Propriedade intelectual e a divisão internacional do progresso técnico
- Opinión
Qualquer esforço de industrialização de países em desenvolvimento passa por adquirir conhecimentos e tecnologias desenvolvidos fora de suas fronteiras. Assim, eles conseguem se modernizar e se industrializar, mas sem romper com a lógica do subdesenvolvimento e da dependência
Em diversos setores industriais, as firmas têm diferentes estratégias competitivas que seguem incessante busca pela construção de aptidões para geração de processos inovativos.
Diferentes estratégias são possíveis. A firma pode investir em atividades de pesquisa e desenvolvimento (P&D) para desenvolver novos produtos e/ou processos de produção.
Uma segunda estratégia é a aquisição de conhecimentos e tecnologias produzidos pelos esforços de P&D de outras instituições como universidades e/ou institutos de pesquisa, público ou privado.
Uma terceira possibilidade é a transferência de conhecimento e tecnologia desenvolvidos em outras firmas, sejam elas nacionais ou internacionais, por meio de licenciamentos ou mediante a compra de tecnologia acabada.
Analisando apenas o primeiro caso (licenciamento), a firma compra ou faz a locação da autorização legal do uso do produto. A autorização legal é fornecida por quem tem o direito de propriedade sobre a tecnologia. Esse direito pode ser sobre distintas formas de produto, por exemplo: produto tecnológico, um processo tecnológico, um software.
Nesse caso, o conhecimento intelectual torna-se para as firmas um ativo intangível capaz de gerar renda por meio de licenciamentos, que incluem patentes, marcas registradas, direitos autorais, processos industriais e projetos, incluindo segredos comerciais e franquias.
Obviamente, há diferenças relevantes entre as firmas e entre os setores. No entanto, uma análise agregada nos dá uma visão global interessante. Tomemos, por exemplo, o caso das patentes, as quais são o objeto mais frequente de uma licença.
Em termos mundiais, os pedidos de patentes saltaram de 243 mil em 1990 para 667 mil em 2010 – dados da World Intellectual Property Organization (WIPO). Esse crescimento representa um aumento de 174% dos pedidos de patentes em duas décadas. O aumento dos pedidos de patentes está diretamente ligado ao aumento do fluxo remuneratório desse ativo.
Fluxo remuneratório das propriedades intelectuais
Em 2005, de acordo com dados do Banco Mundial, os países em desenvolvimento desembolsaram US$ 19,08 bilhões para utilizar propriedade intelectual (não só patentes, mas também marcas, direitos autorais etc.). Esses países, também detentores de direitos de propriedade intelectual, receberam US$ 2,22 bi como renda pela posse desses direitos, um déficit próximo a US$16,85 bi.
Nos anos seguintes, até 2012, esse conjunto de países manteve o déficit na ‘balança de propriedade intelectual’ e chegou nesse ano a um déficit de US$ 40,52 bi.
Para os países desenvolvidos, os dispêndios com propriedade intelectual somaram US$ 124,20 bi, valor superior ao despendido pelo grupo dos países em desenvolvimento no mesmo ano. No entanto, aqueles receberam US$ 139,71 bi, o que representa mais de 97% de todo recebimento mundial nessa categoria.
Os números apresentados acima servem para ilustrar a dinâmica mundial em relação à produção de novos conhecimentos técnicos e ao comportamento das nações em termos de uso de propriedade intelectual. O centro dinamizador de novos conhecimentos encontra-se localizado no grupo de países desenvolvidos, como já havia sido apresentado por François Chesnais.
Ao observar a produção e desenvolvimento de tecnologia, atividades que capturam maior parcela do valor agregado e garantem às firmas maiores fatias de mercado, observa-se um abismo entre as capacidades tecnológicas entre países desenvolvidos e em desenvolvimento.
O caso americano e o caso brasileiro
Tomemos o caso americano: a análise das patentes concedidas nos EUA para residentes estrangeiros nos ajuda a compreender a maturidade do sistema nacional de inovação de um país demandante de patentes num dos mercados tecnologicamente mais dinâmicos do mundo. Isso nos dá uma ideia do nível de capacidade tecnológica do país depositante e do seu grau de integração com a economia internacional.
De acordo com dados do escritório de propriedade intelectual americano (United States Patent and Trademark Office – USPTO), em 2012 foram concedidas 253 mil patentes, das quais 144 mil a estrangeiros (56%).
Dessas, 38% foram concedidas a residentes japoneses, 10% aos alemães, 4% aos ingleses e 4% aos franceses, ou seja, mais da metade concedida só a quatro países desenvolvidos. Levando em conta outros países como Canadá, Suíça, Itália, Suécia, Holanda, Bélgica, Finlândia, Dinamarca e Coreia do Sul, esse percentual sobe para 79%. Destaca-se que a produção de novos conhecimentos tecnológicos de fronteira está fortemente concentrada em poucos países.
Já o escritório de propriedade intelectual brasileiro (Instituto Nacional de Propriedade Industrial – INPI) concedeu 2,8 mil patentes, das quais 87% a estrangeiros. Dentre os estrangeiros, 32% norte-americanos, 16% alemães, 8% japoneses e 7% franceses.
Para dados de propriedade intelectual como um todo, os EUA desembolsaram, em 2012, US$ 39,50 bi e receberam US$ 125,49 bi pelo conhecimento gerado nos EUA e protegido no mercado internacional. Já o Brasil, no mesmo ano, desembolsou US$ 3,66 bi para utilizar do conhecimento estrangeiro e recebeu US$ 0,51 bi pelo conhecimento produzido domesticamente e utilizado no exterior.
Os dados apresentados são preocupantes: nos EUA há uma proteção de novas tecnologias (medida pelo volume de patentes) 90 vezes superior ao brasileiro e a maioria dos pedidos de proteção patentária no Brasil é de não residentes.
Privatização de conhecimentos de fronteira
Configura-se uma dinâmica, conforme destaca a economista italiana Mariana Mazzucatto, segundo a qual nos países desenvolvidos são produzidos ou financiados conhecimentos de fronteira. Tais conhecimentos, gerados com forte fomento público, são privatizados por empresas mediante a utilização de mecanismos de proteção intelectual. Esses mecanismos servem como barreiras aos países em desenvolvimento, fortalecidos por estritas regras de organismos internacionais (como a Organização Mundial de Comércio – OMC).
Qualquer esforço de industrialização de países em desenvolvimento passa por adquirir conhecimentos e tecnologias desenvolvidos fora de suas fronteiras com o objetivo de modernizar sua indústria. O que garante, portanto, elevadas remunerações aos países desenvolvidos por aqueles com maiores restrições de recursos.
É um mecanismo que dificulta estratégias de industrialização e estimula o avanço da especialização regressiva na estrutura produtiva de países em desenvolvimento.
O país importador de tecnologia não está envolvido diretamente na maior parte dos benefícios auferidos pelos inovadores dos países desenvolvedores de tal tecnologia. O país importador é apenas o locus de realização de um processo de inovação cuja gestação lhe é inteiramente exógena.
Portanto, podemos dizer que parte significativa das externalidades e dos transbordamentos gerados pelo processo inovativo não é apropriada pelo país importador. Assim, um país em desenvolvimento consegue se modernizar e se industrializar, porém não rompe com a lógica do subdesenvolvimento e da dependência, conforme nos ensinou o mestre Celso Furtado.
Conclui-se que é possível observar grandes assimetrias na geração e difusão de tecnologia entre países desenvolvidos e em desenvolvimento, sem que haja mecanismos de convergência.
Os sistemas de inovação imaturos, como o brasileiro, precisam ser encarados como anomalias e não como uma condição natural de seu atraso relativo. Assim, para as economias que almejam desenvolver sua estrutura produtiva, gerando renda e benefícios para a sociedade, faz-se necessário uma definição clara de políticas tecnológicas e industriais com forte apoio do Estado. Essa é uma condição necessária, ainda que insuficiente, para formar um sistema nacional de inovação maduro que gere desenvolvimento e auxilie na superação da condição periférica.
* Os pensamentos e ideias expressos neste trabalho não refletem necessariamente aqueles do INT/MCTI. Os eventuais erros são de inteira responsabilidade dos autores.
- Tulio Chiarini é analista em C&T lotado na Divisão de Estratégia do Instituto Nacional de Tecnologia do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação. Economista pela UFMG, mestre em economia pela UFRGS, mestre em administração da inovação pela Scuola Superiore Sant’Anna, doutor em teoria econômica pela Unicamp.
- Danilo Sartorello Spinola é doutorando em Economia no Maastricht Economic and Social Research Institute on Innovation and Technology (UNU-MERIT) e pesquisador colaborador no Núcleo de Economia Industrial e da Tecnologia (NEIT) da Unicamp. Economista e sociólogo pela Unicamp, mestre em economia pela Unicamp, foi consultor na CEPAL-UN.