiariam um golpe. Ilusões semelhantes sobre as forças armadas também estiveram presentes noutros países, inclusive no Brasil.

 

O tema das forças armadas teve particular importância no caso venezuelano. 

 

Lembramos que uma parcela das forças armadas apoiou um golpe contra o presidente Hugo Chávez, enquanto outra parcela apoiou a reação popular contra o golpe, forçando os golpistas a recuar e tornando possível uma reforma na instituição militar, reforma que ajuda a entender por quais motivos, pelo menos até o momento em que este texto está sendo escrito, predomine nas forças armadas venezuelanas o apoio ao governo popular.

 

Tanto no caso venezuelano quanto no chileno, entretanto, a sabotagem econômica foi fundamental para o êxito (parcial ou total) da reação capitalista. O que remete para uma complexa discussão sobre a relação entre economia nacional e internacional, Estado e mercado, discussão que também se faz necessária quando analisamos as experiências de construção do socialismo no século 20.

 

Uma terceira resposta a como criar as condições para que a reação capitalista não tenha êxito consiste em defender a construção de um “poder popular” paralelo ao poder de Estado e/ou complementar ao governo popular.

 

É importante perceber que todas as respostas citadas têm, entre seus efeitos, o de acelerar a reação capitalista. Fato que nos remete para uma das principais dificuldades "práticas" da “via chilena”: o tempo

 

Numa guerra ou numa insurreição, a classe capitalista tende a perder completamente, ou quase, seus instrumentos de poder. Já na “via chilena”, a classe capitalista mantém parte importante, maior ou menor, de seus instrumentos de poder. E utiliza estes instrumentos para fazer oposição, sabotagem e no limite promover golpes.

 

A questão, portanto, é saber se os instrumentos que a classe trabalhadora vai conquistando, adquirindo e construindo através da combinação entre eleições e auto-organização serão capazes de deter a oposição, a sabotagem e o golpe.

 

Trata-se de uma “corrida contra o tempo”, que assume a forma de uma disputa política e ideológica – geralmente denominada de “disputa de hegemonia” e/ou de "guerra de posições"-- muito mais complexa do que a existente nos processos de guerra e de insurreição. 

 

As noções de "guerra de posições" e de "guerra de movimentos" remetem a formas diferentes de travar o combate militar entre dois exércitos. Neste âmbito, a guerra de movimentos se expressa, por exemplo, nos ataques velozes da cavalaria (animal ou blindada). Já a guerra de posições teve sua expressão típica nas trincheiras e casamatas, com longas esperas e avanços lentos.

 

Guerra de posições conduz à "disputa de hegemonia" – termo muito utilizado por Antonio Gramsci e, antes dele, já utilizado pelos revolucionários russos no final do século 19, início do século 20.

 

Disputa de hegemonia corresponde a uma atitude presente em todas as “modalidades” utilizadas pela classe trabalhadora, ao longo dos últimos 200 anos, para tentar resolver o problema do poder. 

 

A disputa de hegemonia não acontece apenas nos momentos “pacíficos”, mas também nas guerras e nas insurreições, que são expressões concentradas da luta política. Portanto, nelas também ocorre a disputa de hegemonia, que aqui tem o sentido de influência, convencimento, “quem dirige quem”.

 

Claro que quando a luta de classe chega ao estágio da “batalha final” pelo poder de Estado, a busca do “convencimento” tende a tornar-se secundária frente ao confronto direto de forças.

 

Portanto, o tema da disputa de hegemonia tem maior relevância nos momentos de acúmulo de forças “pacífico”, momentos prévios à “tomada do poder” ou posteriores a ele, neste segundo caso como parte da consolidação de uma nova ordem política e social. 

 

Por decorrência, a modalidade "reformista" para tentar resolver o tema do poder (ou seja, aquilo que estamos chamando aqui de “via chilena”), modalidade que pode ser apresentada como um processo mais ou menos contínuo de acúmulo de forças, é aquela onde o tema da disputa de hegemonia tem mais importância.

 

O ambiente em que as estratégias operam

 

Ao longo deste texto, o termo estratégia foi utilizado em um duplo sentido: como uma formulação teórica e como uma prática social.

 

A estratégia como prática social designa o sentido geral da ação implementada -- durante longos períodos de tempo -- pelas diferentes forças sociais e políticas. Não apenas o discurso que produzem, mas o conjunto de atos que cometem.

 

De forma análoga, a tática como prática social designa o sentido geral da ação implementada durante períodos de tempo mais curtos.

 

Já quando falamos de estratégia enquanto formulação teórica, estamos nos referindo ao “plano de ação” formulado pelos dirigentes das diferentes forças políticas e sociais.

 

Todos conhecem a piada: ao ouvir as detalhadas orientações do técnico de futebol, orientações que sempre terminavam com drible e bola na rede, o craque perguntou se o técnico havia combinado tudo aquilo com os adversários.

 

Como na piada, sempre tende a haver alguma diferença entre o projeto e a ação real. Esta diferença pode ter várias causas, mas a principal delas é que a ação real se desenvolve em combate com outras forças sociais e políticas, portanto em choque com outras estratégias, das quais surge uma resultante que sempre tende a diferir das intenções e propósitos originais.

 

Falando em tese, a melhor estratégia é aquela que considera – nas suas formulações e projeções – as potenciais decorrências do choque com as demais forças políticas e sociais.

 

Por exemplo: o que faria a classe dominante brasileira, se os governos Lula e Dilma tivessem “êxito”?

 

Uma das maneiras de tentar prever estas e outras potenciais decorrências futuras é o estudo da história, embora esta não se repita nunca, motivo pelo qual os “modelos” tendem a ser muito enganosos.

 

Outra das maneiras de considerar estas potenciais decorrências futuras é tentar detectar quais as tendências mais gerais de um período. Estas tendências resultam de choques anteriores, que definem o quadro geral, a superfície, o ambiente em que se travam as batalhas do presente.

 

Alguns autores e dirigentes dão a este contexto estratégico o nome de etapa e consideram que a análise da etapa define os limites mínimos e máximos que uma estratégia pode obter.

 

Por exemplo: num contexto histórico de bipolaridade entre URSS e EUA, todos os processos nacionais eram levados a “posicionar-se” em relação aos polos. O que “empurrava” em direção ao socialismo processos que, em outros contextos, poderiam ter outros desdobramentos.

 

Nos dias de hoje, por exemplo, as variáveis mais gerais podem ser resumidas assim:

 

a) defensiva estratégica da classe trabalhadora;

b) hegemonia do capitalismo;

c) crise do capitalismo;

d) declínio da potência hegemônica;

e) ascensão de outros polos de poder (como os BRICS);

f) disputa entre diferentes vias de desenvolvimento capitalista;

g) formação de blocos regionais;

g) hegemonia do neoliberalismo em âmbito regional;

h) disputa entre diferentes modelos de desenvolvimento nacional e regional;

i) vitórias eleitorais e forte protagonismo dos governos progressistas até 2006;

j) desde então, crescente contraofensiva das forças conservadoras.

 

No âmbito de cada sociedade, as variáveis estratégicas fundamentais são as classes sociais. Motivo pelo qual há uma relação entre a “taxa de êxito” de uma estratégia e a correção da análise das classes e da luta de classes na qual a respectiva estratégia está baseada.

 

Isto fica claro, por exemplo, quando falamos das políticas de aliança (lembrando sempre que no fundo das alianças políticas entre partidos e organizações, estão classes sociais cujos interesses são expressos por aquelas respectivas organizações e partidos).

 

Uma terceira maneira de considerar, na análise estratégica, as potenciais decorrências futuras é considerar quais as principais estratégias que estão interagindo.

 

Em cada momento da história, em cada região do mundo, há várias estratégias operando e em disputa, no plano nacional, regional e mundial, expressando os interesses de Estados, classes e frações de classe e seus respectivos instrumentos políticos.

 

Algumas destas estratégias são mais influentes do que outras. Desde 1998, por exemplo, podemos citar:

 

*no plano mundial, as estratégias operadas pelos Estados Unidos, Alemanha, China e Rússia;

 

*no plano regional, as estratégias operadas pelos Estados Unidos, Brasil e Venezuela;

 

*no plano nacional, as estratégias operadas, respectivamente, pelo PT e PSDB.

 

Cada uma destas estratégias correspondia/corresponde, no plano da luta política, aos interesses de diferentes setores sociais. Interesses que no plano internacional apresentam-se com forma e conteúdo distintos: como interesses de diferentes Estados.

 

Ao levar em consideração a análise histórica, a análise das variáveis estratégicas e a análise das estratégias em operação, tentamos reduzir a distância entre o plano e o que vai efetivamente ocorrer.

 

A estratégia frente ao neoliberalismo dos anos 1990

 

Cada país da América Latina e Caribe tem sua própria história, irredutível e única.

 

Mas quando consideramos a região como um todo, especialmente a América do Sul, percebemos a incidência de algumas características que conformam um ambiente estratégico, ao mesmo tempo produto da luta passada e contexto da luta presente entre as forças sociais e políticas, bem como da luta entre os Estados.

 

Estas características podem ser resumidas assim:

 

1) toda a região foi, durante vários séculos, colônia de metrópoles europeias e até hoje mantém uma relação dependente e subordinada aos principais centros econômicos do mundo;

 

2) embora tenha assumido diferentes formas, da escravidão ao assalariamento, o processo de exploração do trabalho na região sempre foi extremamente intenso, com a decorrente desigualdade social;

 

3) em decorrência da dependência e da desigualdade, as diferentes classes dominantes existentes na região a partir da colonização buscaram sempre restringir ao máximo a participação política e a auto-organização das classes dominadas;

 

4) como decorrência das anteriores, o enfraquecimento da dominação externa ampliava as possibilidades de desenvolvimento, igualdade e democracia na região, por exemplo no período 1789-1815 (independências) e 1914-1945 (industrialização);

 

5) portanto, a irredutibilidade das histórias nacionais combina-se com a existência de “ciclos regionais”, em que diversos países experimentam processos com características similares, por exemplo o ciclo populista, o ciclo ditatorial, o ciclo neoliberal e o ciclo de governos progressistas.

 

No ambiente estratégico dos anos 1990, a maioria dos partidos e organizações de esquerda da América Latina e Caribe foi convergindo na prática e também no plano das formulações para uma estratégia que consistia -- malgrado profundas diferenças históricas, sociais, políticas e ideológicas -- em buscar melhorar a vida do povo através de políticas públicas que seriam implementadas a partir de espaços legislativos e executivos conquistados através de processos eleitorais.

 

Tais políticas públicas foram de diferentes tipos (universais/distributivas ou focalizadas/compensatórias) e implementadas com diferentes graus de confronto, negociação e aliança com as “elites” locais e com os “imperialismos”.

 

Em alguns casos, aquelas políticas públicas foram precedidas ou acompanhadas de processos constituintes, que resultaram em reformas importantes e foram acompanhadas de uma retórica radicalizada, em que a palavra “revolução” era muito utilizada, mesmo que não tivessem ocorrido de fato revoluções (por exemplo, expropriação econômica e política da classe dominante).

 

Noutros casos, aquelas políticas públicas foram implementadas sem processos constituintes, sem nenhuma tentativa de reforma nas estruturas políticas, sociais e econômicas, no Estado e na relação entre as forças sociais, além de acompanhadas de uma retórica que se jactava de sua “moderação”.

 

Como sabemos, a classe dominante na América Latina e Caribe não se importa muito com as diferenças retóricas e trata igualmente a ferro e fogo, tanto a esquerda que se jacta de sua moderação quanto de sua radicalidade.

 

Acontece que, apesar das múltiplas e importantes diferenças entre o que ocorreu e ocorre em cada país da região, havia um núcleo comum, o que permite dizer que estávamos diante de variantes de uma mesma estratégia.

 

Este núcleo comum consistia, como já foi dito, na implementação de políticas públicas a partir de posições conquistadas através de processos eleitorais.

 

Neste aspecto, esta estratégia e cada uma de suas variantes eram todas elas profundamente diferentes da estratégia adotada – para ficarmos só neste exemplo – pelos que dirigiram a Revolução Cubana de 1959.

 

No caso cubano tivemos a conquista do poder (e não do governo), pela luta armada (não pela via eleitoral), a partir da qual se introduziram não apenas outras políticas públicas, mas sim transformações estruturais no padrão de desenvolvimento vigente até então em Cuba, mudanças que incluíram da reforma agrária à transição socialista.

 

Os protagonistas da estratégia adotada -- especialmente entre 1998 e 2016 -- pela maior parte da esquerda latino-americana e caribenha talvez não estejam de acordo com esta definição, mas podemos dizer que a estratégia adotada nesta região e momento histórico constitui uma modalidade da “via chilena para o socialismo”, ressalvada pelo menos duas importantes diferenças: primeiro, a situação internacional e as características da época; segundo, no Chile o tema do socialismo era destacado explicitamente tanto pelo presidente Salvador Allende quanto pelos principais partidos que integravam a Unidade Popular.

 

Sucesso e limites da estratégia

 

A estratégia de melhorar a vida do povo através de políticas públicas, que seriam implementadas a partir dos espaços legislativos e executivos conquistados através de processos eleitorais atingiu, durante certo tempo, o objetivo central a que se propunha. A saber: a vida do povo melhorou devido às políticas adotadas pelos chamados governos progressistas e de esquerda.

 

Isto ocorreu, em maior ou menor grau, em diferentes países e governos, nos quais se adotaram diversas variantes (“carnívoras” ou “vegetarianas”) daquela estratégia comum.

 

Além do objetivo de melhorar a vida do povo, objetivo este presente em todas as variantes da estratégia citada, outros objetivos podem ter sido mais ou menos atingidos (integração regional, ampliação da democracia, ampliação da propriedade pública, acúmulo de forças em direção ao socialismo etc.).

 

Noutros termos: se a história tivesse tido chegado ao fim em 2010, apesar dos limites e contradições o saldo seria claramente positivo em favor daquela estratégia.

 

Entretanto, a partir de um determinado momento -- que variou de país para país, mas que em todos os casos ocorreu depois da crise internacional de 2007-2008 --, naqueles países onde foi aplicada a estratégia de melhorar a vida do povo através de políticas públicas implementadas a partir dos espaços legislativos e executivos conquistados através de processos eleitorais passou a ocorrer o seguinte:

 

1. A vida do povo passou a melhorar cada vez menos;

 

2. A vida do povo passou a melhorar cada vez mais lentamente;

 

3. Em seguida, a vida do povo começou a piorar;

 

4. Tudo isto aconteceu antes que se tenha conseguido recuperar os padrões de vida médios existentes antes da onda neoliberal;

 

5. Caiu a adesão popular às lideranças, partidos e governos que implementavam aquelas políticas públicas;

 

6. O refluxo do apoio popular, somado à oposição dos que se contrapunham àquelas políticas públicas, alterou a correlação de forças política nos espaços legislativos e/ou executivos, possibilitando o regresso das forças políticas e sociais que se opunham àquelas políticas públicas e à melhoria das condições de vida do povo;

 

7. O regresso da antiga oposição é marcado não apenas por um retrocesso social, mas também por um retrocesso econômico e por um retrocesso político cujos limites e consequências ainda não estão totalmente claros.

 

Esgotamento da estratégia ou simples alternância?

 

Considerando a cronologia dos eventos, pode ser dito que os chamados governos progressistas e de esquerda não conseguiram resolver os problemas criados a partir da crise internacional de 2007-2008, especialmente aqueles ligados a deterioração dos preços das commodities, à dependência financeira e comercial, à força dos oligopólios – especialmente estrangeiros – vis a vis o enfraquecimento das empresas estatais.

 

Entretanto, também pode ser dito que a incapacidade acima referida não é apenas a causa, mas também a consequência de um conjunto de problemas que já vinham se acumulando (fadiga de material, limites da estratégia adotada etc.), incluindo nestes problemas políticas macroeconômicas que mantiveram a predominância do setor agroexportador, o peso do setor financeiro etc.

 

A depender de como se compreenda o que foi descrito nos parágrafos anteriores, a conclusão poderá ser uma das seguintes: 1) ou bem estamos diante de uma derrota de natureza tática, devido a causas conjunturais e/ou erros ocasionais; 2) ou bem estamos diante de uma derrota de natureza estratégica, causada por mudanças nas condições estruturais nas sociedades e no mundo, bem como por limites insuperáveis da própria estratégia.

 

Se estivermos diante de uma derrota tática (ou seja, de uma derrota eleitoral das esquerdas), não se faz necessário alterar a estratégia.

 

Mas se estivermos diante de algo mais profundo e mais grave do que uma derrota eleitoral e tática, neste caso se coloca a necessidade de reavaliar a estratégia.

 

O fato de estarmos diante de algo mais profundo do que uma derrota eleitoral e tática por si só não quer dizer que a estratégia adotada antes esteja esgotada, superada, não seja adequada para o próximo período.

 

Para chegar a esta conclusão, de que se faria necessária uma nova estratégia, distinta da adotada até agora, é necessário levar em consideração não apenas o que ocorreu no período que se encerra, mas também as características do período que se abre.

 

Sobre o que ocorreu no período que se encerra, há um aspecto destacado: em que medida o sucesso da presente onda reacionária está vinculada aos limites da própria estratégia adotada pela esquerda? 

 

A este respeito, apontamos a seguir dois “efeitos colaterais” da própria estratégia, mais exatamente consequências negativas decorrentes do seu próprio sucesso:

 

1. Uma estratégia baseada apenas em políticas públicas tende a produzir efeitos positivos decrescentes

 

A base das políticas públicas é a tributação, no capitalismo em que vivemos a tributação depende em última análise da rentabilidade do setor privado, rentabilidade que tende a diminuir quando há uma elevação da remuneração do trabalho, elevação da remuneração que tende a resultar – direta ou indiretamente -- das políticas públicas.

 

No caso dos países imperialistas, esta dinâmica pode ser retardada devido à exploração de outras sociedades. Mas as tentativas feitas pela socialdemocracia na Europa confirmam que mesmo nos países centrais, o capitalismo suporta por algum tempo, mas não suporta por muito tempo a ampliação do bem-estar e da democracia.

 

Lá, assim como na América Latina, podemos dizer que apenas com políticas públicas, sem reformas que alterem a correlação de forças no interior do Estado, o padrão de distribuição da riqueza e o modelo de desenvolvimento, não se torna possível melhorar a vida do povo de maneira veloz, profunda e permanente;

 

2. Uma estratégia baseada em maiorias eleitorais tende, em parte pelos motivos expostos acima, a produzir resultados eleitorais decrescentes

 

Devido ao decréscimo na profundidade e na velocidade das mudanças, a partir de certo momento cresce mais rápido o descontentamento do que a adesão; neste contexto, a classe dominante tem maiores chances de organizar a reação, contando para isto com os aparatos de poder que seguem em suas mãos.

 

Noutras palavras, uma estratégia que busca melhorar a vida do povo através de políticas públicas implementadas a partir dos espaços legislativos e executivos conquistados através de processos eleitorais, está fortemente arriscada a perder estes mesmos espaços e, com isso, ver as políticas públicas serem desmontadas antes que elas produzam efeitos de longa duração.

 

Como sabemos observando o conjunto das experiências de governos progressistas latino-americanos, esta dinâmica também está presente -- embora possa ser retardada -- naqueles casos em que houve processos constituintes, forte participação popular e democrática no Estado, e/ou instrumentos estatais de forte intervenção na produção econômica.

 

É importante perceber que os citados “efeitos colaterais” da estratégia, consequências negativas decorrentes do seu próprio sucesso, atingiram e seguem atingindo o conjunto da esquerda regional.

 

Seja onde foi adotada uma variante mais “confrontacionista”, seja onde foi adotada uma variante mais “negociadora”, o processo desembocou na deterioração das condições políticas, econômicas e sociais, em parte devido a opções feitas pelos respectivos governos e seus apoiadores, em parte devido ao fato da classe capitalista seguir controlando os meios econômicos e políticos, assim como dispondo dos apoios internacionais necessários para reagir e criar a deterioração citada, que por óbvio não se deu por combustão espontânea.

 

Em nenhum momento, é bom lembrar, as respectivas classes dominantes e seus aliados internacionais abriram mão de utilizar um conjunto de instrumentos econômicos e políticos para buscar deter e reverter a melhoria nas condições de vida do povo. A reação adotou variadas formas, que foram da oposição parlamentar até o golpe de Estado.

 

Que tenham mantido estes instrumentos sob seu controle não é um acaso, nem uma concessão indevida, é uma consequência da própria estratégia adotada, que em nenhuma hipótese previa a expropriação parcial ou total de setores das classes dominantes.

 

Note-se que isto vale inclusive para os casos em que houve reformas constitucionais: o fortalecimento dos instrumentos populares e democráticos de intervenção econômica e política estatal convivia com a presença, maior ou menor, dos instrumentos de poder político e econômico da classe dominante.

 

Se a análise anterior for correta, então a explicação fundamental para o êxito da ofensiva reacionária reside na estratégia. Outros aspectos --como as dificuldades sucessórias -- devem ser considerados, mas de forma subordinada.

 

Os países em que ainda existem governos progressistas não necessariamente terão o mesmo destino daqueles onde a ofensiva reacionária teve pleno êxito. Porém, aqueles governos progressistas passam agora a atuar num novo cenário estratégico, tanto nacional quanto regional.

 

Já dissemos antes que uma das principais dificuldades "práticas" da “via chilena” era o fator tempo. 

 

Pois bem: o fato de vários governos progressistas terem existido ao mesmo tempo e terem se apoiado uns aos outros foi um fator importante na extensão temporal destas experiências. Extensão que poderia ser maior, se a integração tivesse sido mais veloz e mais efetiva.

 

A medida que a direita avança na Venezuela, Argentina e Brasil, podemos dizer que estamos diante de uma contraofensiva reacionária, conformando-se assim um novo ambiente estratégico na região e dentro de cada um dos países.

 

A existência de um “eixo do mal” de governos reacionários e conservadores terá maiores ou menores chances de êxito, a depender da respectiva situação interna.

 

Defensiva estratégica

 

Quais as implicações estratégicas que podem ser extraídas desta constatação? Entre as várias implicações possíveis, destacaremos a seguir a "defensiva estratégica".

 

Um período de defensiva não significa um período de passividade. Num período de defensiva travam-se grandes lutas, se obtém vitórias e até avanços.

 

O que caracteriza um período como sendo de defensiva é o objetivo dele.

 

Num período de defensiva, o objetivo principal é defender as conquistas antigas e recuperar o terreno perdido. Ou seja: os avanços parciais visam recuperar o status quo ante, o que já tínhamos e agora perdemos.

 

A defensiva não dura para sempre. Uma situação de defensiva pode se converter em uma situação de equilíbrio (relativo, como qualquer equilíbrio) e este pode se converter numa situação de ofensiva estratégica.

 

O que permite a defensiva se converter em ofensiva é a mudança no estado de ânimo da classe trabalhadora. E esta mudança ocorre em parte como reação à ação dos inimigos e em parte por ação das diferentes vanguardas da classe, numa combinação de elementos.

 

Evidente, se existe o propósito de criar as condições para sair de uma situação de defensiva, então a ação das vanguardas deve ajudar a classe trabalhadora a mudar seu estado de ânimo.

 

Para isto é preciso elaborar e saber diferenciar as propostas de curto, médio e longo prazo. E para isto é preciso saber escolher muito bem as batalhas que devem ser travadas em cada momento, levando em conta (embora invertendo os termos) o ensinamento implícito na famosa frase: “nem tão devagar que pareça afronta, nem tão depressa que pareça medo".

 

E por isto é importante, especialmente quando estamos na defensiva, ser o mais didático, paciente e correto no debate de ideias. Pois nos momentos de defensiva, de recuo, de confusão, as forças inimigas ampliam sua influência também no terreno das ideias.

 

Nossa ação não decide tudo, mas nossa ação não é irrelevante. Mais do que isto: nos períodos de ofensiva, quando a vanguarda erra, as massas passam por cima. Mas num período de defensiva, quando a vanguarda erra, quem passa por cima de nós são os inimigos.

 

Por isto é tão importante, num período de defensiva, acertar. Acertar nas palavras de ordem, acertar nas politicas organizativas, acertar nos métodos de trabalho etc.

 

Do ponto de vista organizativo, a principal batalha é defender nossas organizações. E afirmar o princípio da unidade da classe, da unidade das forças populares, da unidade do nosso campo político e social.

 

Nesta perspectiva, os sindicatos e a central sindical cumprem papel decisivo, porque são organizações que estão (ou que deveriam estar, ou que podem estar) em contato direto e cotidiano com a maior parte da classe trabalhadora.

 

Também nesta perspectiva, a existência de uma frente de organizações (movimentos, sindicatos, partidos) como a Frente Brasil Popular é algo muito importante, porque permite ao mesmo tempo: a) unir esforços para resistir; b) criar um ambiente de debate comum; c) construir um instrumento essencial para criar as condições para sair da defensiva.

 

Não é fácil criar uma frente. Há divergências ideológicas e políticas, há diferenças de método, há disputas por protagonismo. Assim, antes de mais nada é preciso entender que estamos diante de um processo, que não se encerra numa reunião e não se confunde com uma declaração de intenções.

 

O que organiza uma frente é um programa mínimo, uma tática para o período e um “protocolo mínimo” de funcionamento. Já quanto ao programa máximo e a estratégia, cabe a cada organização decidir.

 

Qual o programa máximo de um sindicato e qual o programa máximo de um partido? Qual a estratégia de um sindicato e qual a estratégia de um partido?

 

É difícil responder em tese a esta pergunta. Ou melhor: a resposta em tese é fácil, mas ela não esclarece muita coisa.

 

Falando em tese:

 

a) um sindicato é uma organização de uma categoria, para organizar a luta pelos objetivos desta parte da classe;

 

b) uma central sindical pretende organizar toda a classe. Pode incluir nos seus objetivos a luta pelos interesses históricos da classe, mas na prática sua luta é pelos objetivos imediatos do conjunto da classe;

 

c) um partido político ligado à classe trabalhadora tem como objetivo organizar pelo menos uma parte da classe, mas para lutar pelos objetivos históricos do conjunto da classe.

 

Portanto, falando em tese, o programa máximo do partido deveria ser mais amplo do que o da central e este deveria ser mais amplo do que o do sindicato.

 

Também falando em tese, o objetivo estratégico de cada organização é diferente.

 

Um partido que tenha o comunismo ou a transição socialista como objetivo programático máximo, deve ter a construção/conquista do poder como objetivo estratégico.

 

Já a central sindical e o sindicato não organizam sua ação tendo em vista alcançar estes objetivos programáticos (o socialismo) e estratégicos (o poder).

 

Claro, estes podem ser os objetivos dos dirigentes sindicais, mas não constituem objetivos imediatos ou permanentes do conjunto da classe ou do conjunto de uma determinada categoria, motivo pelo qual não podem ser o programa máximo nem o objetivo estratégico da central e do sindicato.

 

Neste sentido, quando usamos o termo estratégia, precisamos saber de qual guerra estamos falando.

 

Primeiras batalhas de uma nova guerra

 

Estratégia é o conjunto de decisões que tem por objetivo ganhar uma guerra; uma guerra é composta por uma sucessão de batalhas; tática é o conjunto das decisões que tem por objetivo ganhar a batalha.

 

Assim, se a guerra é contra o capitalismo, o objetivo estratégico é um; se a guerra é contra o neoliberalismo, o objetivo estratégico é outro; se a guerra é contra o analfabetismo ou contra o mosquito, os objetivos estratégicos são outros; e assim por diante.

 

Falando em tese, no caso dos que lutam contra o capitalismo a estratégia envolve pelo menos os seguintes elementos: a caracterização da etapa  (internacional e nacional), a definição das tarefas, a politica de alianças, a via de acúmulo de forças e a via de tomada do poder.

 

Tomando como marco o ano de 1989, reafirmemos os traços principais do cenário internacional: defensiva estratégica da classe trabalhadora; hegemonia do capitalismo; crise do capitalismo; declínio da potência hegemônica; ascensão de outros polos de poder; disputa entre vias de desenvolvimento capitalista; formação de blocos regionais. No âmbito internacional, a tendência predominante é de instabilidade, crises e conflitos.

 

Já os traços principais do cenário regional são: hegemonia econômica do neoliberalismo; disputa entre diferentes vias de desenvolvimento nacional e regional; vitórias eleitorais e forte protagonismo dos governos progressistas até 2006; desde então, crescente contraofensiva das forças reacionárias. Ou seja, também em âmbito regional estamos entrando num período de defensiva estratégica.

 

Hoje todos os governos progressistas estão enfrentando uma contraofensiva reacionária (muitas vezes contra a simples existência de um governo considerado progressista).

 

No caso brasileiro, a contraofensiva envolveu e envolve ações simultâneas da direita partidária, da direita social, da alta burocracia de Estado, do grande capital e do oligopólio da mídia.

 

Apesar de diferenças táticas, há um amplo consenso estratégico entre as forças reacionárias, em torno dos seguintes objetivos:

 

a) realinhar o Brasil ao bloco internacional comandado pelos Estados Unidos (afastando-o tanto dos BRICS quanto da integração latino-americana);

 

b) reduzir os níveis de remuneração, direta e indireta, da classe trabalhadora brasileira (o que inclui desde alterações na legislação trabalhista até cobrança de serviços públicos, passando por revisão nas políticas de reajuste do salário mínimo e repressão aos movimentos sociais reivindicatórios);

 

c) reduzir o acesso dos setores populares às liberdades democráticas em particular e aos direitos humanos e sociais.

 

Caso a ofensiva reacionária tenha pleno êxito, não estaríamos apenas de volta aos governos 100% neoliberais de 1994-2002. Nem estaríamos apenas diante do desmanche dos direitos inscritos na (em geral conservadora) Constituição “Cidadã”. Mais do que isto, sob pelo menos dois aspectos importantes estaríamos “rumando” em direção a características do Brasil pré-revolução de 1930: no que diz respeito aos direitos trabalhistas (vide as ameaças contra a CLT) e no que diz respeito ao lugar do Brasil na “divisão internacional do trabalho”.

 

Dadas estas características da situação internacional, regional e nacional, é que falamos – como já foi explicado antes -- de defensiva estratégica.

 

Entramos num período de defensiva estratégia, que pode ser mais longo ou mais curto, com uma duração que depende de um conjunto de variáveis, inclusive internacionais.

 

Portanto, além de debater a necessidade e o conteúdo de uma nova estratégia, estamos chamados a debater quais as táticas adequadas para reagrupar forças e retomar a ofensiva.

 

Temas a debater

 

A conquista de maiorias eleitorais faz parte da disputa pelo poder, mas não “resolve” a maior parte do “problema” do poder.

 

Em primeiro lugar, porque a classe dominante -- e seus partidos -- mantêm seus direitos eleitorais e, portanto, minorias eleitorais mais ou menos expressivas.

 

Além disso, há elementos de poder que não sofrem influência direta da disputa eleitoral, tais como a ingerência externa, o poder econômico, o oligopólio da mídia, o judiciário, as forças de segurança.

 

Embora não resolva o problema do poder, as vitórias eleitorais da esquerda aguçam a disputa pelo poder, tornando mais violenta a disputa de hegemonia cultural, comunicacional, ideológica, política e econômica.

 

Quando as forças reacionárias conseguem afastar a esquerda do governo (seja pela via eleitoral ou do golpe, seja este clássico ou jurídico-parlamentar), elas voltam dispostas a reduzir ao mínimo as possibilidades de que a história se repita.

 

Inclusive porque as forças reacionárias aprenderam com as derrotas que sofreram a partir de 1998; e também porque a situação do capitalismo as empurra a adotar medidas para recompor rapidamente sua rentabilidade e controle, medidas que só serão politicamente viáveis se forem acompanhadas de alterações profundas na correlação de forças entre as classes; o que por sua vez as levará a tentar fechar e colocar ferrolhos nas “portas” que permitiram à esquerda acessar espaços executivos e legislativos, para implementar políticas públicas que melhorassem a vida do povo.

 

Por tudo isso, a ofensiva reacionária não é apenas eleitoral: ela abre um novo período estratégico, no qual a classe trabalhadora vive e viverá situações táticas mais difíceis. E no qual será necessário adotar outra estratégia.

 

Reconhecer uma derrota estratégica implica, no caso, em reconhecer que uma estratégia foi derrotada. Mas reconhecer a necessidade de uma nova estratégia por si não reverte a derrota estratégica, não altera a correlação de forças.

 

Noutras palavras, a correlação de forças atual impede o êxito parcial da antiga estratégia; mas também dificulta a implementação de outras variantes estratégicas, por exemplo aquelas baseadas em melhorar a vida do povo através da combinação entre políticas públicas & reformas estruturais, implementadas a partir da combinação entre a conquista de espaços legislativos e executivos & a construção de uma hegemonia popular.

 

Neste emaranhado de variáveis, o aspecto ao qual devemos dar atenção principal é o estado de ânimo, consciência, organização e mobilização das camadas populares, especialmente da classe dos trabalhadores assalariados.

 

De maneira geral, faz-se necessário retomar a análise das classes sociais, de seus interesses de médio e longo prazo, de como eles se articulam e conflitam entre si, conformando diferentes padrões de desenvolvimento em âmbito nacional, regional e mundial, diferentes níveis da realidade que mantém inter-relação.


Além disso, faz-se necessário debater:


1) como travar a disputa pelo "poder econômico"?


2) como disputar a hegemonia ideológica sobre a sociedade?


3) qual a dimensão estratégica da luta contra a corrupção?


4) quais são as indispensáveis reformas democráticas no âmbito econômico, social, cultural e político?

 

Quando saímos do plano nacional e passamos a análise do plano regional, a questão pode ser posta da seguinte forma: sem integração regional, não é possível melhorar a vida do povo de maneira profunda, veloz e permanente.

 

Entretanto, qual padrão de integração regional é necessário, se falamos em processos de mudança mais profundos, mais velozes e mais duradouros? Por exemplo: como articular a integração entre Estados e a integração entre os setores sociais comprometidos com os projetos de transformação?

 

Quando saímos do plano regional e passamos à análise do plano mundial, a questão pode ser posta assim: como o processo de transformações nacionais e de integração regional se articula com a “guerra” (com cada vez menos aspas) mundial entre diferentes projetos de desenvolvimento?

 

Finalmente, é preciso investigar quais as decorrências da defensiva estratégica sobre as organizações da classe, especialmente sobre aquelas que foram hegemônicas no período estratégico que ora se encerra.

 

Quando perguntamos qual estratégia deve ser adotada frente à situação aberta pela contraofensiva reacionária, partimos do pressuposto de que ocorreram mudanças estruturais em âmbito mundial, regional e no interior de cada sociedade, mudanças que tiveram como desdobramento a criação de uma situação qualitativamente distinta da que existia anteriormente.

 

Se reduziu muito o espaço de êxito da estratégia que pretendia  melhorar a vida do povo através de políticas públicas implementadas a partir dos espaços legislativos e executivos conquistados através de processos eleitorais.

 

Esta estratégia foi implementada por amplos setores: “reformistas” e “revolucionários”, “social-democratas” e “socialistas-comunistas”. Mesmo forças minoritárias que criticavam esta estratégia, na prática aderiram a ela.

 

Também por isto, o debate atual tem um componente imenso de confusão, sendo comum ver determinados setores criticarem sem nenhuma autocrítica aquilo de que fizeram parte, apresentando os problemas como decorrência de falhas morais e éticas (dos outros), falta de coragem e vontade (dos outros) etc.

 

Também por isto, é preciso fazer um esforço imenso para perceber a natureza objetiva dos problemas enfrentados e buscar respostas que também tenham base objetiva.

 

Em última análise, trata-se de responder, entre outras, questões como as seguintes: quanto de reforma o capitalismo contemporâneo aceita; e quanto de socialismo é necessário para viabilizar mesmo um “programa mínimo” de reformas.

 

Reprogramando a estratégica

 

No caso do Brasil, a atual ofensiva de direita é também um indicador do esgotamento da estratégia adotada pela maior parte da esquerda nos últimos 20 anos.

 

Precisará ser construída, tanto na teoria quanto na prática, outra estratégia: uma estratégia de luta pelo socialismo, não apenas por um capitalismo pós-neoliberal; uma estratégia de luta pelo poder, não apenas pelo governo; uma estratégia das classes trabalhadoras, não de conciliação com setores da classe dominante.

 

Para alguns setores da esquerda, mais importante que discutir qual o conteúdo e como construir esta nova estratégia, é debater se isto será feito com o PT, sem o PT ou contra o PT.

 

Há várias razões que explicam esta atitude, entre as quais a campanha de criminalização do PT, que estimula qualquer discussão a desembocar na crítica ao petismo.

 

É o PT quem terá que decidir se vai buscar construir outra estratégia ou se vai insistir na estratégia da conciliação. E da resposta a esta questão dependerá não exatamente a “sobrevivência futura” do PT, mas sim qual papel o PT jogará no presente e no futuro.

 

Para fazer uma analogia histórica, com toda imprecisão que as analogias possuem: no final dos anos 1910, a vanguarda da classe trabalhadora brasileira estava sob hegemonia anarquista. O anarquismo foi derrotado e parte dele contribuiu na criação do Partido Comunista. Mas só depois da Segunda Guerra Mundial a estratégia comunista tornou-se hegemônica na vanguarda da classe trabalhadora.

 

O golpe de 1964 desmoralizou profundamente a estratégia do PC, mas a direção daquele partido insistiu na mesma orientação, o que estimulou defecções, cisões, rupturas e a proliferação de novas organizações de esquerdas.

 

Mas só nos anos 1980 as lutas de uma nova classe trabalhadora dariam origem a uma nova estratégia hegemônica, simbolizada numa nova organização, o Partido dos Trabalhadores, que reuniu a maior parte da vanguarda da classe.

 

Até 1989 o PT seguiu uma estratégia. Já nos anos 1990, frente a ofensiva neoliberal e a crise do socialismo, optou (após intensa luta interna) por outra estratégia. Hoje, aquela estratégia seguida desde 1995 está sob questionamento (a partir de dentro e também de fora; a partir da esquerda, mas principalmente por parte da direita).

 

O que acontecerá se PT não for capaz de construir uma nova estratégia?

 

Milhões de trabalhadores e de trabalhadoras que algum dia votaram, confiaram e inclusive militaram no petismo vão dividir-se. Uma minoria seguirá noutros partidos e movimentos de esquerda. Uma parte adotará posições conservadoras. A ampla maioria vai afastar-se da política ativa durante muito tempo.

 

Neste cenário, o enfraquecimento do petismo não seria acompanhado do fortalecimento de outra hegemonia de esquerda. No futuro, com pelo menos uma geração de intervalo, isto poderia/poderá acontecer. Mas de imediato, o enfraquecimento do petismo teria/terá como resultado o fortalecimento da direita. E eventuais setores de esquerda que conseguissem/conseguirem crescer absorvendo o ex-petismo, o fariam num contexto de enfraquecimento da esquerda como um todo.

 

É por isto que, não apenas para derrotar a direita agora, mas também para evitar que se “perca uma geração” (como ocorreu em 1964), é necessário que o PT mude de estratégia. Isto independe do que venha a ocorrer no futuro próximo com o governo Dilma, lembrando que do ponto de visto histórico e estratégico é bem mais fácil conquistar e reconquistar governos, do que construir e reconstruir partidos.

 

Do ponto de vista teórico, construir outra estratégia exigirá enfrentar a análise do capitalismo do século XXI, a retomada do balanço da luta pelo socialismo no século XX, assim como um balanço dos governos “progressistas e de esquerda” no Brasil e na América Latina.

 

Do ponto de vista prático, exigirá no essencial um conjunto de ações que recuperem nosso apoio junto à classe trabalhadora, criando as condições sociais indispensáveis para derrotar o grande capital, a oposição de direita e o oligopólio da mídia, em favor de um desenvolvimentismo democrático-popular e articulado com o socialismo.

 

Quando falamos em recuperar o apoio junto à classe, em reatar laços com nossa base social, não falamos apenas das dezenas de milhares que vão às marchas, manifestações e congressos. Falamos em primeiro lugar das dezenas de milhões que apoiaram as esquerdas nas eleições de 1989, 1994, 1998, 2002, 2006, 2010 e 2014, mas que agora estão decepcionados e em muitos casos sob a hegemonia da direita.

 

Estratégica, tática e análise de conjuntura

 

As definições estratégicas podem ser perfeitas no papel, mas se a tática for equivocada, de pouco adiantará.

 

Ou seja: não é provável que vença uma guerra alguém que perde todas as batalhas de que participa. Pois de derrota em derrota não se constrói a vitória final, embora seja impossível vencer sem antes ter sido derrotado; e seja imprescindível extrair lições da cada uma das derrotas.

 

A estratégia visa alterar a correlação de forças entre as classes sociais num plano fundamental: o do poder de Estado. E a partir daí, agir sobre o terreno das relações de produção.

 

A tática visa alterar a correlação de forças entre as classes sociais em níveis menos fundamentais: no governo, no parlamento, nas eleições, nas lutas sociais etc.

 

Ambas (estratégia e tática) dizem respeito à correlação de forças entre as classes sociais; ambas se articulam; e no limite ocorrem batalhas táticas com efeitos estratégicos (aquela batalha tática em que se decide a “tomada do poder” é também uma batalha estratégica, ou seja, mesmo tendo vencido todas as anteriores, perder esta batalha pode significar perder a guerra).

 

Noutras palavras: voltamos ao ponto de partida. Tudo depende da análise das classes sociais e da luta de classes.

 

A análise de conjuntura (ou seja, a análise de um conjunto de elementos) tem por objetivo medir a correlação de forças entre as classes sociais e definir quais passos táticos devem ser dados para acumular forças em direção aos objetivos estratégicos.

 

Como “medir” se estamos acumulando? É preciso verificar qual o nível de consciência, organização e mobilização da classe trabalhadora, vis a vis as demais classes sociais.

 

Um “ortodoxo” russo dizia que a essência do marxismo é a análise concreta da situação concreta, que o marxismo é um guia para a ação.

 

“Situação concreta” e “ação” podem dizer respeito a períodos de tempo mais ou menos longos, em territórios mais ou menos extensos.

 

Podem dizer respeito à estratégia deduzida da análise das tendências de desenvolvimento de uma sociedade ao longo dos últimos 100 anos; ou dizer respeito à tática deduzida da análise de uma sociedade ao longo dos últimos 100 meses.

 

Podem dizer respeito à análise da situação de uma empresa, de uma cidade, de um estado, de um país, de um subcontinente, de um continente, do mundo.

 

Quando falamos de análise de conjuntura, estamos nos referindo a uma análise concreta de uma situação concreta mais curta no tempo e restrita no espaço.

 

Isto é assim não por conta da incapacidade de quem analisa, mas sim por conta da natureza do fenômeno analisado.

 

A análise de conjuntura é uma análise da correlação de forças em luta, correlação que em última análise remete para dois “sujeitos”: as classes sociais (no âmbito de cada país) e os Estados (expressão desta luta de classes no âmbito internacional).

 

A correlação de forças se altera com muita rapidez ao longo do tempo; e num mesmo momento, mas em territórios diferentes, também apresenta enormes diferenças.

 

Por isto, analisar a conjuntura de um século ou analisar a conjuntura do mundo inteiro é, na verdade, estudar várias conjunturas encadeadas ou simultâneas.

 

Isto é perfeitamente possível de fazer, mas neste caso estaríamos realizando não uma “análise de conjuntura” --ou seja, das tendências de curto/médio prazo-- mas sim uma análise das tendências de médio/longo prazo, portanto uma “análise de estrutura”.

 

A análise “estrutural” é fundamental, até porque sem ela a análise de conjuntura torna-se volúvel. Da análise de conjuntura deriva a tática, da análise de estrutura deriva a estratégia.

 

Um dos problemas que temos hoje, na esquerda brasileira em geral e no PT em particular, diz respeito exatamente à análise de estrutura & a estratégia.

 

A esquerda brasileira --impactada pela crise do socialismo soviético e pela ofensiva neoliberal— não foi capaz de produzir uma análise consistente das tendências do capitalismo no século XXI, nem no mundo, nem no Brasil.

 

Dizendo de outra maneira: a maior parte da esquerda brasileira não possui uma análise acerca das classes e da luta de classes existente atualmente no Brasil. E sem isto, a análise de conjuntura torna-se míope, politicista, episódica, “curtoprazista”.

 

Seja como for, “análise de conjuntura” é uma expressão que faz parte do jargão das pessoas que fazem política de forma militante.

 

Há análises de conjuntura para todos os gostos e sabores; assim como há diferentes maneiras de analisar a conjuntura; não havendo consenso sobre o que significa “analisar”, nem tampouco sobre o que significa “conjuntura”.

 

Na segunda metade dos anos 1980, o Instituto Cajamar incluía nos seus cursos de formação política uma disciplina intitulada “instrumental de análise de conjuntura”.

 

Na mesma época, outras instituições faziam o mesmo, com direito a cartilhas e livretos tratando especificamente de sugerir um método, um procedimento, um passo a passo para analisar a conjuntura.

 

Não cabe, aqui, fazer uma análise comparada das diferentes visões a respeito de como analisar a conjuntura, desde os anos 1980. Mas é fundamental retomar aquele debate sobre o “método”.

 

E a questão central do método, como já foi dito anteriormente, diz respeito à análise das classes sociais em luta (no âmbito de cada país) e dos Estados (no terreno mundial).

 

Importante lembrar, ainda, que o intérprete de uma análise de conjuntura é alguém envolvido nela, direta ou indiretamente, consciente ou inconscientemente.

 

Isto vale inclusive para os que se apresentam como “cientistas políticos” (não importando sua coloração política). Qualquer ponto de vista é a vista a partir de um ponto.

 

Não há nenhuma relação direta, mecânica, entre o ponto de vista de quem analisa e a qualidade (no sentido de maior ou menor correção) da análise.

 

Aliás, o fato de alguém se julgar porta-voz autorizado da ciência pura, da nação, da democracia, da classe, de Deus ou de Marx não torna “verdade” nada do que ele diz, nem muito menos garante uma adequada análise dos fenômenos conjunturais.

 

Entretanto, não é irrelevante a questão do sujeito da análise, ao menos no caso da classe trabalhadora. Isto por dois motivos fundamentais:

 

1) a classe trabalhadora está submetida à influência da ideologia da classe dominante (os capitalistas). Reconhecer isto e desenvolver de forma consciente seu próprio ponto de vista é parte integrante da luta por fazer da classe trabalhadora a futura classe dominante;

 

2) as análises da conjuntura fazem parte... da conjuntura. A difusão de determinadas interpretações, narrativas, conclusões, propostas faz parte da luta política permanente que se trava em nossa sociedade. Por isto é fundamental saber que não existe análise neutra, acima e a parte daquela luta.

 

A análise de conjuntura deve levar em conta os “marcos estratégicos” nos quais se desenvolve a atual conjuntura brasileira. Eles já foram citados anteriormente e os repetiremos aqui:

 

a) defensiva estratégica da classe trabalhadora;

b) hegemonia do capitalismo;

c) crise do capitalismo;

d) declínio da potência hegemônica;

e) ascensão de outros polos de poder (vide os BRICS);

f) disputa entre diferentes vias de desenvolvimento capitalista;

g) formação de blocos regionais;

g) hegemonia do neoliberalismo em âmbito regional;

h) disputa entre diferentes modelos de desenvolvimento nacional e regional;

i) vitórias eleitorais e forte protagonismo dos governos progressistas até 2006;

j) desde então, crescente contraofensiva das forças conservadoras.

 

A análise de conjuntura também deve levar em conta as alternativas programáticas que defendemos:

 

a) o desenvolvimento de uma indústria forte e tecnologicamente avançada, com forte participação estatal nos setores estratégicos, forte participação nacional nos demais setores, permitindo o desmanche dos monopólios e oligopólios estrangeiros e nacionais, com os desdobramentos que isto tem no âmbito da ciência e da engenharia nacionais (sem o que não se altera o “lugar” do Brasil na divisão internacional do trabalho);

 

b) a constituição de um setor financeiro poderoso e público (sem o que não haverá recursos para o desenvolvimento e continuaremos submetidos à ditadura do capital financeiro);

 

c) a reforma agrária e a universalização das políticas sociais (sem o que não há condições materiais para combinar crescimento econômico com elevação do bem-estar social);

 

d) a integração regional (possibilitando cadeias produtivas, economia de escala, recursos e retaguarda estratégica);

 

e) a ampliação da auto-organização da classe trabalhadora e ampliação das liberdades democráticas do conjunto do povo, com destaque para quebra do oligopólio da comunicação, reforma política e do Estado, outra política de segurança pública e de Defesa, outra política de educação e cultura (sem tais medidas, a classe dominante terá os meios para sabotar e reverter o processo de mudanças).

 

Em 31 de agosto de 2016 teve fim uma etapa da história recente do Brasil. Teve início um novo período, em que a relação entre as forças políticas, as instituições e as classes sociais, bem como a relação do Brasil com o mundo serão substancialmente distintas daquilo que prevaleceu durante a maior parte dos governos Lula e Dilma. Neste sentido, a batalha do impeachment não foi a última batalha de uma guerra antiga, mas sim a primeira batalha de uma guerra nova.

 

Um momento em que será fundamental dominar o vocabulário da luta.


 

Segunda-feira, 12 de setembro


 

http://valterpomar.blogspot.com.br/2016/09/o-vocabulario-da-luta.html


 

https://www.alainet.org/pt/articulo/180219
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