Teologia em congressso
15/10/2012
- Opinión
Na segunda semana de outubro, a Unisinos, em São Leopoldo (RS), abrigou o congresso teológico que comemora 50 anos do Concílio Vaticano II (1962-1965) e 40 anos da Teologia da Libertação (TdL).
Convocado pelo papa João XXIII, o Concílio reuniu em Roma quase todos os bispos católicos do mundo. Os documentos ali aprovados representam uma profunda renovação na doutrina e na prática da Igreja Católica.
À luz do Concílio, a Igreja deixa de ser uma instituição triunfalista e clerical para ser compreendida segundo o conceito dinâmico de povo de Deus a caminho na história. A missa em latim dá lugar à liturgia em língua vernácula. A confissão auricular entra em desuso e a comunitária passa a ser valorizada. As Igrejas protestantes deixam de ser encaradas como inimigas ou concorrentes para serem acolhidas no diálogo ecumênico.
Os judeus não são mais acusados de deicídio, e tanto eles quanto os muçulmanos se tornam parceiros dos católicos no diálogo interreligioso. O papel dos leigos ganha destaque na missão da Igreja. Teilhard de Chardin é reabilitado e a ciência é vista como complemento à fé e não adversária.
A versão latino-americana do Concílio foi a reunião dos bispos da América Latina em Medellín, Colômbia, em 1968. Inaugurada com a presença do papa Paulo VI, a conferência de Medellín aprovou documentos pastorais tidos como os mais avançados na história da Igreja em nosso Continente.
Algo de novo já vinha brotando no seio da Igreja antes mesmo do Concílio: as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs). Devido à carência de sacerdotes, o povo simples da periferia e da roça, na ânsia de adubar sua vida cristã, começou a se organizar em CEBs, ativadas pelo método Ver-Julgar-Agir e pela contribuição pedagógica de Paulo Freire.
Em suas reuniões e celebrações, os militantes das CEBs cotejavam fé e vida, Bíblia e realidade social, prática de Jesus e desafios atuais aos cristãos. Dessa reflexão, colhida por teólogos, nasceu a Teologia da Libertação.
A TdL não é, portanto, um sumário de conceitos surgidos da cabeça de teólogos progressistas. É a sistematização teológica da vivência de fé de militantes inseridos em movimentos populares, sindicatos e partidos. Vivência de fé no interior de lutas guerrilheiras das décadas de 1960 e 1970, e do martírio de padres revolucionários como Camilo Torres, na Colômbia, e Henrique Pereira Neto, no Brasil. A TdL é fruto do diálogo frutífero entre cristãos e marxistas engajados em lutas libertadoras.
Ora, todo esse processo, tão vigoroso na Igreja Católica latino-americana entre 1960 e 1990, entrou em retrocesso a partir do pontificado de João Paulo II. Anticomunista ferrenho, o papa polonês, instigado pelo cardeal Ratzinger, teve o cuidado de não nomear bispos, padres progressistas, e não valorizar as CEBs como alternativa pastoral.
Embora jamais tenha condenado a TdL, como sugere certa mídia, João Paulo II apoiou as duas Instruções do cardeal Ratzinger, então presidente da Congregação para a Doutrina da Fé, contendo reservas e censuras a essa linha teológica. Iniciou-se um acelerado processo de “vaticanização” da Igreja Católica latino-americana. Aos poucos, ela perdeu seu caráter profético de “voz dos que não têm voz”.
Morto João Paulo II, assumiu o papado, sob o nome de Bento XVI, o próprio cardeal Ratzinger. Terminada a Guerra Fria e desabado o Muro de Berlim, a conjuntura da América Latina também sofrera substanciais mudanças, como o fim dos movimentos guerrilheiros, das ditaduras militares e da militância revolucionária em prol do socialismo.
A TdL, apregoaram seus críticos, morreu! Nem ela nem as CEBs morreram, apenas refluíram - na Igreja, por falta de apoio da hierarquia; no noticiário, pelo desinteresse da mídia.
Agora o congresso de São Leopoldo faz o balanço dos frutos do Concílio e dos 40 anos de TdL. Hoje, essa reflexão teológica abrange também os temas candentes neste início de século XXI, como a questão ambiental, a astrofísica e a física quântica, as relações de gênero, a leitura feminina da Bíblia etc.
O congresso na Unisinos quer, em suma, apenas encontrar respostas a esta pergunta: em um Continente com tanta opressão, o que significa, hoje, ser discípulo de Jesus libertador e fazer teologia em meio a uma população cuja maioria padece pobreza e falta de direitos humanos elementares?
Frei Betto é escritor, autor, em parceria com Leonardo Boff, de “Mística e espiritualidade” (Vozes), entre outros livros.
Convocado pelo papa João XXIII, o Concílio reuniu em Roma quase todos os bispos católicos do mundo. Os documentos ali aprovados representam uma profunda renovação na doutrina e na prática da Igreja Católica.
À luz do Concílio, a Igreja deixa de ser uma instituição triunfalista e clerical para ser compreendida segundo o conceito dinâmico de povo de Deus a caminho na história. A missa em latim dá lugar à liturgia em língua vernácula. A confissão auricular entra em desuso e a comunitária passa a ser valorizada. As Igrejas protestantes deixam de ser encaradas como inimigas ou concorrentes para serem acolhidas no diálogo ecumênico.
Os judeus não são mais acusados de deicídio, e tanto eles quanto os muçulmanos se tornam parceiros dos católicos no diálogo interreligioso. O papel dos leigos ganha destaque na missão da Igreja. Teilhard de Chardin é reabilitado e a ciência é vista como complemento à fé e não adversária.
A versão latino-americana do Concílio foi a reunião dos bispos da América Latina em Medellín, Colômbia, em 1968. Inaugurada com a presença do papa Paulo VI, a conferência de Medellín aprovou documentos pastorais tidos como os mais avançados na história da Igreja em nosso Continente.
Algo de novo já vinha brotando no seio da Igreja antes mesmo do Concílio: as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs). Devido à carência de sacerdotes, o povo simples da periferia e da roça, na ânsia de adubar sua vida cristã, começou a se organizar em CEBs, ativadas pelo método Ver-Julgar-Agir e pela contribuição pedagógica de Paulo Freire.
Em suas reuniões e celebrações, os militantes das CEBs cotejavam fé e vida, Bíblia e realidade social, prática de Jesus e desafios atuais aos cristãos. Dessa reflexão, colhida por teólogos, nasceu a Teologia da Libertação.
A TdL não é, portanto, um sumário de conceitos surgidos da cabeça de teólogos progressistas. É a sistematização teológica da vivência de fé de militantes inseridos em movimentos populares, sindicatos e partidos. Vivência de fé no interior de lutas guerrilheiras das décadas de 1960 e 1970, e do martírio de padres revolucionários como Camilo Torres, na Colômbia, e Henrique Pereira Neto, no Brasil. A TdL é fruto do diálogo frutífero entre cristãos e marxistas engajados em lutas libertadoras.
Ora, todo esse processo, tão vigoroso na Igreja Católica latino-americana entre 1960 e 1990, entrou em retrocesso a partir do pontificado de João Paulo II. Anticomunista ferrenho, o papa polonês, instigado pelo cardeal Ratzinger, teve o cuidado de não nomear bispos, padres progressistas, e não valorizar as CEBs como alternativa pastoral.
Embora jamais tenha condenado a TdL, como sugere certa mídia, João Paulo II apoiou as duas Instruções do cardeal Ratzinger, então presidente da Congregação para a Doutrina da Fé, contendo reservas e censuras a essa linha teológica. Iniciou-se um acelerado processo de “vaticanização” da Igreja Católica latino-americana. Aos poucos, ela perdeu seu caráter profético de “voz dos que não têm voz”.
Morto João Paulo II, assumiu o papado, sob o nome de Bento XVI, o próprio cardeal Ratzinger. Terminada a Guerra Fria e desabado o Muro de Berlim, a conjuntura da América Latina também sofrera substanciais mudanças, como o fim dos movimentos guerrilheiros, das ditaduras militares e da militância revolucionária em prol do socialismo.
A TdL, apregoaram seus críticos, morreu! Nem ela nem as CEBs morreram, apenas refluíram - na Igreja, por falta de apoio da hierarquia; no noticiário, pelo desinteresse da mídia.
Agora o congresso de São Leopoldo faz o balanço dos frutos do Concílio e dos 40 anos de TdL. Hoje, essa reflexão teológica abrange também os temas candentes neste início de século XXI, como a questão ambiental, a astrofísica e a física quântica, as relações de gênero, a leitura feminina da Bíblia etc.
O congresso na Unisinos quer, em suma, apenas encontrar respostas a esta pergunta: em um Continente com tanta opressão, o que significa, hoje, ser discípulo de Jesus libertador e fazer teologia em meio a uma população cuja maioria padece pobreza e falta de direitos humanos elementares?
Frei Betto é escritor, autor, em parceria com Leonardo Boff, de “Mística e espiritualidade” (Vozes), entre outros livros.
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