Lava Jato: a aplicação da lei depende de quem é acusado?

21/10/2015
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 justicia
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  As/Os advogadas/os sabem muito bem o custo em trabalho, sacrifício e preocupação cobrado pelo respeito devido aos prazos processuais, inclusive do ponto de vista psíquico. Se a prática de um determinado ato não for levada a efeito num determinado tempo, isso pode ser fatal para a defesa do direito que estiver em causa. O Código de Processo Civil, por exemplo, cria uma espécie de “verdade ficta” se um determinado prazo processual vencer sem manifestação da/o advogada/o ao qual ele obriga. No art. 319 dessa lei, essa hipótese é chamada de revelia e o processo segue até sentença sem chance de essa “verdade” alcançar modificação.

 

 O momento pelo qual passa o país agora está abrindo possibilidade de se fazer um juízo crítico dos despachos judiciais, diante de algumas particularidades demonstrativas de que a justiça pode variar bastante de acordo com a posição das/os denunciadas/os. Conforme o caso, um simples pedido de prorrogação de prazo partindo delas/es é concedido sem maior problema.

 

 Em obra traduzida para o português – “Ética e Direito”, São Paulo: Martins Fontes, 1986 – Chaïm Perelman critica concepções mais correntes de justiça, segundo ele “de caráter inconciliável”. Enumera seis: a cada qual a mesma coisa, a cada qual segundo os seus méritos, a cada qual segundo suas obras, a cada qual segundo suas necessidades, a cada qual segundo sua posição e a cada qual segundo o que a lei lhe atribui.

 

 Para efeito do que está ocorrendo atualmente na Operação Lava Jato, a mídia tem noticiado que os prazos previstos em lei para defesa das/os acusadas/os podem ser flexibilizados, bastando que elas/es peçam prorrogação. Pela lição de Perelman, parece clara aí a justiça ficar dependente da posição, pois uma concessão desse tipo é impensável, quando em causa estiver o direito de um cidadão “comum”:

 

“Na Antiguidade reservava-se um tratamento diferente aos indígenas e aos estrangeiros, aos homens livres e aos escravos […]. Atualmente, trata-se de forma diferente, nas colônias os brancos e os negros; […]. Conhecem-se distinções baseadas nos critérios de raça, de religião, de fortuna, etc., etc. O caráter que serve de critério é de natureza social e, a maior parte do tempo, hereditário, portanto independente da vontade do indivíduo”.

 

  Essa discriminação pode ser considerada legal e justa, então? A resposta pode ser dada, quem sabe, se a “justiça conforme a posição” for comparada com a justiça do tipo “a cada qual segundo suas necessidades”. Tanto a posição quanto as necessidades podem variar de acordo com a condição econômica do sujeito, por exemplo. Será que o prazo estabelecido para se julgar uma ação judicial demarcatória de reserva indígena absolutamente necessária à vida de nativas/os ali sobrevivendo, será prorrogado, em favor de quem as defende e sente necessidade disso, de modo tão fácil como foi acolhido o pedido do presidente da Câmara dos deputados? A resposta a uma pergunta dessas mostra como o próprio Poder Judiciário pode ser vítima da cultura ideológica predominante numa sociedade dividida em classes como a nossa, refletida nos Poderes Públicos. A defesa das/os índias/os certamente seria prejudicada por mais justa e necessária se mostrasse a conveniência de o prazo ser prorrogado.

 

E o despacho de indeferimento até manifestaria um certo escândalo ao referir que isso se impunha “em respeito à lei”, o que nos leva à outra concepção de justiça examinada pelo mesmo Perelman, “a cada qual o que a lei lhe atribui”. No caso, a lei dava ao presidente o prazo de quinze dias para a sua defesa e ele ganhou mais quinze. Para agravar os maus efeitos dessa diferença, ela comprova também a flagrante violação aí atestada do princípio da igualdade de todas/os, pois esse só é reconhecidamente válido e deve ser respeitado quando a igualdade respeita outra diferença, aquela que distribui honras e aquela que distribui ônus, exatamente para que as primeiras sejam contidas no seu poder de abuso. No caso Lava Jato, os ônus inerentes aos prazos de defesa estão sendo descartados em respeito às “honras”(?) das/os denunciadas/os?

 

 Isso não se admite seja qual for a concepção que se faça de justiça  e, se assim acontece com o modo pelo qual não se aplica a lei (!), pior ainda se verifica quando ela continua sendo aplicada mesmo no caso de os seus efeitos já terem provado ser injusta. Considerem-se as palavras finais de cada lei quando comparadas com as palavras iniciais de cada sentença. As palavras finais de todas as leis dizem “revogam-se as disposições em contrário”, num autêntico reconhecimento de que todo o passado regido pelas leis anteriores provocou efeitos injustos, agora pretensamente corrigidos pela nova. As palavras iniciais das sentenças são “vistos etc.”, ou seja, cada juiz/a “viu” algum ato ou fato, previsto ou não em lei, e mandou se tomar determinada providência para, igualmente, “corrigi-los”. Mas viu o que? A crueza dos fatos sob julgamento ou as versões sobre a prova deles produzida? Essa pergunta assombra o mundo do direito desde sempre, pois nem a lei, abstrata e geral como é, tem a capacidade de impedir todos os efeitos que a cultura gerada pelas revogadas continuem se fazendo valer, e nem a visão do/a juiz/a consegue discernir sempre o que presta e o que não presta numa prova a ele exibida. O papel se encarrega de mediar os fatos, quase sempre de modo muito opaco e muitas vezes até infiel.

 

 A Operação Lava Jato oportuniza, entre muitas outras coisas, provar-se o quanto é indispensável ao Poder Público, Judiciário inclusive, a humildade de se questionar sobre os princípios ético-políticos das suas funções. Será pedir demais um mínimo de cuidado com o tratamento desigual que se impõe às pessoas, como o testemunhado pela prorrogação  do prazo de defesa do presidente da Câmara? Não será hora de se acrescentar ao princípio constitucional da moralidade o de esse Poder fazer-se mais próximo do povo de quem é servo, reconhecendo, por exemplo, o pluralismo jurídico nele presente, essa nova forma de elaboração das leis, de tratamento da terra e do meio ambiente, de ampliação da democracia participativa, multinacional, multicultural, multiétnica? Tanto o novo constitucionalismo latino-americano presente nas Constituições da Bolivia, do Equador e da Venezuela, quanto essa ecologia política integral, proposta pelo Papa na encíclica Laudato Si, provam ser possível a pátria grande da America Latina livrar-se das raízes colonialistas do direito vindo do Velho Mundo que ainda engessam juridicamente as nossas leis numa cultura alienígena estranha à nossa.

 

 A justiça legal, a judiciária e, principalmente, a social, não prosseguiriam submetidas aos vícios inaceitáveis próprios de um tratamento discriminatório como aquele que foi oferecido ao Presidente da Câmara dos Deputados pelo Supremo Tribunal Federal. Ele pode parecer exceção mas não é. Mais do que a prorrogação de um prazo, ele testemunha a prorrogação do reconhecimento de cidadania de quem não se encontra naquela posição e nenhuma “posição” justifica desigualdades desse porte.

 

outubro 20, 2015

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https://www.alainet.org/pt/articulo/173157
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