O dia da vergonha e o futuro da democracia
- Opinión
No dia 17 de abril de 2016, a Esplanada em Brasília amanheceu dividida por um muro de metal. A proposta era impedir que os dois lados em confronto se enfrentassem fisicamente, evitando assim consequências piores do conflito político instalado no país. Quando a sessão que votaria o início do processo de impeachment contra a Presidenta começou, se percebeu que o muro físico era apenas uma pequena representação concreta de um muro muito maior e mais antigo, erguido pelas velhas oligarquias, e atualizado com a forma das bancadas da bala, do boi e da bíblia.
Discursando em nome da família (claro, só a própria), de Deus e dos amigos, e pelo “fim” da corrupção, poucas vezes foi tão explícita a relação do conteúdo discursivo dos senhores deputados favoráveis ao golpe na democracia e os interesses que efetivamente representam ao país.
Encerrada a sessão, e como já era esperado em um contexto no qual o governo deixou de contar com o apoio das principais bancadas que até pouco tempo lhe davam “sustentação” no Congresso, estava consumado o resultado, não tendo havido o mínimo prurido por parte dos que votaram pelo SIM em justificar a decisão com base no pedido, ou seja, na caracterização das pedaladas fiscais como crime de responsabilidade.
O que se ouviu foram manifestações no sentido de que Dilma e o PT desagregaram a família, dividiram o país, inventaram a corrupção, desarmaram o povo e quebraram a economia, e por isso haveria legitimidade para usurpar o voto popular e derrubar o governo no Congresso, como se vivêssemos em um regime parlamentarista.
Nas análises que se seguiram, a maioria dos pseudojornalistas, que se refestelaram nos últimos meses em seguir a onda e dar sustentação ao golpe junto à opinião pública, já deixava de lado o que se ouviu e buscava colocar toda a responsabilidade do resultado sobre a Presidenta quase deposta, acusando-a de inabilidade política, falta de traquejo para negociar com o Congresso, e coisas do gênero.
Poucos se deram ao trabalho de avaliar o significado da consolidação e gravidade do atual quadro político, em que se arquitetou uma nova maioria, liderada pelo senhor do baixo clero, Eduardo Cunha, com o PSDB e DEM na retaguarda, refratários a qualquer mudança social, e ressentida e revoltada com o que foi feito nos 12 anos de governos Lula-Dilma.
Não há, de fato, em um contexto de presidencialismo de coalizão, como governar sem maioria no Congresso. E a construção feita por Lula desde o primeiro mandato, incorporando um amplo campo de forças políticas em torno de um projeto democrático e popular, de desenvolvimento econômico com redistribuição de renda, foi pouco a pouco se esboroando, em grande medida, tanto pelas próprias alianças do PT com os partidos de centro-direita que culminaram em uma montagem dos ministérios em 2015 já bem distante dos movimentos sociais, como pelo aumento das tensões em torno de questões para as quais nunca houve consenso.
Entre elas, a ampliação dos programas sociais, o combate à fome e às discriminações várias, a realização de medidas efetivas para a redução da violência em todos os âmbitos, a reforma política e a afirmação do país de forma soberana no contexto internacional, rompendo definitivamente com um modelo de alianças econômicas que priorizasse um irmão do norte e que apontasse para a consolidação dos BRICS e de boa parte dos países latino-americanos. Ou seja, a própria governabilidade já começava a pregar uma peça nos avanços sociais dos últimos anos.
De outro lado, no momento da derrota, vários críticos do governo se apressaram em apontar o dedo e afirmar, em tom professoral: nós avisamos, quem se mistura com essa gente só pode esperar este tipo de retribuição. Muito fácil falar. Difícil é apresentar um caminho alternativo para o que foi construído até aqui no chamado presidencialismo de coalização: em que pese a criação de uma base parlamentar minimamente coesa num quadro de enorme fragmentação partidária e influência crescente de grupos conservadores sobre as bancadas e os mandatos, sobretudo, na última legislatura.
Foi a tentativa de um caminho possível para a afirmação do projeto democrático e popular num presidencialismo de coalização. Trazendo o PMDB para o centro do governo, se reconhecia que a esquerda não governa sozinha, muito menos em minoria no Congresso, e a aliança com os partidos de centro-direita era o preço a ser pago para viabilizar políticas e programas que incluíssem no âmbito da cidadania as parcelas mais pobres da população.
Para estes analistas de ocasião, que são como o relógio parado, que acerta a hora duas vezes por dia, a culpa já está formada e o jogo já está previamente jogado. Para quem não se contenta com simplificações, é preciso ir além.
Considerar, por exemplo, o papel seletivo da Lava-Jato, sustentada em um núcleo da Polícia Federal claramente contrário ao governo e bastante hábil na arte dos vazamentos seletivos. Em uma força tarefa do Ministério Público Federal que se autonomizou de uma relação republicana com o Executivo e passou a atuar de forma voluntarista e irresponsável em nome de uma faxina ética nas estruturas históricas de clientelismo e patrimonialismo existentes em nosso sistema político. E em um juiz militante e convencido de sua missão salvacionista.
Talvez se possa afirmar que o erro aqui foi o de ter acreditado no “republicanismo” destes atores, e ter dado pouca importância ao seu papel para animar o circo midiático monotemático. Com um Ministro da Justiça com pouca capacidade para frear os ímpetos nem tão imparciais de setores da PF, do MP e do Judiciário, e um Supremo Tribunal Federal pouco interessado em exercer o seu papel de moderação diante da politização da justiça, o resultado não poderia ser outro.
Se de um lado o golpe prosperou, e o maior passo foi dado, por outro a conjuntura oferece também algumas novidades importantes para pensar sobre os movimentos futuros.
De um lado, para quem tem compromisso democrático, a gritante ilegalidade de um processo conduzido de forma casuística e sem sustentação em bases minimamente consistentes para a caracterização do crime de responsabilidade e o afastamento da Presidenta, além da manifesta hipocrisia e oportunismo dos seus artífices, exigem que se vá até o fim na luta pela legalidade democrática.
Significa lutar no Senado para barrar o golpe, significa mobilização dos movimentos sociais, assim como questionar a legalidade do que até aqui foi praticado no Supremo Tribunal Federal. De outro lado, é preciso reconhecer que a aliança governista que conduziu até aqui a sustentação da “governabilidade” está definitivamente esgotada e encerrada. Com direito a discursos de louvação à ditadura militar e à tortura, que não fizeram corar as faces mais risonhas dos antigos (ou ex) sociais-democratas e até socialistas, que comemoraram abraçados no final da sessão.
No período que se abre, a disputa no interior das instituições e nas ruas para barrar o golpe e a usurpação ilegítima do mandato conquistado nas urnas precisa ser acompanhada pela consolidação da aliança construída nas ruas nos últimos meses entre todos os brasileiros comprometidos com a legalidade democrática e com um programa capaz de enfrentar as mazelas e as estruturas carcomidas do sistema político brasileiro.
O que significa recolocar na pauta uma agenda de reformas estruturais, que se não tem como prosperar neste momento no parlamento, é a base em torno da qual será possível recompor o campo democrático e popular e retomar a iniciativa política para os futuros embates eleitorais.
Um possível governo Temer irá assumir com a pecha da ilegalidade gravada na testa, mas com amplo apoio de setores empresariais para uma retomada do crescimento econômico e de setores políticos para colocar uma pedra sobre antigas e novas denúncias em torno do financiamento das próprias campanhas, que atingem grande parte dos parlamentares que defenderam a “ética” ontem.
O problema de Temer e dos que o apoiam é que, apesar do golpe, ainda teremos eleições, e inclusive se pode prever a possibilidade, diante da insustentabilidade de um governo em bases tão precárias de legitimidade, da antecipação de eleições presidenciais para muitro breve.
Se, para alavancar a economia, Temer tiver de aplicar, como já acenou em sua “Ponte para o Futuro”, um receituário ortodoxo e neoliberal, e se sua tarefa política que lhe garantiu a maioria pelo impeachment é abafar a Lava-Jato e suas consequências, o preço a ser pago será alto nas urnas e logo virá a conta.
Fica a indagação sobre o destino de Eduardo Cunha, artífice mor do golpe e denunciado na Lava-jato. Se ele for agora aliviado, e continuar exercendo seu mandato, caminhamos para a reoligarquização do país, a consolidação de uma democracia de fachada, de baixíssima intensidade, com o endurecimento e seletividade penal para o povo e as torneiras abertas para o grande capital financeiro e para a desindustrialização do país.
Estaremos, então, diante de uma reversão histórica em relação a um modelo de país que se expressou, nas três últimas décadas, em torno da Constituição de 1988. Ao invés de avançar na consolidação de um Estado democrático de direito para todos os brasileiros, estaremos retomando uma trajetória histórica de permanências, desigualdade, miséria e violência. Entretanto, ao contrário dos parlamentares do SIM de domingo, vale lembrar que manifestações do dia 13 de março mostram que os movimentos sociais vão SIM continuar pedindo mais direitos e mais democracia. Afinal, “amanhã será um novo dia…”.
- Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo é sociólogo, professor da PUCRS, pesquisador do INEAC e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
- Marcelo da Silveira Campos é doutor em Sociologia (USP) e mestre em Ciência Política pela Unicamp. Foi pesquisador visitante no Departamento de Criminologia da Universidade de Ottawa. Atualmente é pesquisador do OSP-UNESP, do GPESC-PUC-RS e professor adjunto de Sociologia da UFGD.
Crédito da foto: ABr
21/04/20
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