Tratado da ONU sobre “Transnacionais e Direitos Humanos” é discutido em SP
02/12/2014
- Opinión
A ideia de se adotar um código de conduta para as transnacionais é um debate que se arrasta na Organização das Nações Unidas (ONU) desde a década de 1970. Porém, desde junho deste ano, a discussão parece ter ganhado fôlego quando uma resolução do Conselho de Direitos Humanos delegou a um Grupo de Trabalho a tarefa de preparar um “tratado vinculante”, com vistas a impor às empresas obrigações jurídicas internacionais quanto a violações de direitos humanos.
Antiga também é a oposição dos mesmos países de sempre à proposta. Prova disso são os votos pelos quais a resolução, apresentada por iniciativa do Equador e da África do Sul, foi aprovada: 20 votos a favor, 14 contra (entre eles os dos Estados Unidos e da União Europeia) e 13 abstenções (incluída aí, para a surpresa geral, a posição do Brasil).
Nesse sentido, inclusive, passada a votação, Estados Unidos e União Europeia advertiram que não vão cooperar com o Grupo de Trabalho e exortaram outros países a fazerem o mesmo. O argumento de ambos é que os “Princípios Orientadores da ONU sobre Empresas e Direitos Humanos”, adotados em 2011 – frise- -se, de caráter voluntário –, bastam para controlar as práticas de negócios das transnacionais.
Para pensar coletivamente formas de ação conjunta diante dessa disputa e avançar em uma agenda comum, sindicatos, organizações e movimentos sociais participaram, no dia 24 de novembro, em São Paulo, da segunda oficina “Concentração e transnacionalização do capitalismo: impactos no Brasil”, promovida pela Friedrich Ebert Stiftung (FES).
Nela, estiveram presentes, entre outros, a Internacional de Serviços Públicos (ISP), a CUT e a Confederação Sindical dos Trabalhadores das Américas (CSA), representando o movimento sindical; o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) e a Marcha Mundial de Mulheres, pelos movimentos sociais; além da Terra de Direitos, Ibase, Rebrip, Justiça Global, Médicos Sem Fronteira, Conectas, Amigos da Terra Brasil, Homa/UJF, Instituto Equit, Transnational Institute (TNI) e da campanha internacional para Desmantelar o Poder das Grandes Corporações (DCP).
O papel do Brasil
A Secretaria de Direitos Humanos (SDH) esteve representada pela chefe de sua assessoria internacional, Juliana Benedetti. Segundo ela, a abstenção do Brasil na votação do tratado é fruto da ausência de um debate adequado sobre o assunto no país Como não houve consulta a órgãos governamentais que se debruçam sobre o tema de direitos humanos, o Itamaraty, segundo ela, “por não ter instruções”, optou por seguir a sua tradição diplomática – que é a de se abster em casos como esse. Por outro lado, Juliana questionou uma ênfase maior dada ao “tratado vinculante” em detrimento dos chamados “Planos de Ação Nacionais”, cuja produção também é prevista pelo Grupo de Trabalho e que podem ser elaborados voluntariamente pelos Estados. “O debate ainda não está maduro no Brasil por falta de massa crítica”, avaliou Juliana. “A questão é trazê-lo para cá. Afinal, quantos juízes nossos se referem a recomendações de órgãos internacionais de Direitos Humanos? Nesse sentido, o Plano de Ação poderia servir como estratégia de sensibilização, até mesmo como oportunidade para explicar o tema a outros órgãos”, ponderou.
Nesse sentido, Juliana informou ainda que a Secretaria de Direitos Humanos irá conduzir uma pesquisa junto com a Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas para mapear as ações concretas já em andamento no país que podem vir a ser realizadas enquanto políticas públicas e legislativas – já que o Plano de Ação prevê que o Estado especifique quais diretrizes estaria disposto a adotar, tornando, assim, público o seu compromisso de implementação dos chamados “Princípios Orientadores”.
Controvérsias
A justificativa apresentada pela representante da Secretaria de Direitos Humanos não foi suficiente para convencer Diana Aguiar, da Transnational Institute (TNI) e da campanha internacional para Desmantelar o Poder das Grandes Corporações (DCP), que estava em Genebra em junho quando o Brasil se absteve na votação.
“O Brasil mudou de posição de uma hora para outra. O Itamaraty chegou a construir uma maior polarização para que, seguindo sua tradição diplomática, não precisasse votar. O Brasil tinha de ter votado a favor. Nossa compreensão é que não temos de lutar pelos Princípios Orientadores, nem pelo Plano de Ação, mas sim lutar pelo máximo, pelo tratado vinculante”, defendeu.
Manoela Roland, do Homa/UJF, por sua vez, recordou ainda que há um setor do governo que “não aceita discutir direitos humanos” por ser claramente neodesenvolvimentista.
Já Adhemar Mineiro, do DIEESE e da Rebrip, apontou que essa discussão não deve depender exclusivamente do tratado internacional. O economista sugeriu que se lute, por exemplo, para que a não- -violação de direitos humanos passe a ser pré-condição para que empresas como a Petrobras, a Vale ou as construtoras em geral recebam fundos públicos, como, por exemplo, do BNDES.
Dúvidas
Caio Borges, da Conectas, lançou dúvidas quanto ao conteúdo ainda impreciso do tratado vinculante, como, por exemplo, quanto a quem vai julgar e a que tipo de sanções serão aplicadas contra quem for achado culpado por violações de direitos humanos. Da mesma forma, questionou a atuação do Grupo de Trabalho, ao lembrar que lhe falta transparência: “Não sabemos se seus membros recebem dinheiro das empresas e nem se trabalham em conjunto com outras divisões da ONU”.
Diante disso, ponderou uma vez mais: “Devemos aproveitar a oportunidade para reiterar que os Estados têm de punir as empresas ou apostar em uma nova concepção na qual as empresas tenham de responder a um órgão internacional? Devemos buscar a mudança de paradigma ou reforçar as obrigações já existentes?”.
De forma semelhante, Alexandre Bento, da CUT, polemizou quanto ao papel da ONU no mundo: “Será que devemos mesmo fortalecer a ONU? Que papel ela desempenhou no Paraguai, em Honduras, em Gaza? Eu gostaria de ser otimista, mas não acho que daí vai sair uma mudança global das empresas”.
Por sua vez, Leonardo Scalabrin, do MAB, também cético quanto à mudança vir a acontecer “por conta de um tratado vinculante assinado lá em Genebra”, insistiu que só as lutas populares fazem a diferença, já que, de acordo com ele, “a violação de direitos humanos pelas transnacionais não é acidente de percurso; faz parte do mecanismo de maximização do lucro”, de forma que nenhuma empresa no mundo estará disposta ao diálogo quando o que a outra parte exige significa uma “ameaça concreta ao seu lucro”.
Tratado dos Povos
Fato é que mesmo anteriormente à resolução que decidiu pela confecção do tratado vinculante pelo Grupo de Trabalho da ONU, movimentos sociais, povos originários, sindicalistas, juristas e vítimas das práticas das transnacionais já planejavam elaborar, eles próprios, um Tratado Internacional dos Povos para o Controle das Empresas Transnacionais.
Agora, a ideia é que a proposta – que passa, já há algum tempo, por um trabalho coletivo de recolher a experiência acumulada na última década a partir das lutas contra as transnacionais – seja colocada à disposição do Grupo de Trabalho em dezembro de 2015, após uma Assembleia Global, em Paris, a ser realizada durante o período da COP21.
Lúcia Ortiz, da Amigos da Terra Brasil, listou alguns temas que já figuram em um documento prévio(que pode ser acessado aqui: http://ow.ly/EZpUe), que servirá como base para uma consulta global sobre o Tratado dos Povos, que terá seu lançamento no Fórum Social Mundial que acontecerá na Tunísia em março do ano que vem.
Entre eles, a reconstrução dos serviços públicos, a remunicipalização dos serviços de água, a ressignificação do que significa interesse público, a discussão quanto à apropriação de terras por parte das transnacionais, o “Buen Vivir”, as novas economias asiática e feminista, a auditoria das dívidas, a democratização da produção do trabalho e a construção de soberanias populares.
Do mesmo modo, Lúcia citou lacunas que já foram identificadas no documento e que devem constar no debate de construção do Tratado dos Povos como, por exemplo, o conceito de “atingidos”, a situação dos imigrantes, o direito à cidade e a democratização da comunicação.
Ao longo do próximo ano (veja agenda abaixo), além do tratado, serão realizados também tribunais populares, os chamados Tribunais Permanentes dos Povos (TPP), nos quais transnacionais violadoras de direitos humanos serão levadas ao banco dos réus – como forma de luta e visibilização, mesmo que o julgamento não tenha valor legal.
Como salientou Jocélio Drummond, da ISP, o momento atual é de convergência. “Por um lado, de contraposição à captura das agências internacionais por parte das empresas transnacionais; e por outro, de uma luta levada adiante por uma coalização de organizações do campo sindical, popular e jurídico.”
Agenda 2015
Março – Lançamento do processo de consultas do Tratado dos Povos no Fórum Social Mundial, na Tunísia
Junho – Fórum dos Povos durante cúpula União Europeia-Celac – TPP “Água, alimentos e energia não são mercadorias” (Suez), em Bruxelas
TPP Canadá – mineradoras
TPP Sul da África – Extrativas, agronegócio e setor financeiro
Novembro – Movimentos do APEC (Ásia)
Dezembro – COP21 – Assembleia Global – adoção do Tratado dos Povos, em Paris.
- Marcelo Netto, Brasil de Fato
02/12/2014
https://www.alainet.org/pt/articulo/165874