Tirar lições da crise e construir o novo
- Opinión
Parece mais atual que nunca a necessidade de refundar a esquerda, para refundar o Brasil. Cada passo precisa, neste momento, acumular para algo maior, que supere nossas contradições e as construções que até agora realizamos.
A conjugação de crise econômica, política e social, facilmente percebida por qualquer cidadão mais atento, denuncia uma crise mais séria e mais profunda, uma crise das esquerdas.
Aprisionada à lógica eleitoral, a esquerda, principalmente a partidária, viu seu horizonte se reduzir ao curto prazo de dois anos, entre um pleito e outro. Produziu assim uma crise de prática política, desvalorizou o trabalho de base, a formação política, a construção de força social e a disputa de ideias na sociedade.
Levou ainda a uma crise de valores, com uma militância que, pouco a pouco, perdeu sua referência no humanismo e no socialismo. Isso acabou por gerar uma profunda crise de projeto de sociedade e de poder, negligenciando as profundas deformações que a busca exclusiva pela ocupação de cargos na institucionalidade provocava na organização e na militância.
Impossível neste momento fazer o debate de conjuntura e pensar a agenda de lutas da próxima semana, mês ou semestre, sem retomarmos um debate estratégico. Cada passo precisa, neste momento, acumular para algo maior, que supere nossas contradições e as construções que até agora realizamos. Parece mais atual que nunca a necessidade de refundar a esquerda, para refundar o Brasil.
Como é comum nos momentos de crise na história do país, nossas elites sempre encontram uma saída conservadora. É o que assistimos nesse momento.
Teríamos outras saídas possíveis. Uma delas seria que as forças populares forçassem o governo à esquerda. O que exigiria romper a lógica da conciliação que perdura desde 2003. Não há quem acredite que o governo faça essa inflexão. Seguiremos buscando esse caminho, mas é bom não nos iludirmos, ele é o mais improvável, quase impossível (são muitos os artigos de intelectuais da esquerda que já o admitem).
Um segundo cenário seria a direita golpista, tal qual fez no Paraguai, em Honduras e na Venezuela, já no século XXI, conseguir interromper o mandato presidencial. Segue sendo um cenário possível, mas não é o desejado pela nossa burguesia interna, como demonstram as notas da FIRJAN, FIESP, das confederações da indústria e do transporte, os editoriais da Globo e da Folha de São Paulo, as declarações do presidente do Banco Itaú, e até editorial do Financial Times.
Se podem forçar o governo a assumir o seu programa, para que a interrupção democrática, que traria mais uma crise, a crise institucional, e colocaria em risco os lucros da burguesia?
O terceiro cenário é o mais terrível, e o mais provável. Já o estamos assistindo. Tal qual ocorreu em vários momentos de nossa história, a saída é conservadora e pesa sobre os trabalhadores. Já vinha com a composição conservadora dos ministérios, com o ajuste fiscal e com as medidas conservadoras do Congresso Nacional. Agora novos cortes.
O governo faz opção pelo modelo neoliberal. A Agenda Brasil, apresentada pelo presidente do Senado e pelo Ministro da Fazenda de Dilma, Joaquim Levy, é expressão quase acabada dela. Digo quase, porque ainda tem coisa pior por vir.
Dilma fica, não cai, mas governa com a agenda da direita. Muitos indícios, do comportamento da base aliada no Congresso Nacional, ao novo alinhamento da mídia empresarial, demonstram que já houve o pacto. O governo está refém. Teremos nós coragem de aceitar e tirar as devidas consequências nesse momento de reorganização da esquerda?
O momento é da maior gravidade. As condições de vida do povo pioram visivelmente. As medidas aumentam a recessão. As chances da crise social desaguar em novo levante de massas, como assistimos em junho de 2013, são reais.
A direita não perde tempo e busca a todo momento dialogar com essas massas. Possuem melhores e mais poderosos instrumentos para fazer essa comunicação. E nós, o que construímos ao longo dos últimos 30 anos? Quantos jornais diários possuímos, quantas TV´s, editoras, produtoras de cinema, quantos transmissoras de rádio?
Enfrentamos uma grande ofensiva imperialista que ameaça especialmente os governos progressistas da América Latina. Buscam restaurar a agenda neoliberal financiando a oposição e fazendo o uso dos meios de comunicação, como vemos no Brasil, no Equador e na Venezuela, neste momento.
No Brasil, o interesse pela Petrobras e o pré-sal são dos mais vorazes. Em resposta, o governo anuncia um plano de desinvestimento (privatização). Ameaçam assim nossa possibilidade de desenvolvimento soberano.
As recentes manifestações unitárias que fomos capazes de construir foram de grande envergadura, e demonstraram capacidade de luta. Mas é preciso reconhecer que ainda mobilizamos a nós mesmos.
Nascidas no início do último período de ascenso das lutas sociais, nossas organizações encontram grande dificuldade de dialogar e mobilizar suas bases. O povão segue apenas assistindo atônito uma crise que não sabe de onde veio.
A política econômica neodesenvolvimentista dos últimos anos recompôs a classe trabalhadora, melhorando sua capacidade de luta, como demonstra o aumento do número de greves nesse período.
Essa geração que entrou no mundo do trabalho no último período se encontra órfã de referências. É essa ampla parcela da sociedade que está em disputa, podendo ser canalizada para o projeto da direita ou da esquerda. Eis o nosso desafio.
Não os disputaremos se não formos inventivos e ousarmos criar novas formas de diálogo e organização. Não os disputaremos se não apresentarmos claramente uma perspectiva de futuro, e darmos contornos claros ao nosso projeto. Enfim, não os ganharemos se tivermos medo de nos apresentarmos claramente como uma alternativa à esquerda.
A tarefa parece simples, mas não é, pois exige romper com uma tática que perdurou ao longo das últimas décadas. Ao não apostarmos numa clara demarcação à esquerda de nosso projeto, ao não politizarmos os ganhos sociais obtidos, ao ficarmos contidos pela política de conciliação de classes, não construímos base social mobilizável e consciente que permita o aprofundamento das mudanças em nosso país.
Esses parecem ter sido nossos maiores limites; do contrário, o que explica que nesse momento, após mais de 12 anos de governos Lula e Dilma, não sejamos capazes de alterar a correlação de forças a nosso favor?
É preciso construir um novo bloco histórico, político e social, capaz de apontar para o novo e se apresentar como alternativa. Essa construção não é simples, exige paciência. O novo não nasce do nada, mas sim a partir do que já temos construído. É preciso muita dedicação e trabalho, exigirá ainda mais dos nossos dirigentes sociais.
Mais do que nunca é o momento de apostar na disputa ideológica da sociedade e construir veículos unitários de comunicação que dialoguem com o povo, como é a experiência dos jornais Brasil de Fato estaduais.
Apostar na articulação dos movimentos sociais, como o Quem Luta Educa, e na construção de uma frente política, como a Frente Brasil Popular.
É preciso nos unificarmos em torno de uma bandeira política que nos permita romper o cerco da direita e canalizar nossas lutas econômicas e corporativas que seguiremos fazendo.
Pelo muito que temos debatido é possível afirmar que a luta por uma Assembleia Constituinte para realização da reforma do sistema político é esta bandeira com potencial integrador e politizador. Como foram as lutas pela Anistia e pelas Diretas Já, no início dos anos 80, que, guardadas as enormes diferenças, possuem alguma semelhança com o período que vivemos, de possível retomada das lutas sociais.
Toda crise é oportunidade de superação. O que não podemos é titubear no caminho a seguir. É preciso afirmar a necessidade de um projeto popular para o Brasil, tirar lições da crise e construir o novo sem medo de dizermos a que viemos.
- Frederico Santana Rick é sociólogo, militante das pastorais sociais, da articulação de movimentos sociais Quem Luta Educa e da Consulta Popular.
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