O Brasil é um país democrático?

01/02/2016
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 lula discurso
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Embora sejam perenes e, portanto, históricas, as desigualdades sociais, econômicas, político/institucionais, de oportunidades, de raça e gênero, entre outras, vivenciou-se no Brasil após 1988 e sobretudo com a ascensão do Partido dos Trabalhadores à presidência da República ampliação significativa de direitos políticos, sociais e trabalhistas. De certa forma, tratou-se de segundo momento de expansão do Estado Social, uma vez que fora inaugurado pela Era Vargas (neste, de forma parcial e sem que a democracia política tivesse sido incorporada).

 

Pode-se dizer que entre 1988 aos dias de hoje, mesmo com os dez anos de governos neoliberais, como o foram Collor e FHC, a Constituição de 1988 foi, lentamente, substantivada. Seu ethos foi-se espraiando, entre outros aspectos, com a criação e consolidação dos Sistemas Universais (SUS, SUAS, Fundef/Fundeb); a constitucionalização de verbas sociais; a manutenção – e fortalecimento, de Lula aos dias de hoje – da Previdência Social e do Salário Mínimo; as inovações na transferência de renda; a ampliação da participação política e do controle social; a maior transparência dos recursos públicos e o fortalecimento das instituições (embora, ambas, com ressalvas significativas); o protagonismo do Estado quanto ao desenvolvimento; entre outras. Grande parte desses avanços se deu sob os Governos petistas, como se sabe e tem sido reconhecido internacionalmente.

 

Esse conjunto de políticas públicas e mecanismos de participação criaram, em cerca de duas décadas – descontando-se, reitere-se, os interregnos de Collor e FHC – um país menos desigual e mais participativo, assim como instituições mais fortalecidas e independentes. Nesse sentido, jamais podemos nos esquecer, sob FHC, do “engavetador geral da República”, no contexto maior da instrumentalização dos poderes do Estado; da “emenda da reeleição”, cujos indícios de verdadeira compra de votos, com a devida condescendência da grande mídia “moralista” de hoje, são brutais; do escândalo das privatizações, notadamente sua “modelagem”; entre inúmeras outras aberrações não investigadas e não sensibilizadas pelas instituições, pela mídia e pelos grupos de classe média hoje mobilizados. Tais mazelas foram em boa medida suplantadas a partir de Lula, exceto o módus operandi da vida política nacional, que se manteve por meio da “privatização da vida pública”, cuja origem está no Sistema Político, em que o dinheiro é crucial à ação política.

 

Pois bem, se a análise até aqui é fidedigna, isto é, se houve avanços significativos a partir do primeiro Governo Lula – mesmo em meio à aliança de classes, ao papel do dinheiro na vida pública e ao não enfrentamento dos grandes poderes –, como explicar a atual conjuntura política brasileira, que em menos de um ano parece ter ruído – ou está em vias de – o que se conquistou, a duras penas, desde 1988 e desde 2003?

 

Como compreender o facciosismo do Judiciário, notadamente sua corte suprema, desde o julgamento do chamado “mensalão”? Como analisar o papel do Ministério Público, federal, na atual quadra política, e de diversos estados, como o de São Paulo (em larga medida verdadeiro “chapa branca” do grupo que está no poder há vinte anos)?; Como se pôde permitir a magnitude de poder a juiz de primeira instância, como o juiz Moro, igualmente faccioso? Como analisar o facciosismo anti-petista, portanto seletivo, na Polícia Federal? Como avaliar a ditadura desinformante e abertamente manipulatória da grande mídia? Como compreender o ódio de classes de grupos que se beneficiaram das políticas do Governo Lula, caso de setores empresariais e das classes médias tradicionais? Como entender o antipetismo de grupos sociais que ascenderam justamente por causa das políticas públicas efetivadas pelos governos do PT? Tais perguntas referem-se a instituições do Estado, a grupos sociais, a grupos econômicos e ao ambiente político. Somente poderão ser respondidas ao articularmos diversas dimensões e variáveis, que temos intentado ao longo dos artigos publicados neste Portal, notadamente desde o ano passado. De toda forma, continuam presentes em nossos questionamentos.

 

Neste início de 2016 há mais incertezas do que estabilidade, uma vez que a possibilidade de derrubada parlamentar e judicial – sem provas – da presidente eleita pelo voto ainda persiste. Mais ainda, persistem um sem-número de atentados ao Estado de Direito Democrático: prisões sem estofo jurídico, isto é, sem evidências, pela “República judicial de Curitiba”; extrema seletividade investigativa e vazamentos criminosos à imprensa, numa intensa articulação entre Poder Judiciário e Mídia; leniência para com alguns (caso de Eduardo Cunha, cujas provas são cabais) e dureza com outros (caso de Dulcídio Amaral, cujas provas são tênues); investigações voltadas ao PT, deixando de fora o PSDB, cujo objetivo é desfazer o evidente fio condutor entre ambos quando o assunto é Petrobras, empreiteiras, entre inúmeras outras; linchamento moral do PT e particularmente da presidente Dilma e do ex-presidente Lula, objetivo maior do golpismo; manifestações agudas de intolerância nas ruas e em ambientes públicos e privados. A lista é longa e esses são apenas alguns dos graves exemplos.

 

A atual caçada ao ex-presidente Lula, cuja trajetória fora, desde sempre, a conciliação entre classes – trata-se, portanto, de um político moderado – expressa esse conjunto de atrocidades institucionais, éticas, políticas e societárias (neste caso, dos grupos conservadores). Se estivéssemos na Revolução Francesa, certamente a guilhotina já teria ceifado sua cabeça!

 

O apelo popular quanto à narrativa midiática e de certos segmentos do Judiciário – caso do Ministério Público de São Paulo, que o colocou, assim como sua esposa, na condição de investigado, fechando os olhos às barbáries do Governo Alckmin – quanto ao suposto tríplex, sítio e barco são risíveis. Trata-se de ópera bufa das mais pobres da história brasileira, embora relembre o udenismo golpista e imoral contra Vargas.

 

Pois bem, o Brasil é um país democrático? Embora democracia seja um conceito polissêmico e de difícil definição, tal sua amplitude e variáveis envolvidas, pode-se dizer que, nesse momento, estamos mais próximos de uma “ditadura plutocrática” que rivaliza e enfraquece o governo institucional eleito pelo voto popular. O objetivo dessa “ditatura” é fazer recuar os direitos sociais e trabalhistas, de um lado, e políticos (notadamente a participação), de outro.

 

Mesmo sem alterações abruptas na ordem constitucional, política, econômica e social, uma vez que a marca dos governos Lula e Dilma foram e são o reformismo gradual, incremental, as velhas elites políticas – travestidas, por vezes, de “novos” movimentos e personagens – querem retomar a demarcação abissal de classes. Em outras palavras, mesmo que moderadamente, o fato insofismável é que há menor desigualdade e maior participação, apesar de as elites, em larga medida, terem seus privilégios em boa medida preservados. Ao lado disso, está a voracidade do Capital: setores empresariais e o rentismo.

 

Nunca um ditado popular foi tão característico de uma época: “cada macaco no seu galho”! É o que quer o rentismo, associado ao neoliberalismo; é o que querem os defensores da “meritocracia” independentemente das estruturas sociais; é o que quer a grande mídia oligárquica e oligopólica, cujo liberalismo é autoritário e dependente das circunstâncias; é o que querem os inocentes úteis que saem às ruas movidos pela “midiotização” do mundo e pela percepção equivocada de perda de direitos perante os avanços sociais dos mais pobres; é o que querem “lideranças” outsiders, tais como Kims, Cherques e outros tantos “ideólogos” destituídos do mais elementar estofo e que apenas ganharam evidência pelo espaço que conseguiram na mídia, ao lado de seguidores que minguam dia a dia. Ocuparam momentaneamente o vácuo da crise do sistema político.

 

Decididamente, o que estamos presenciando na vida político/institucional e societária se distancia vigorosamente da democracia, em qualquer definição que esta possa ter. Em outras palavras, não apenas não consolidamos nossas instituições democráticas – do ponto de vista do Sistema institucional, dos direitos sociais e dos valores democráticos –, como corremos o sério risco de perdermos o que se conquistou desde 1988.

 

Não há, no país, “liberdade de expressão”, pois vige aqui a ditadura do capital midiático, devidamente articulado ao leque empresarial dos mais diversos segmentos, entre os quais o rentismo. O Estado, desde a redemocratização, assiste passivo o embotamento das opiniões. Vide Waaks, Mervais, Garcias, Cantanhedes e tantos e tantos outros asseclas dos barões da mídia como ilustração cabal da ditadura midiática.

 

Mas ainda há tempo para reverter, ao menos parcialmente, esse quadro. A saída de Joaquim Levy, a rearticulação política (Jaques Wagner e Ricardo Berzoini), vitórias parciais no Supremo quanto ao rito do processo de impeachment, isolamento do golpismo de Michel Temer, a divisão do PMDB, o enfraquecimento de Cunha, o esgotamento midiático da Lava Jato (motivo pelo qual o suposto tríplex de Lula ganha destaque) etc são fatos políticos que levam a crer que o golpismo será derrotado. Mas, para além de barrar o impeachment – terminologia que intenta legitimar o golpe, tal como os militares o fizeram com os “atos institucionais” –, o que está em jogo é a democracia, os direitos sociais e trabalhistas, a esquerda e, consequentemente, o Partido dos Trabalhadores e sua maior liderança.

 

A tarefa para este 2016 continua urgente: nas instituições, na política, nas ruas e nos espaços (em sentido amplo) públicos, mas também no Governo Dilma: neste, como se vem afirmando há tempos, o Ministério da Justiça – certamente com outro ministro, com pulso e liderança – deve ocupar papel central para barrar o golpismo, a começar pela Polícia Federal, cuja atuação deve se dar dentro dos estritos marcos constitucionais e legais, diferentemente do que ocorre hoje. Afinal, Sérgio Moro, Gilmar Mendes, setores da Polícia Federal e do Ministério Público Federal, Grande Mídia, grupos de influência conservadores e setores do capital ligados ao rentismo constituem quase que um “Estado dentro do Estado”. Isso, por si só, coloca em xeque a própria ideia de democracia.

 

Muito além do Governo Dilma, o que está em jogo – nunca é demais reiterar – é a democracia política e social. Destituída Dilma e/ou destroçado o PT, o que nos espera é o que se está observando tragicamente na Argentina, isto é, neoliberalismo antissocial e privatizante, rentista, autoritário, subserviente às potencias internacionais e tudo mais que constitui a direita raivosa.

 

Impedir que a visão de mundo e as políticas dos Macris, Capriles e Aécios se tornem dominantes – com ou sem eles – é, portanto, tarefa urgente!

 

Por fim, as reformas do sistema político (representatividade dos partidos e fim da lógica da coligação/coalizão, ao lado do já aprovado fim do financiamento privado) e da mídia (“deslogopolização” e cumprimento dos artigos constitucionais), de um lado, e o enfrentamento ao grandes poderes (rentismo, dívida pública, agronegócio, reforma tributária que tribute os mais ricos etc), de outro, todo negligenciados, são a ponta de lança da agenda progressista e de esquerda que desde já deva ser gestada.

 

A ditadura plutocrática, que é hoje um Estado paralelo, poderá ser o Estado oficial caso democratas, progressistas e a esquerda não se unam em prol de uma agenda democrática mínima. O que está em jogo não é pouco!

 

- Francisco Fonseca é prof. de ciência política da FGV/Eaesp e PUC/SP

 

 

Créditos da foto: Ricardo Stuckert/Instituto Lula

 

01/02/2016

http://cartamaior.com.br/?/Editoria/Politica/O-Brasil-e-um-pais-democratico-/4/35417

 

https://www.alainet.org/pt/articulo/175153?language=es
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