A Declaração Universal dos Direitos Humanos faz 67 anos. Valeu?
- Opinión
Assinada pela maioria dos países em 10 de dezembro de 1948, a Declaração universal dos direitos humanos, celebrada todos os anos na mesma data, prossegue gerando debate sobre a eficácia, ou não, dos seus almejados efeitos. Entre as suas disposições encontra-se a do artigo VIII, endereçada diretamente aos tribunais, cuja interpretação e aplicação estão permanentemente medindo sua efetividade na vida das pessoas:
“Todo ser humano tem direito a receber dos tribunais nacionais competentes remédio efetivo para os atos que violem os direitos fundamentais que lhe sejam reconhecidos pela constituição ou pela lei.”
Uma ótima chance de se avaliar a garantia desse acesso à justiça vai acontecer no dia 17 deste dezembro, no julgamento que a 21ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul vai fazer, de um recurso de apelação (processo 70067008698), interposto por associações de moradoras/es, representando centenas de famílias pobres residentes no Morro Santa Teresa, em Porto Alegre, um local muito conhecido por sua localização fronteira ao estádio Beira Rio, de rara beleza natural, ainda preservando alguma porção da flora e da fauna nativas.
Trata-se de uma ação civil pública (processo 10900935948, tramitando na 4ª Vara da Fazenda Pública de Porto Alegre), proposta pelo Ministério Público contra o Estado do RGS e a Fundação de Assistência Sócio Educativa (FASE) visando responsabilizá-los, entre outras coisas, por permitir a permanência de dezenas de famílias pobres em área de risco, sobre um imóvel urbano de 75 hectares, sob domínio da segunda. A ação foi julgada procedente determinando toda uma regularização fundiária a ser implementada naquele espaço urbano, afetando diretamente não só o direito de moradia das famílias residentes em área de risco, como todas as demais ali exercendo o seu direito de morar.
O processo já se encontra em fase de liquidação de sentença ( nº 11501369790), uma forma legal de precisar em detalhe o que vai ser executado concretamente sobre o imóvel. Isso se deve ao fato de os recursos judiciais interpostos pelo Estado e pela Fase ao tribunal Superior Tribunal de Justiça e ao Supremo Tribunal Federal não terem efeito suspensivo.
As Associações de Moradoras/es residentes naquela área urbana, então, pediram ao juiz da dita liquidação para intervirem no processo já que, com direito adquirido sobre suas moradias, por mais de um fundamento jurídico (Medida Provisória 2220/2001, um decreto do então -governador do Estado, Tarso Genro, reconhecendo o referido direito, e mais de uma disposição da Constituição Federal, da Constituição do Estado do Rio Grande do Sul e do Estatuto da Cidade), pretendem ser ouvidas e querem fazer valer, durante a regularização, esse direito.
Surpreendentemente, o pedido delas, representadas por suas associações, foi rejeitado pelo juiz que preside a liquidação, daí o recurso que interpuseram e vai ser julgado dia 17, pela 21ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado. Não dá para se analisar, num breve espaço de comentário crítico como esse, a motivação inspiradora dessa rejeição, mas é possível adiantar-se ter-se predominantemente preocupada com o tão valorizado “devido processo legal”, aquele que medeia, em juízo, as formas burocráticas de se defender qualquer direito.
Não faltam sentenças, acórdãos de tribunais, doutrinas jurídicas, no país e no mundo, comentando o devido processo legal, parte condenando a transformação de um meio (processo) em um fim (justiça), parte aplaudindo a exigência do formalismo jurídico como um pressuposto de legalidade e, até, também de justiça (?). Independentemente dessas divergências, para o caso, parece conveniente perguntar-se, mesmo se desconsiderando outras bases legais onde os direitos das famílias do morro encontram apoio, se o artigo VIII da declaração universal dos direitos humanos, da qual o Brasil também é signatário – acima transcrito – deu preferência à defesa indispensável de direito humano fundamental, com acesso garantido aos tribunais, ou à forma legal de ela ser apreciada.
Como toda a questão jurídico-legal, quase certamente as divergências, a respeito, sempre tenderão a se renovar. Nunca será demais sublinhar-se o fato, porém, de o reconhecimento de um direito, como o referido artigo VIII diz, induzir o Poder Público, ou até qualquer do povo, a concluir, por simples raciocínio lógico, pré-existir em favor de tal direito um conhecimento anterior a ser levado em consideração. Caso contrário, ele não seria re-conhecimento.
A existência física, concreta, do direito de moradia das famílias interessadas em defendê-lo, num processo onde ele está sendo, no mínimo, ameaçado, não precisaria do devido processo legal para ser re-conhecida, embora, administrativamente, isso até já tenha acontecido de forma legal. A rejeição da possibilidade de elas intervirem no processo, assim, autoriza levantar-se a hipótese de ter-se originado naquela cultura ideológica muito resistente, fundada numa certa aceitação acrítica das nossas profundas desigualdades sociais como se elas fossem “normais”, preconceituando sempre o direito das/os pobres como um jeito de elas/es exagerarem problemas para criar compaixão e pena como se, em vez de direito, o que os tribunais devem lhes reconhecer mesmo são favores. Por serem as famílias do morro muito pobres, possuindo um espaço urbano privilegiado como aquele onde vivem, não faltaram nem faltam ainda hoje interesses poderosos, tanto públicos como privados, fazendo forte pressão sobre elas, pretendendo dar ao morro um aproveitamento mais “civilizado”, segundo os padrões urbanísticos da sociedade “civil”. Essa, tanto nos corredores dos prédios públicos, como nos escritórios das construtoras e imobiliárias, se entende como mais capacitada para dar ao espaço terra um “investimento” rentável, seja em voto, sejam em dinheiro, obstaculizado por uma posse urbana de gente que só atrapalha a imposição mercantil daqueles padrões.
Queira-se ou não, esse tipo de influência tem muito peso também sobre o Poder Judiciário, e ela mais se empodera aí quando esse prefere ficar distante do local daqueles conflitos estabelecidos sobre terra, preferindo formar o seu juízo sobre papéis e documentos a fazer a chamada inspeção ocular, uma prova sabidamente decisiva em casos desse tipo.
Para uma boa aplicação do ordenamento jurídico brasileiro, em ação judicial onde o direito humano fundamental esteja em causa, a simples lembrança do artigo VIII da declaração universal dos direitos humanos nem poderia ser descartada, se considerar-se a diferença que o Ministro do Supremo, Luis Roberto Barroso, mostra existir entre o valor intrínseco das pessoas e o valor atribuído à elas, o assim também chamado valor instrumental. Em seu estudo sobre “A dignidade da pessoa humana no direito constitucional contemporâneo. A construção de um conceito jurídico à luz da jurisprudência mundial” (Belo Horizonte: Forum, 2013), ele ensina:
“O valor intrínseco é oposto ao valor atribuído ou instrumental, porque é um valor que é bom em si mesmo e que não tem preço.” {…) “Do valor intrínseco do ser humano decorre um postulado antiutilitarista e outro antiautoritário.” {…} É por ter o valor intrínseco de cada pessoa como conteúdo essencial que a dignidade humana é, em primeiro lugar, um valor objetivo que não depende de qualquer evento ou experiência e que, portanto, não pode ser concedido ou perdido, mesmo diante do comportamento mais reprovável.” {…) “No plano jurídico, o valor intrínseco está na origem de um conjunto de direitos humanos fundamentais. O primeiro deles é o direito à vida (grifos do autor), uma pré-condição básica para o desfrute de qualquer outro direito.”
Estando o valor intrínseco presente no direito humano fundamental de moradia, inquestionavelmente ligado à vida e à dignidade, defendido pelas famílias do morro Santa Teresa, espera-se que, dia 17, toda a barreira contrária à sua presença em juízo não continue de pé, sustentada apenas no utilitarismo e no autoritarismo raramente ausente do formulismo processual.
dezembro 10, 2015
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