Das sublevações históricas aos movimentos sociais contemporâneos organizados
- Opinión
A relação cidadão X estado varia de acordo com as tradições culturais, os regimes políticos e as etapas históricas pelas quais passa a humanidade. A intermediação dos governos, ou assemelhados, seja de que forma for, procura estabelecer protocolos de direitos e deveres entre uns e outros, além das instâncias política, jurídica e policial que exercem seus poderes estabelecidos.
Quando a relação flui normalmente sem maiores atritos humanitários, uma paz social perdura enquanto as coisas se mantêm em torno da ordem política e econômica em vigor. Ao contrário de momentos de ruptura quando se esgotam os limites de sustentação do equilíbrio então obtido.
Revoltas, sublevações, revoluções, guerras, entremeadas por execuções e prisões, e toda a gama de consequências trágicas, têm acompanhado esses movimentos duradouros ou não de grupos e/ou massas. Historiadores e sociólogos conhecem bem de perto a evolução desses acontecimentos.
Seus efeitos na esfera econômica, por seu turno, são substanciais, seja pela precarização das condições de trabalho e produção, seja pela ausência total de representação e diálogo, quando então a ruptura se torna iminente. De fato, a longo prazo a sociedade costuma viver períodos de equilíbrio estável ou instável à mercê da evolução da economia e da distribuição de seus resultados.
Nos tempos modernos, a entrada na agenda das duas viscerais questões dos direitos humanos e do meio ambiente veio não só ampliar a pauta da relação cidadão X estado, como também permitir que a cidadania possa vir a ser exercida com maior efetividade e substância diante das instituições do estado.
Pelo mundo afora, em muitos países dos mais variados matizes políticos e ideológicos, movimentos que defendem os direitos humanos e o meio ambiente se multiplicam e marcam presença no meio social com suas bandeiras de luta.
Incluo no round internacional da bandeira dos direitos humanos, sem a pretensão de ser exaustivo na enumeração, os movimentos mais volumosos de ocupação de Wall Street, os das praças de Barcelona, e os das ruas da Grécia e Portugal, que bradaram contra o domínio progressivo do capital financeiro e da agenda de austeridade implantada na Zona do Euro, ambos afetando a vida, a saúde e o trabalho dos cidadãos.
No caso brasileiro, os movimentos dos trabalhadores sem terra (MST) e sem teto (MTST) igualmente fazem parte da agenda de direitos humanos e até mesmo de meio ambiente, embora com objetivos específicos e há tempos bem definidos.
Todos eles, guardadas as devidas intenções, proporções e duração, buscam defender seus direitos como cidadãos, assim como de seus semelhantes, e incluir na pauta das políticas de governo e das organizações econômicas suas bandeiras de maior e melhor participação na vida política, cultural, social e econômica.
Tomam também lugar nesses movimentos os sindicatos e associações, os quais, embora tratem de defender os direitos das trabalhadoras e trabalhadores que participam diretamente dos coletivos de atividades e setores econômicos, respondem em igualdade de condições pela defesa dos direitos humanos e do meio ambiente nos locais de trabalho.
A maior amplitude dos movimentos de direitos humanos e meio ambiente, no entanto, dão-lhes eficácia e efetividade maiores mesmo em períodos de contração econômica. Já os sindicatos e associações reduzem seus poderes de pressão política e econômica nessas ocasiões face ao desemprego, a redução dos salários e a precariedade das condições de trabalho.
A dependência do trabalho ao capital nas sociedades capitalistas de produção é fator de permanente antagonismo nas relações contratuais entre ambos. Nos períodos de retração ou recessão econômicas o pêndulo pende mais ao capital, ao contrário dos períodos de recuperação e expansão, quando o trabalho sobe alguns degraus a mais na escala social.
O que não afeta tanto os movimentos de direitos humanos e meio ambiente, pois de origens e razões que ultrapassam as flutuações e ciclos econômicos.
As experiências do MST e do MTST no Brasil são importantes pela perenidade que sustentam e a consistência da luta política, apesar dos períodos de marasmo ou queda da economia, assim como dos momentos de menor representatividade de suas bandeiras entre os partidos políticos.
Merece destaque uma luta política bem próxima à do MST e do MTST, embora com objetivo diferente e condições de operação distintas. O movimento que apareceu recentemente na França, as Zonas a Defender (ZAD), em tradução livre, mais que a defesa dos direitos humanos e meio ambiente, se caracteriza por uma nova forma de resistência ao capital.
Surgiram em várias partes do país mobilizações contra projetos e obras vistos como perigosos para o meio ambiente e a sociedade. Essas ações têm duplo objetivo. De um lado, atuação geográfica e territorial: vão de encontro a projetos polêmicos para impedi-los de se iniciarem; de outro lado, propósito concreto para experimentos pós-capitalistas ou fora do circuito do capital.
Há semelhanças entre o conhecido Green Peace e dos próprios nacionais MST e MTST ao ocuparem terras, instalações ou habitações sem uso para instalarem seus membros e constituírem focos de resistência. Esta, além da luta política, pode se desdobrar, entre outras providências, em acampamentos, construções, cultivos agrícolas, educação formal e política e preservação do meio ambiente.
Mas acima de toda essas ações, esses movimentos em seu conjunto acreditam na prática e no desenvolvimento de concepções, expedientes e procedimentos de colaboração, ajuda mútua, compartilhamento e reciprocidade em lugar da competição, concorrência e acumulação sem freios do capitalismo.
No caso das ZADs, existe ainda o acolhimento de imigrantes em contraponto a onda xenofóbica que toma conta da Europa e tem varrido os sentimentos de humanidade e solidariedade. O uso de moeda comum, própria, por exemplo, é outro acordo comunitário e um sinal verde aberto para experiência de novas formas e relações de convivência econômica e troca de mercadorias.
Todos esses movimentos sociais começam a surgir com mais intensidade e abrangência entre o final do século 20 e o começo do 21, mostrando a força, a energia e a insubordinação civil dos indivíduos diante de sistemas políticos em decadência e arranjos econômicos desiguais, corruptos e impiedosos.
Não é a representação clássica da democracia direta, mas traz dela a necessidade e a urgência de participação de todos nos rumos da sociedade desde a ótica da soberania dos homens sobre as coisas, não ao contrário. Do trabalho individual comum ao trabalho social que serve a todos; não da riqueza pela riqueza, do dinheiro por poder, cargos e funções, enquanto senhor absoluto no mundo moderno da mobilidade e ascensão social e econômica.
- José Carlos Peliano é colaborador da Carta Maior
Créditos da foto: Marcelo Camargo / Agência Brasil
02/06/2015
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