“A agroecologia tem que superar a fase romântica e pensar grande”

07/09/2015
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Foto: Caroline Ferraz/Sul21 Emerson Giacomelli
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Entre os anos 1999 e 2000, assentados da reforma agrária começaram, na Região Metropolitana de Porto Alegre, uma experiência com hortas orgânicas que foi o ponto de partida para o desenvolvimento de um processo de produção agroecológica na região. Passados mais de 15 anos, esse processo cresceu e sua produção começa a disputar o mercado de grandes centros consumidores. O carro-chefe desse modelo hoje é o arroz orgânico produzido nos assentamentos do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Em entrevista ao Sul21, Emerson Giacomelli, do assentamento Capela, de Nova Santa Rita, fala sobre essa experiência, seus resultados e suas ambições para o futuro.

 

Membro da direção do MST no Rio Grande do Sul, Giacomelli integra também a coordenação do grupo gestor do arroz agroecológico na Região Metropolitana de Porto Alegre. “Hoje, são mais de 500 famílias envolvidas nesta atividade. Este ano nós vamos plantar mais de cinco mil e quinhentos hectares de arroz orgânico certificado em 16 assentamentos aqui no Estado. A produção estimada é de aproximadamente 400 mil sacas de arroz orgânico”, assinala. Segundo ele, a produção agroecológica está abandonando a fase romântica e quer pensar grande: “Ainda é muito comum a ideia de que o produto orgânico e agroecológico só pode ser produzido em pequena escala e só pode ser vendido em feiras e mercados locais. Nós estamos mostrando que não é assim. Com o arroz orgânico, estamos mostrando que é possível ter produção agroecológica em escala e com qualidade”.

 

Sul21: Quando e como nasceu o projeto do arroz orgânico e qual é o tamanho dele hoje?

 

Emerson Giacomelli: A agroecologia não é uma coisa nova na história do movimento. Ao longo da história, fomos aprendendo que a conquista da terra é apenas o primeiro passo. Quando a gente é assentado, começa o desafio de implementar tudo o que a gente sonhava que é cultivar a terra, produzir alimentos saudáveis e cuidar do meio ambiente. No início, vivemos uma contradição nos assentamentos. Nós os conquistamos, mas não conseguíamos fazer a implementação daquilo que a gente achava que era o correto. Então, iniciamos um trabalho com as hortas orgânicas, que foi pioneiro nos assentamentos aqui no Estado. Esse trabalho com as hortas foi muito importante porque conseguimos aprender a técnica e, junto com isso, se desenvolveu o processo de comercialização junto às feiras orgânicas de Porto Alegre. Tivemos que, não só produzir, mas também encontrar ferramentas de comercialização. Hoje, temos inúmeras famílias que produzem as hortas orgânicas e fazem feiras em muitas cidades aqui no Estado e no país.

 

A partir dessa experiência das hortas orgânicas, iniciou-se uma pequena experiência com arroz orgânico entre 1999 e 2000. Nós nos perguntamos na época: se é possível produzir hortas orgânicos por que não é possível produzir outros cultivos orgânicos também? Foi aí que iniciamos a experiência com o arroz orgânico que, no início, era um pouco tímida, mas foi crescendo e ganhou uma dimensão extremamente importante. Hoje, são mais de 500 famílias envolvidas nesta atividade. Este ano nós vamos plantar mais de cinco mil e quinhentos hectares de arroz orgânico certificado em 16 assentamentos aqui no Estado. A produção estimada é de aproximadamente 400 mil sacas de arroz orgânico.

 

Essa experiência nos trouxe outras lições. Aprendemos, por exemplo, que é possível ter uma produção agroecológica em grande escala e que é possível disputar preço com produtos orgânicos. Ainda é muito comum a ideia de que o produto orgânico e agroecológico só pode ser produzido em pequena escala e só pode ser vendido em feiras e mercados locais. Nós estamos mostrando que não é assim. Com o arroz orgânico, estamos mostrando que é possível ter produção agroecológica em escala e com qualidade. Também temos uma experiência muito interessante, que é a da Bionatur, com a produção de sementes orgânicas, um trabalho pioneiro em nível nacional.

 

Sul21: Onde está localizado esse projeto?

 

Giacomelli: Em Candiota. Agora estamos iniciando uma experiência com feijão e soja. Fizemos uma pequena experiência com soja orgânica no ano passado que vamos continuar este ano e vamos iniciar outra com o feijão. Estamos projetando também entrar na área do leite orgânico. Além disso, estamos trabalhando muito com formação nos assentamentos com as nossas equipes técnicas. A agroecologia não é apenas o produto em si, não é apenas você conhecer a técnica. A técnica faz parte do processo e é extremamente importante você ter conhecimento do manejo para ter um bom produto. Mas a produção agroecológica tem que partir de um princípio de vida, de uma visão de sociedade mais igualitária, mais justa, com mais oportunidade para todos. Os agricultores que produzem de forma ecológica precisam ter renda, é claro, mas, acima de tudo, eles têm essa visão de sociedade. Isso é muito importante para não descasar a formação técnica da formação política e ideológica de nossos agricultores, algo que trabalhamos muito em nossos assentamentos.

 

Sul21: Em que fase está esse projeto de cultivo de soja orgânica e não transgênica?

 

Giacomelli: Estamos em um processo de discussão de manejo. Cada atividade tem técnicas diferentes. A horta, por exemplo, é uma produção muito rápida que tem uma comercialização muito direta. Já no caso do arroz, o nosso manejo parte do princípio do uso da água. No caso da soja, estamos discutindo, pois ainda se trata de uma experiência. Estamos debatendo como produzir soja em escala sem castigar a mão de obra familiar no seu manejo, na sua limpeza e no seu cuidado.

 

 Sul21: É possível produzir soja em grande escala hoje sem uso de agrotóxicos? Há alguém fazendo isso hoje no mundo?

 

Giacomelli: Esse é o nosso grande desafio. Não sei se há alguém que já está fazendo isso. Começamos essa experiência em uma pequena área, em Livramento. Cometemos alguns erros e alguns acertos, o que é normal. Existe um mercado enorme para a soja orgânica e acreditamos que esse mercado pode despertar em muitos agricultores a vontade de experimentar essa produção. Nós temos que oferecer as condições, o acompanhamento e a garantia da comercialização.

 

Esse foi outro aprendizado importante que tivemos. Muito se fala que os camponeses não querem produzir um certo tipo de atividade ou de produto. No momento em que você garante a comercialização da sua produção, os camponeses se organizam para produzir. Por isso que defendemos junto ao governo estadual e ao governo federal a criação de políticas de comercialização, de garantias de preço, de apoio às feiras e às agroindústrias. Pela nossa experiência, no momento em que se garante a comercialização você viabiliza a produção.

 

Sul21: O caso do arroz orgânico é um exemplo disso, não? Onde esse arroz está sendo comercializado?

 

 Giacomelli: O nosso mercado é o chamado mercado institucional. Entramos muito forte na merenda escolar, graças a convênios com o governo do Estado e com prefeituras. Temos ainda um mercado bastante grande em São Paulo, com convênios com algumas prefeituras, e agora estamos começando a entrar no mercado convencional, o que exige uma logística especial e um suporte administrativo que estamos desenvolvendo. Mas a nossa prioridade é o mercado solidário, é o mercado da Conab (Companhia Nacional de Abastecimento), da merenda escolar, das feiras, das lojas de produtos integrais. Esse é o mercado que está absorvendo hoje o arroz orgânico.

 

Sul21: Todos esses projetos, como você mencionou, envolvem um aprendizado, uma aquisição de conhecimento e de tecnologia. Quais são os instrumentos e ferramentas que os assentamentos dispõem para produzir conhecimento e tecnologia? Como é que esse processo se dá no cotidiano? Vocês contam com o apoio de alguma universidade ou instituição de pesquisa?

 

Giacomelli: No começo tivemos muitas dificuldades. Quando você fala de produção orgânica, na verdade, não está falando somente de produção. Não é só a produção que tem que ser certificada. A unidade de beneficiamento também que ser certificada. No começo tivemos enormes dificuldades para encontrar ajuda e soluções sobre questões de manejo, de sementes, de pós-colheita, de secagem e armazenagem. Era uma coisa nova para nós. Usamos muito a metodologia da troca de experiências. Até hoje fazemos isso. Nós promovemos encontros e os agricultores fazem uma troca de experiências entre eles, apresentando o que está dando certo e como está sendo feito, e também o que não está dando certo. Isso tem gerado um acúmulo de conhecimento muito grande.

 

Além disso, temos buscado muito as parcerias com universidades, com a Embrapa, com o Irga (Instituto Riograndense do Arroz), a Emater, a Fepagro e outras instituições que estão nos ajudando em muitas questões, desde a análise de solo, o desenvolvimento de sementes e outros temas. Estamos firmando agora um convênio de três anos com a UFRGS para tratar de temas ligados ao pós-colheita. Essas parcerias já estão consolidadas, independente de governo. Hoje nós produzimos a nossa própria semente, o que é um grande desafio para nós. Temos muita clareza sobre a importância da pesquisa e da produção do conhecimento. Como se faz pesquisa para o agronegócio, tem que se fazer pesquisa também para a agroecologia.

 

 Sul21: Como é a relação, se é que ela existe, com os produtores de arroz que usam o método convencional, não-orgânico? Alguns desses produtores e as entidades que os representam já demonstraram algum interesse na produção orgânica de arroz? Aconteceu alguma conversa neste sentido?

 

Giacomelli: Inicialmente, a aposta é sempre que não vai dar certo, que é uma loucura, que não vai produzir e que os agricultores que apostarem nisso vão quebrar. A primeira reação do agricultor que produz de forma convencional é essa. No momento em que a gente começa a discussão de manejo, que mostra que temos as sementes e insumos, e que tem viabilidade econômica, eles começam a ver a proposta com outros olhos. Nós temos hoje vários agricultores que produziam de forma convencional e que migraram para o orgânico. Isso, é claro, envolve todo um trabalho. A gente nunca chega e diz ‘para de produzir de modo convencional e começa a produzir no modelo orgânico’, mas sim, ‘você topa produzir um ou dois hectares para fazer a experiência?’. É preciso ganhar primeiro o coração e a cabeça do produtor, para depois transformar isso em atitude e ação.

 

Um fato importante que contribui para esse convencimento é que os nossos agricultores estão ano após ano melhorando a sua estrutura produtiva, social, a sua qualidade de vida, não têm dívidas e começam a gerar renda. Essa situação faz com que outros agricultores olhem para eles e pensem: como é que estou cada vez mais doente, cada vez mais quebrado e falido, e aqui do meu lado tem um cara que produz numa área menor que a minha troca o carro, reforma a casa, compra um trator…? A geração de renda é muito importante. Acho que esse foi o nosso grande acerto no caso do arroz. Nós temos clareza que precisamos produzir no modelo agroecológico, com escala, mas que precisamos também gerar renda. Nenhum camponês ou camponesa, por mais consciência ecológica que tenha, vai ficar numa atividade se não tiver renda. Para que a produção orgânica dê certo, ela precisa gerar trabalho e renda para o agricultor.

 

Sul21: Quais são os resultados obtidos até aqui em termos de produção de arroz orgânico no Rio Grande do Sul?

 

Giacomelli: Esse aprendizado que nos levou a olhar para toda a cadeia produtiva é que faz com que cresçamos, em média, 20% ao ano, em número de famílias, 22% em produtividade e em torno de 18% área. É claro que não vamos conseguir manter esse crescimento por muitos anos, mas são números muito positivos. Queremos chegar este ano a uma produção de 100 sacas de arroz, limpo e seco, por hectare. No grupo gestor do arroz, outro acerto que tivemos foi desenvolver um manejo técnico. Hoje, nós temos um manejo técnico para oferecer ao agricultor que quiser produzir arroz orgânico. Ele expressa o aprendizado técnico que acumulamos nos últimos doze anos, aprendendo ano após ano. Esse manejo técnico tem propiciado o aumento de produtividade e, principalmente, a qualidade. Quando você tem indústria, não pode pensar apenas em quantidade, mas precisa pensar também em qualidade, em agregar valor. Hoje, o preço que conseguimos pelo nosso arroz tem a ver com essa qualidade. Partimos de uma média geral e, conforme aumenta a qualidade, aumenta também o seu valor. A indústria é nossa. Se entregarmos um produto de péssima qualidade, ele terá saído de uma indústria nossa. Nós não transferimos responsabilidade para os outros. Somos responsáveis por toda a cadeia de produção, desde a produção da semente até a comercialização.

 

Nesta caminhada, assim que superamos um desafio, temos outro a ser enfrentado. Hoje, o nosso novo desafio é com o pós-colheita, é como você armazena o produto, como guarda um produto orgânico durante um ano? Tomemos o exemplo deste ano: um inverno com pouco frio. Esse clima é ideal para os insetos atacarem o grão. É preciso ter pesquisa, técnica, estrutura e equipamento para manter a qualidade. Como é que você faz para um produto beneficiado ter mais tempo de prateleira? Não podemos mandar uma carga de arroz para São Paulo e achar que depois de uma semana ela vai retornar. É diferente quando você produz e transfere para terceiros essa tarefa. Não é o nosso caso. Nós produzimos, colhemos, secamos, armazenamos, beneficiamos e comercializamos. Dominamos todas as etapas. Todo o arroz orgânico que produzimos fica em nossas estruturas próprias. Levamos anos para chegar aí. Ainda não temos toda a estrutura de beneficiamento, alguma coisa a gente ainda terceiriza, mas vamos dominar essa etapa também. Nós temos duas agroindústrias, mas elas não dão conta, pois a nossa produção de campo cresceu mais que a nossa estrutura de beneficiamento.

 

Sul21: Há uma demanda crescente nas cidades por alimentos orgânicos, produzidos sem o uso de agrotóxicos? Como isso está se refletindo na comercialização?

 

Giacomelli: No caso das hortas, tem uma coisa muito interessante acontecendo. Estamos abrindo inúmeras feiras em municípios, como Canoas, Viamão, Esteio, Nova Santa Rita, Portão, Capela de Santana, entre outros. Por meio de convênios com prefeituras, estamos abrindo essas novas feiras, criando novos espaços de comercialização onde os produtores podem fazer a venda direta à população. Isso é muito importante. O agricultor que começa a participar de uma feira não para mais. Ele começa a ter uma relação direta com o público consumidor e recebe sugestões e comentários diretamente de seus clientes. Além disso, ele começa a ter uma renda maior. Nós somos privilegiados aqui na Região Metropolitana por estarmos próximos de um grande mercado consumidor.

 

Sul21: O custo de produção do arroz orgânico é maior que o do arroz convencional?

 

Giacomelli: É menor. Nós ainda temos uma produção um pouco menor, mas estamos melhorando ano após ano. No começo, havia aquela ideia de que, porque era agroecológico e orgânico, dava para fazer de qualquer jeito. Isso mudou. Hoje, justamente por trabalharmos com uma produção nos moldes agroecológicos, é que precisamos caprichar e fazer as coisas bem feitas. Por isso estamos investindo muito em formação. No momento em que o agricultor tem formação, conhecimento, estrutura e condições para produzir, ele é uma pessoa autônoma. A COTAP (Cooperativa dos Trabalhadores Assentados da Região de Porto Alegre) faz o grosso do trabalho da infraestrutura, instalando canais de irrigação, levantes de água e outras obras mais pesadas. Já o agricultor tem a infraestrutura produtiva do lote. A cooperativa também é responsável por programas de apoio, como o programa de certificação, de formação, de saúde e segurança no trabalho.

 

Nós pensamos o todo. Creio que esse é um grande diferencial da produção orgânica em relação à produção convencional. Nosso agricultor recebe muitos tipos de formação, desde a formação sobre como pode melhorar a sua produção até a de como pode evitar acidentes ou prevenir doenças, como manejar uma máquina melhor, entre outros temas. Nós temos um planejamento anual e estamos partindo agora para fazer um planejamento que nos permita pensar de três a cinco anos. Aprender a planejar foi um grande desafio para nós. Achávamos que planejamento era para os outros, que era algo difícil, dava muito trabalho e depois ninguém cumpria. Hoje, temos um planejamento que define tarefas para os agricultores, para os técnicos, para a cooperativa. Esse planejamento tem prazos, metas e cobranças. Se alguém não fizer a sua parte, em um determinado momento vai dar problema. Nós temos um setor, por exemplo, que cuida de todo o processo de certificação. Se esse setor não cumprir com o planejamento estabelecido, vamos ficar sem a certificação. O mesmo vale para os companheiros que trabalham no setor de sementes. Se o agricultor não planejar e não executar esse planejamento, não vai ter renda, não vai pagar as contas e isso ninguém quer. Recentemente, sobre esse tema, aprendemos uma lição. Não tem mais como planejar apenas um ano. Estamos trabalhando com um planejamento de três a cinco anos. Neste período, a cada ano que passa, a gente faz só uma revisão do que foi planejado.

 

Sul21: Como funciona o trabalho de assistência técnica em todo esse processo de produção orgânica?

 

Giacomelli: Hoje, as famílias que querem produzir orgânico na Região Metropolitana contam com mecanismos de apoio criados pela cooperativa. Isso é algo muito importante. Na produção convencional, há pessoas se relacionando o tempo todo com o produtor, oferecendo adubo, veneno, ureia e assim por diante. Esses técnicos estão lá diariamente. Nós precisamos fazer essa disputa com os nossos agricultores também. Temos que fornecer um acompanhamento permanente. A agroecologia não pode ser uma coisa dos pobres e coitados, algo difícil. Pelo contrário, tem que ser uma produção estruturada, desenvolvida, com escala, com agricultores e técnicos formados, infraestrutura e apoio público. Essa é a agroecologia que nós queremos. Se não, como é que vamos atender a população. Não adiante só dizer que nós somos contra o agronegócio. Nós precisamos apresentar uma alternativa à população. Precisamos pensar grande, olhar o conjunto da sociedade e os grandes centros consumidores. Se quisermos olhar a agroecologia como um modelo de disputa de sociedade, ela precisa ter essa visão. A agroecologia não pode ter o olhar só do resultado econômico, mas precisa levar em conta que o que está em jogo é uma disputa de projetos de sociedade.

 

http://www.sul21.com.br/jornal/a-agroecologia-tem-que-superar-a-fase-romantica-e-pensar-grande/

https://www.alainet.org/pt/articulo/172236
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