Racionalidade, amor e natureza: colocando a vida no centro de nossos pensamentos
- Opinión
“A grande escolha de um homem é aquela em que ele
se transcende: é criar ou destruir, amar ou odiar”
(Erich Fromm)
O presente artigo não tem a pretensão de esgotar temas, mas apenas busca pontuar alguns debates que consideramos relevantes, muito dos quais ainda em processo de elaboração intelectual.
Nos últimos tempos, tenho dedicado o meu trabalho intelectual a três assuntos: a conservação da natureza, a defesa da democracia e a contraposição os crescentes movimentos de ódio que irradiam impulsionados pelo conservadorismo midiático.
Se nos atentarmos de forma direta aos três objetos, é possível observar a forte integração existente entre assuntos, não apenas na origem, como nas possíveis alternativas. De todos, chamo especial atenção ao ódio que alimenta a capacidade destrutiva da humanidade.
Max Weber, na sua notável obra sociológica, via na racionalidade instaurada pelo capitalismo, tanto um potencial transformador, como uma possível forma de aprisionamento.
A racionalidade criou instrumentos capazes de proporcionar à humanidade uma convivência mais harmônica através dos seus aspectos instrumentais, seja pela sobreposição da lógica racional-legal do direito, que passava a disciplinar com mais ênfase as relações sociais, seja pelo processo produtivo organizado da indústria capitalista, capaz de prover as pessoas com bens e serviços graças ao aumento na produção O mundo estava “desencantado”, e o misticismo passou a ser substituído por um pensamento racional.
Mas o próprio Weber via que a exacerbação da lógica meramente racional poderia levar a humanidade para uma encruzilhada e aprisionamento, é famosa a metáfora da “gaiola ou jaula de ferro”, símbolo de um mundo cada vez mais rígido, mais mecânico, mais sombrio, embora mais eficiente. Portanto a racionalidade libertadora carregava dentro de si, também, o vírus do aprisionamento.
A própria Alemanha, país de origem de Max Weber, foi vítima de dois movimentos belicistas fortemente racionalizados: as Duas Grandes Guerras. O “gás-mostarda” que sufocou milhões, o surgimento de tanques e o uso de aviões ainda na Primeira Guerra mundial, são alguns símbolos do uso do argumento racional da força contra a própria humanidade. Mas o Nazismo foi o exemplo máximo de uma “jaula de ferro”, pois as câmaras de gás e os campos de concentração mostraram uma forma de racionalização suprema e sem sentido da morte de seres humanos em escala industrial. Cada judeu, cada cigano, cada homossexual, militante comunista ou deficiente físico sufocado nas “câmaras da morte” tinha um número, dentro de uma estratégia própria de desumanização dos indivíduos. Retirar dos seres humanos seus nomes, sua voz, seus padrões morais, transformado estes em números e símbolos pode até ser racional, mas é mecanismo de afastamento das vítimas da sua personalidade, da sua individualidade, daquilo que nos torna humanos. Em síntese, “a desumanização completa do ser”.
O mundo desencantado, sujeito à racionalidade industrial, demonstrou a face mais feia e vergonhosa da humanidade.
Na prática, se analisarmos sob o ponto de vista frio e sem empatia, como fazem os psicopatas de Wall Street, a morte é, racionalmente, um fato normal. O que limita os homicídios são os valores morais da civilização inscritos nas normas jurídicas. E quando chegamos ao mundo dos valores, fica reafirmado que a racionalidade fria é uma forma de limitação do nosso ser.
Com o “desencantamento do mundo”, talvez tenhamos perdido alguma coisa, como a força dos sentimentos, a magia da natureza, e a suprema importância da vida e das suas diferenças. Passamos, não a dominar, mas a sermos dominados pelo tempo a ser controlados por relógios, submetidos à produção em escala de alimentos na indústria, e ao esvaziamento estético da diversidade do ambiente. Numa sociedade dominada por argumentos medidos e cronometrados, viver é apenas o resultado de um processo natural, mas que pode ser controlado por um tipo de ciência. Vejam o exemplo de uma paisagem verde e morta como é o exército de eucaliptos plantados que alimentam a degradadora indústria da celulose e do papel.
A ideia de que a humanidade dominou o mundo e a natureza é um mito. Dominamos, isto sim, mecanismos de controle que destroem o nosso corpo e espírito (daí a escravatura por remédios), formas de auto aprisionamento da individualidade, além de diversas formas de destruição da vida e do planeta, como as bombas atômicas, por exemplo. As grandes inovações da racionalidade científica do século XX foram a pedagogia do medo e a construção dos mais perfeitos mecanismos de destruição.
Abdicamos da beleza das flores, do encantador canto das aves, da suavidade das águas, da beleza furiosa e gigantesca do mar, do olhar dócil de um cão, da altivez dos felinos (muitos em processo de extinção), das peripécias dos golfinhos, ou simples direito de sentar à sombra de uma árvore e sentir o cheiro da relva molhada pelo orvalho. A própria literatura perdeu a sua intensidade e complexidade em nome de modelos descritivos, publicitários e vazios. E a poesia foi abandonada como se fosse coisa do passado, um mero instrumento para sonhadores…
Num ambiente onde a diferença e a complexidade do mundo são descartadas, temos condições propícias para a emergência do ódio.
Diferentemente da raiva, o ódio não é transformador, pois é sistêmico e assentado em preconceitos. É uma tentativa de justificar frustações e fracassos dentro de uma falsa racionalidade, onde é outro é visto como responsável por todos os males do mundo.
O ódio é a antítese do amor. Pois o último é construtivo, consistente, e firmado em base sólidas. Já o primeiro, se sustenta na superficialidade, no vazio, no preconceito, nas frustações… promover o ódio é a melhor forma de manter uma sociedade especialmente frustrada distante do mundo real, presa fácil para a racionalidade dos grupos dominantes.
Se é bem verdade, como diria Fromm ainda na década de sessenta, e, de certa forma, o próprio Freud, antes disso, que vivemos numa sociedade cada vez mais carente de amor, de verdade, de intercâmbio de conhecimentos e de ideias. Também é verdade que fomos aprisionados por um modelo de organizar onde o “amar deixou de ser um verbo”, um elemento de ação, para ser “convertido num objeto”. É como se pudéssemos comprar o amor no “boteco da esquina” ou numa farmácia.
Em síntese, o nosso ser, o agir, foi convertido no ter, a nossa essência dinâmica como seres vivos passou a ser dominada pela estática das linhas de produção. As ideias saíram do mundo da vida e foram transferidas pela hiper-realidade fabricada pela mídia. Daí as frustrações, a perda da esperança, uma outra forma de “desencantamento” que deixa o campo aberto para a emergência do ódio.
E o que todo este debate tem a ver com a conservação da natureza? A resposta é bem simples, tudo! Se o universo onde vivemos foi desencantado, em nome de uma racionalidade estéril, cada vez mais o ser humano deixou de ser parte de um ambiente naturalmente mágico, que encantava o mundo pré-capitalista, e passou a tentar impor o seu modo de ver pautado numa racionalidade produtivista sobre a Natureza.
Hoje temos a possibilidade da produção em escala de seres vivos por meio da engenharia genética e da clonagem, sendo que muitos podem ter aspectos considerados positivos aumentados, e outros considerados negativos. O sonho nazista da eugenia pode ser encontrado em qualquer laboratório de reprodução assistida que já trabalha com a programação do código genético. Ou alguém ainda acredita que a tecnologia adotada em plantas não pode ser aplicada a indivíduos mais complexo? Vejam os estudos e pesquisas da clonagem aplicados à pecuária. O que para alguns é fonte de lucro crescente, para o futuro da humanidade é assustador!
A guerra biológica e bacteriológica é extremamente real e já foi testada por diversos genocidas. O risco da expansão de vírus e bactérias pelo planeta, mais letais do que a gripe espanhola, é uma constante. Diga-se de passagem, a própria Organização Mundial de Saúde é pessimista em relação ao tratamento de pandemias, cada vez mais presentes no nosso dia a dia, dado o uso intensivo de antibióticos na pecuária.
Vírus cada vez mais letais são uma ameaça permanente. A programação genética é uma realidade, e ainda existem cientistas que, ironicamente, defendem a clonagem como uma alternativa para trazer a vida espécies que a própria humanidade levou a extinção! Parece incrível, mas a mesma racionalidade produtiva que é responsável por 90% de todas as extinções de espécies do planeta agora quer ganhar dinheiro trazendo à vida aquilo que ela mesmo destruiu. Nada mais do que uma cortina de fumaça destinada aos mais ingênuos para aperfeiçoar o lucrativo mercado da programação genética.
Tudo isto num cenário onde as pessoas são cada vez mais incitadas ao ódio, e onde a manipulação e a alienação intelectual ocupam um lugar de destaque.
Para confrontar este longo caminho de destruição, nos propomos a retomada do amor. Não do amor platônico dos poetas românticos, mas da retomada do sentir, do compartilhar, do agir. O amor como verbo, como ação, como instrumento de mediação frente à escalada do ódio.
Já destacamos que o nosso conceito de amar vai além dos sentimentos para com outras pessoas. Também compreende a retomada dos sonhos, dos desejos, das utopias, da empatia em relação às outras espécies, da nossa capacidade de transformar e ser solidários, de reafirmarmos a tolerância em relação à diferença.
Amar é viver, é nutrir laços com os demais indivíduos, e retomar a esfera pública como espaço de troca, e a coragem para enfrentar as dificuldades e os conflitos. Assim como Drummond não vejo ao ser humano, entre as demais criaturas, outra alternativa, que apenas a de amar…
Aqueles que estão dominados pelas frustações e pelo ódio são presas fáceis para a violência desmedida, mesmo que reativa, como vimos em muitas ações terroristas. O amor é uma contraposição ao ódio, é uma forma de “reencantar o mundo” e de valorizar a vida…
E talvez aí, nessa ao mesmo tempo pequena e gigante transformação do ser, possamos realmente reconstruir o mundo, combater os problemas que ameaçam a natureza e todas as espécies que nela habitam, para construir um ambiente muito melhor e mais promissor…
- Sandro Ari Andrade de Miranda, advogado, mestre em ciências sociais.
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