O cerco institucional como arma golpista – Chile e Brasil
Programas de profunda democratização econômica, social, política e cultural que os nossos países requerem, demandam processos de democratização do Estado.
- Opinión
Pude ver a cena final do cerco institucional que derrubou Salvador Allende: saí da minha casa naquela manhã da terça 11 de novembro, a duas quadras do Palácio da Moneda, já cercado pelas forças militares do golpe. Havia sido dado o ultimato a Allende, que resistia, da janela do Palácio desde onde costumava fazer seus discursos à Praça da Constituição. Com o capacete que os mineiros lhe haviam dado, mais o fuzil soviético AK que Fidel Castro lhe havia presenteado, disparando, solitário.
Era a imagem do presidente que havia jurado que só sairia morto do palácio presidencial antes do final do seu mandato e assim cumpria seu juramento. O presidente mais legalista que o Chile havia tido, defendia, com a arma na mão, a legalidade que foi se fechando sobre ele e o asfixiando. Defendia com as armas na mão, uma constitucionalidade que se havia voltado completamente contra ele.
Desde seu triunfo eleitoral, o cerco foi se estabelecendo. Como não conseguiu mais de 50% dos votos – teve 36% -, dependeu da ratificação do Congresso, para o que a Democracia Cristã lhe impôs, entre outras condições, a obediência à sequencia hierárquica nas promoções dentro das FFAA chilenas. Assim, mesmo diante do atentado premonitor que matou o então comandante em chefe das FFAA, vinculado à DC, que pretendia que fosse atribuído a grupos radicais de esquerda, mas na realidade feito por grupos de extrema direita, permitiu a Allende buscar seus rastros dentro das instituições armadas e descabeçar o complô que recém começava a se desenhar.
Sabe-se que naquele mesmo momento o proprietário do jornal El Mercurio, Agustin Edwards, se reunia no salão oval da Casa Branca com o presidente dos EUA, Richard Nixon, e com o Secretario de Estado, Henri Kissinger, quando este decretou: "É preciso salvar os chilenos das suas próprias loucuras". A loucura era o projeto do socialismo pela via pacifica de Salvador Allende.
Assim que se instalou no Palácio da Moneda, Allende começou a sofrer o cerco institucional. A começar pelo do Congresso, onde a aliança da Democracia Cristã, partido de centro, com o Partido Nacional, de direita, deixavam o governo sempre em minoria. Não apenas os projetos ligados ao programa socialista de Allende – que previa a nacionalização dos 150 maiores conglomerados econômicos do pais, entre outras medidas – não tinham nenhuma possibilidade de serem aprovados, como rapidamente o Congresso começou a se valer do seu direito de destituir ministros, o que foi enfraquecendo desde o começo a capacidade de articulação política do governo.
A oposição contava também com o Judiciário – especialmente com a chamada Contraloria e seu poder de delimitação das ações do governo -, com o qual foi consolidando, junto com o Legislativo, um cerco que castrava a capacidade de ação do governo. A esse cerco se somaram o monopólio privado da mídia – jornais, revistas e, especialmente, rádios e TVs -, e o fator que terminaria sendo o decisivo: as FFAA, plenamente enquadradas na Doutrina de Segurança Nacional da era da Guerra Fria e ancorada no seu sucesso na ditadura militar brasileira.
Fechado dentro do palácio presidencial, mesmo contando com um grande apoio popular organizado, o governo foi sendo asfixiado e perdendo capacidade de ação. Num penúltimo gesto, Allende incorporou ao governo os próprios comandantes em chefe das FFAA – entre eles o próprio Augusto Pinochet -, tentando comprometê-los com a institucionalidade. Dramaticamente, na última grande mobilização popular, que comemorava os 3 anos da sua vitória eleitoral, onde surgiu o famoso cartaz "É um governo de merda, mas é o meu governo", levado por sindicalistas, Allende sequer discursou. Limitou-se a acenar para a maior multidão que o Chile já havia visto desfilar por suas ruas, sem dirigir-lhes palavra, como que dizendo que já não tinha mais nada a dizer-lhes.
A derradeira tentativa de manobra politica de Allende foi o projeto de convocar um referendo sobre um tema educacional, que o governo seguramente perderia, o que levaria Allende a renunciar, entregar o governo ao então presidente do Senado, Eduardo Frei. Com isso, pretendia dividir a oposição, salvando a constitucionalidade. Mas confessou seu plano para seu então ministro, Augusto Pinochet, que correu antecipar a deflagração do golpe, antes mesmo da cadeia de rádio e TV em que Allende iria anunciar sua última tentativa de romper o cerco político sobre seu governo. O cerco se completava com o papel ativo dos EUA, seja na articulação das forças internas de desestabilização, como no apoio às FFAA chilenas – militar e ideológico -, para consumar o golpe.
A cena que eu pude ver era o resultado final, físico, do cerco e da asfixia institucional de que o governo de Allende foi vítima. Dos 36% dos votos de 1970 ele chegou a 41%, em 1973, insuficientes para ter maioria, que serviram também de sinal para a oposição de que tampouco obteria os 2/3 necessários para um golpe branco via Congresso.
Pouco depois de se negar a abandonar o Palácio da Moneda, xingando os militares golpistas que lhe fizeram chegar a oferta, Allende sofreu os bombardeios de caças ingleses, que destruíam o palácio presidencial e a democracia chilena. Coerente com seu juramento, Allende se suicidou com o fuzil AK e foi retirado do palácio presidencial morto, conforme havia jurado. Assim se concluía, dramaticamente, o cerco institucional do aparelho de Estado chileno, em que Allende se meteu, com a esperança de democratizá-lo por dentro.
Mas a história nunca se repete. Os tempos são outros: há uma doutrina consensual no continente contra qualquer forma de golpe, branco ou militar, que levou às punições e isolamento dos governos surgidos de golpes brancos em Honduras e no Paraguai. Ao mesmo tempo, o papel e o peso das FFAA foram redimensionados e elas já não assumem doutrinas expressamente golpistas, embora mantenham seu poder material de ação, que em última instância tem um papel decisivo. Por outro lado, o contexto já não é o de ditaduras militares, mas o de democracias e até mesmo de governos progressista na região – o que leva a posições de condenação de qualquer forma de golpe no Brasil pelo Mercosul, pela Unasul e pela Celac. O peso dos EUA na região, por sua vez, diminuiu muito, mais ainda do ponto de vista militar, embora não possa ser subestimado.
Governos como o brasileiro, por sua vez, embora sem contar com maioria própria no Congresso, conseguiram se apoiar em alianças que viabilizaram o projeto de mais profunda democratização social do país mais desigual do continente mais desigual, permitindo que o povo conhecesse os efeitos concretos dos programas de esquerda. A própria liderança do Lula, mesmo fora do governo, é resultado do sucesso dos governos de esquerda.
Mas a questão do cerco institucional permanece como elemento de asfixia da capacidade dos governos que destoam dos interesses conservadores que marcam os aparelhos de Estado e suas estruturas legislativas e judiciárias, assim como as policias, bem como o peso dos meios de comunicação, menor que anteriormente, mas que atua ainda fortemente, tanto dentro como no plano internacional.
Programas de profunda democratização econômica, social, política e cultural que os nossos países requerem, demandam processos de democratização do Estado, em todas suas instâncias, assim como a democratização do processo de formação da opinião pública, quebrando o peso dos monopólios privados dos meios de comunicação. Mas, mesmo antes disso, políticas de aliança no Congresso com outros setores, ampliando a base de apoio do governo, neutralizando setores e isolando a direita, são essenciais. Da mesma forma que políticas de renovação da composição do Judiciário com juízes com consciência democrática e sensibilidade social. E o enfraquecimento do poder de ação dos meios de comunicação golpistas, ao lado do fortalecimento da ampla gama de meios alternativos.
Mas, ao mesmo tempo, é indispensável e urgente um programa econômico que recupere a capacidade de crescimento da economia, acompanhado de medidas de proteção do salário e do emprego da grande massa trabalhadora do pais. Para o que se requer a convocação de setores do empresariado e dos movimentos sindicais, para reconstituir um bloco social e político que possa dar novo impulso ao governo e neutralizar o cerco institucional que pretende asfixiá-lo, desembocando em alguma forma de golpe branco.
Para que efetivamente, como se grita em todo os cantos do país, se realize o "Não vai ter golpe, vai ter luta".
- Emir Sader, colunista do 247, é um dos principais sociólogos e cientistas políticos brasileiros
22 de Março de 2016
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