Há um mundo novo a ser construído

18/05/2016
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 Venho de um continente em transe.

 

 Não pretendo, contudo, fazer aqui uma análise de conjuntura. Porque não se trata de uma realidade momentânea, circunstancial. Não se trata de um cenário fortuito, incidental. É toda uma história, longa, secular e dolorosa história de agruras, angústias e tragédias.

 

 Tristes trópicos. Ontem, condenados pelos deuses coloniais; depois pelos deuses do expansionismo imperial; e hoje pelos deuses globais, o deus mercado, a carregar sem descanso a pedra do subdesenvolvimento.

 

 E todas as vezes que nos aproximamos do topo com a carga excruciante, vemos rolar ladeira abaixo o imenso sacrifício dispendido na subida frustrada... e recomeçamos a maldita sina, ainda mais uma vez, outra vez.

 

 É certo que o recuo nunca é total, que dos tantos ensaios malogrados ficam pelo caminho pegadas, degraus, atalhos que servirão de pontos de referência para a nova subida. Mas chega a ser desalentador andar tanto e quase não sair do lugar.

 

A relação de dependência de meu país e do continente onde ele se insere às potências do Norte, dependência econômica, financeira, política, e notavelmente dependência cultural, condiciona qualquer movimento que arriscamos.

 

 Às vezes, as circunstâncias, o vaivém das placas tectônicas do capitalismo mundial parece criar janelas, frestas de oportunidades para os nossos países, os países ditos “em desenvolvimento”.

 

Por exemplo, na crise de 2008/2009, com a de debacle e o encurralamento do mercado financeiro global, não faltou quem dissesse que, daí por diante, o mundo seria outro, e que as garras dos carniceiros do dinheiro, as garras de Mamon, afrouxar-se-iam sobre nós do sul do mundo.

 

 A verdade é que, passada a comoção inicial, resgatado do fundo do poço pela intervenção do Estado, intervenção que tanto abomina quando não é para beneficiá-lo, o mercado financeiro logo recobrou o prumo e retomou a andadura de sempre, para a continuidade da desgraça de nossos povos.

 

 Ao contrário de se estabelecer como uma linha divisória, com freios e regulações severas para o controle da especulação, a crise de 200/2009, de certa forma, reforça a ação desinibida do capital vadio sobre os países emergentes do Terceiro Mundo e os países mais vulneráveis do Primeiro Mundo. No esforço insano de recuperação das perdas com o estouro da bolha, atarraxam o torniquete sobre os nossos povos.

 

 Assim, recrudescem as ações de destruição do Estado de Bem-Estar Social. Tudo se torna precário. O Estado precário, o Parlamento precário, as instituições precárias, o trabalho precário. A vida precária.

 

 Todas as garantias sociais, trabalhistas e previdenciárias, e todos os valores da civilização como solidariedade, fraternidade, equidade dissolvem-se no ar, desmancham-se diante da ditadura do Eu S/A, de Mamon S/A.

 

 Para nós brasileiros, para a maioria dos povos latino-americanos, na verdade, o Estado de Bem-Estar Social é uma quimera, uma abstração que, vez ou outra visita os cantos escuros da vida de nossos povos. Luzes fortuitas, lusco-fuscos logo substituídos pelas trevas da exclusão.

 

Quando vemos, no caso do Brasil, que a escravidão das mulheres e dos homens pretos foi abolida há apenas 128 anos e que só há menos de dois anos os empregados domésticos tiveram seus direitos equiparados com os outros trabalhadores, talvez compreendamos porque hoje, exatamente hoje, neste momento cresce em meu país a conspiração contra as leis trabalhistas vigentes desde a década de 40; querem impor a prevalência do negociado sobre o legislado, fazendo letra morta toda a proteção ao trabalho que está na lei; ao mesmo tempo, urde-se uma reforma da previdência que pune um tanto mais os já castigados trabalhadores.

 

 Tramam o enfraquecimento dos sindicatos; reduzem os investimentos em saúde, educação, segurança pública e saneamento; acenam com cortes dos programas sociais compensatórios, os programas de inclusão social; ameaçam rever as plataformas de acesso às universidades e ao ensino técnico que, finalmente, abriram a educação superior aos filhos dos trabalhadores.

 

 Enfim, maquinam interromper a distribuição das poucas migalhas que caem da mesa dos poderosos.

 

John Doe, o João Ninguém, fonte anônima que revelou os “Papéis do Panama”, diz que a humanidade está vivendo um novo sistema, “que nós continuamos chamando de capitalismo, mas que está muito mais para a escravidão econômica”.

 

 Escravidão econômica que provoca conflitos, desestabiliza sociedades, faz reinar o caos, impõe a dor e o desespero. E temos aí, então, um espectro rondando a Europa e lançando sombras sobre todo o mundo, o espectro dos imigrantes.

 

 Legiões, dezenas de milhares de homens e mulheres, crianças, adolescentes, jovens, velhos rondam os continentes.

 

 São os exilados da geopolítica, os exilados da guerra ao terrorismo, os exilados da luta pelo domínio do mercado, pelo domínio do petróleo que se juntam aos deserdados do sul da Europa e do sul do mundo, engrossando o cortejo dos banidos do capitalismo.

 

 A estupidez, o abrutamento do sistema revela-se ainda mais uma vez com o escândalo dos Panama Papers. Trilhões e trilhões de dólares entesourados em paraísos fiscais. Fortunas desviadas pela sonegação, pela corrupção, pela especulação, pela jogatina das bolsas e pelos ataques aos mercados e às moedas de países como o meu Brasil.

 

 Trilhões de dólares subtraídos da produção, da saúde, da educação, do saneamento, do combate à fome, às guerras, à violência, às desigualdades.

 

 E muitos desses senhores, especialmente em países ditos em desenvolvimento, têm ainda o desplante de dizer que suas offshores, suas fortunas nos paraísos ficais são legais, declaradas aos órgãos de fiscalização de seus países.

 

 De fato, coisas escandalosas são permitidas por lei, observa John Doe.

 

 Acredito que a irracionalidade e a mesquinhez da usura, da acumulação improdutiva sejam os símbolos da sombria época em que vivemos.

 

 Daí a iluminação, a claridade, a sabedoria e o conforto das palavras do Papa Francisco. Sua santidade, talvez por vir da distante e exangue América Latina, compreende como poucos a toxidez do capitalismo financeiro. O maldito reino de Mamon, como diz sem eufemismos Jorge Mário Bergoglio.

 

 Quem sabe, quem acredita talvez saiba, que Deus, compadecido de nossas agruras, miserando atque eligendo;ou seja, compadecido de nós o escolheu, para reforçar as nossas vozes contra a escravidão econômico-financeira.

 

  Estudo de uma universidade alemã, que recebeu destaque no jornal de economia Handelsblatt, confirmou que, do chamado bailout, o resgate da Grécia pelas “instituições europeias”, 95% foi para salvar bancos primariamente alemães e franceses, e só 5% foi para o orçamento do país.

 

 “Os pacotes de ajuda foram primeiro e acima de tudo usados para resgatar bancos europeus”, afirmou o presidente da Escola Europeia de Tecnologia Gestão de Berlim, Jörg Rocholl, conselheiro do ministro das Finanças alemão, Wolfgang Schläuble. “Os contribuintes europeus fizeram o resgate de investidores privados”.

 

 O estudo de 24 páginas, de autoria dos economistas Jan Hildebrand e Thomas Sigmund, que analisou empréstimo por empréstimo e a destinação, concluiu que, dos 215,9 bilhões de euros dos resgates dos últimos seis anos, apenas 9,7 bilhões foram para o orçamento grego.

 

 Ou seja, menos de 5% do total atendeu, em alguma medida, a população, enquanto 95% foram parar nos cofres dos bancos europeus, principalmente os bancos franceses e alemães, entupidos de títulos soberanos gregos.

 

Oitenta e seis bilhões e 800 milhões tiveram como destino o pagamento de dívidas antigas; para juros foram destinados 52,3 bilhões de euros; a recapitalização da banca grega – fundamentalmente, para evitar que os bancos alemães e franceses fossem à lona com a bancarrota desses bancos – custou mais 37,3 bilhões

 

 Em reuniões como essa sabemos que, quase sempre, as declarações oficiais, as declarações conjuntas, os protocolos não expressam todos os nossos sentimentos.

 

 Debaixo das palavras, como brasas sofreadas, queima a nossa impaciência.

 

 E impacientes proclamamos a nossa oposição a tratados comerciais que nos reduzam ao papel colonial de produtores de commodities.

 

 Veementes e ciosos da força e da grandeza de nossos povos denunciamos e recusamos o desenho geopolítico que as potencias querem impor ao mundo.

 

 O nosso petróleo, as nossas reservas minerais, as nossas florestas, as nossas terras, as nossas águas, os nossos povos não são ativos à disposição de cobiças imperiais.

 

 Aflitos, ansiosos queremos mais do que belas ou misericordiosas palavras.

 

 Há um mundo novo a ser construído. Um mundo de paz, harmonia, desenvolvimento, fraternidade e igualdade.

 

 O mundo velho dos impérios, das corporações transnacionais que trituram povos, países, sonhos e vidas precisa ser contido sob pena da extinção da própria humanidade.

 

 Não mais a pilhagem, a rapina de nossas riquezas, não mais a predação e o sequestro de nossa cultura, não mais o desrespeito e a profanação de nossa história, nunca mais o aviltamento e a humilhação de nossos trabalhadores.

 

 Utopia?

 

 Não está morto quem luta, não morreu quem sonha.

 

 Lutemos, sonhemos. É possível.

 

[1] Roberto Requião é senador pelo Paraná em seu segundo mandato. Foi governador do Paraná por 3 mandatos, prefeito de Curitiba e deputado estadual. É graduado em direito e jornalismo com pós-graduação em urbanismo e comunicação.

Discurso do Senador Requião na Eurolat, em Lisboa

 

17 de maio de 2016

Roberto Requião (PMDB-PR).

 

https://www.alainet.org/pt/articulo/177532?language=es
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