O 18 floreal de François Hollande?O 18 floreal de François Hollande?
08/05/2012
- Opinión
A eleição de François Hollande para presidente da França, em 6 de maio, lembra em alguns aspectos a vitória de Barack Obama nos Estados Unidos, de 4 de novembro de 2008. Os dois candidatos se apresentaram como um contraponto, uma esperança em oposição a presidentes conservadores, política e economicamente. Obama, o primeiro presidente negro estadunidense, sucedeu a George W. Bush que, mais do que nunca, transformara Washington em uma expressão do neoconservadorismo, doutrina que combina políticas econômicas em prol do livre-mercado, militarismo e fundamentalismo cristão. A vitória de Hollande, que assume oficialmente a presidência em 15 de maio, tem sido interpretada como uma ruptura com a política de Jacques Chirac (1995-2007) e Nicolas Sarkozy, cujos governos adotaram planos de austeridade fiscal e foram influenciados pela extrema-direita crescente.
A vitória de Hollande, com 51,6% dos votos, atraiu dezenas de milhares de pessoas às ruas das principais cidades francesas. Em especial, apoiadores do novo presidente, do Partido Socialista (PS), tomaram em Paris a praça da Bastilha, símbolo da Revolução Francesa de 1789, que derrubou a monarquia absoluta francesa. Presente nas comemorações na capital, Hollande sentiu a esperança eufórica em torno de sua eleição e discursou: “Meus amigos, vocês são uma massa imensa na praça da Bastilha. Não tenho certeza se vocês me escutam, mas eu certamente os escutei. Escutei sua vontade de mudança”. Continuou: “Sei o que muitos de vocês estão sentindo. Foram anos de dor, de ruptura, de queimação. Teremos de consertar. É o que faremos durante cinco anos”.
De novo, há semelhanças com Obama. Eleito sob o lema: “Sim, nós podemos”, o presidente democrata, jovem e ligado a igrejas afroestadunidenses, se apresentou como um veículo de mudança. Em seu primeiro discurso, diante de uma massa de apoiadores principalmente negra em Chicago, afirmou: “A estrada a nossa frente será longa. Nossa subida será íngreme. Talvez não consigamos alcançar nossos objetivos em um ano ou mesmo em um mandato, mas, América, nunca estive tão confiante, quanto hoje, que chegaremos lá, como um povo, chegaremos lá”. Tanto Hollande quanto Obama se tornaram presidentes em contextos de crise econômica e social, agravada, senão desencadeada, por seus predecessores; suas eleições representaram a esperança contra o desemprego, a austeridade, o empobrecimento, mas também de uma sociedade mais justa, com menos desigualdade econômica.
Obama rompeu no máximo parcialmente com seu legado maldito. Não conseguiu ou não quis capitalizar a força popular que o elegeu e, em vez de mudar o modelo econômico estadunidense, tentou reformar o que já existia, mantendo intactas as bases econômicas e políticas do neoconservadorismo. As grandes empresas seguiram as grandes beneficiárias das políticas de Washington, a desigualdade econômica aumentou -- os Estados Unidos são o país em que a diferença de renda e riqueza entre os 1% mais ricos e o resto da população é a mais alta entre as economias desenvolvidas --, apesar da progressiva retirada do Iraque intervenções militares estadunidenses seguiram em outros países. No governo Obama, sindicatos e políticas de bem-estar social seguiram marginais e, caso tivessem sido reforçados, poderiam ter-se tornado vetores de uma transformação a médio prazo.
A situação econômica e social francesa é diferente da estadunidense, apesar de algumas semelhanças com a eleição de Obama, e, por isso, também é diferente a esperança de transformação que expressa o apoio popular a Hollande. No primeiro turno das eleições presidenciais de 2012, em 22 de abril, os partidos mais à esquerda do PS somaram cerca de 13% dos votos -- contra 28,6% do agora presidente eleito --, o que sinalizou que parte significativa da expectativa popular era que houvesse um novo modelo para a França, com redução do desemprego, políticas sociais, redistribuição de renda, fortalecimento do Estado social. Há portanto expectativa de mudanças profundas, não apenas cosméticas. É útil a comparação com a Revolução Francesa, cuja Bastilha foi palco da celebração pela vitória do PS: para marcar a ruptura com o regime absolutista, os revolucionários franceses do século 18 adotaram uma série de medidas para eliminar a influência do antigo regime, incluindo a criação de uma nova nomenclatura para dias e meses, o Calendário Republicano, que foi utilizado de 1792 a 1806 e durante duas semanas na Comuna de Paris, de 1871. De certo modo, parte significativa da população francesa -- que tomou a praça-símbolo da Revolução -- espera que, assim como os revolucionários do século 18, o governo Hollande rompa com o legado de Sarkozy, que, simbolicamente, o 6 de maio se traduza no 18 floreal, do calendário republicano.
Hollande está à altura da esperança popular, à altura das medidas necessárias para tirar a França da crise econômica e social? O balanço econômico e social de dezessete anos de governos de direita na França é, de acordo com alguns integrantes do PS, “catastrófico”. A economia francesa está fragilizada desde a crise econômica de 1993, associada a um programa de liberalização da economia -- ainda sob a presidência de François Mitterrand, do PS, mas com um primeiro-ministro de direita --, e mostrou pouca capacidade de reação à recessão global iniciada em 2007. Em 2009, a economia chegou a cair 2,9% e, no geral, estagnou durante o governo de Sarkozy. O número de desempregados aumentou entre 2007 e 2012, passando de 2 milhões a quase 3 milhões de trabalhadores; com isso, aumentou também a pobreza, atingindo quase 15% dos 65 milhões de franceses. Como outros governantes europeus, Sarkozy apostou em medidas de austeridade fiscal para sair da crise, mas estas pioraram a situação social e econômica e também levaram a um aumento da dívida pública francesa, estimada em fim de 2011 em 1,7 trilhão de euros (85,8% do PIB francês).
As dificuldades econômicas e sociais francesas se devem apenas em parte à má gestão de Sarkozy -- vale notar que este se envolveu em uma série de escândalos de corrupção durante seu mandato. A crise francesa, acentuada com a recessão iniciada em 2007, está relacionada à adoção de políticas econômicas e sociais no contexto europeu que vão contra os interesses da população. Sob a alegação de que eram necessárias para adotar um sistema monetário comum da União Europeia, governos europeus, incluindo o francês, passaram medidas de austeridade fiscal, que estimularam a liberalização e a privatização setores-chaves das economias nacionais. Um dos principais motes dessas medidas foi também diminuir os “custos do trabalho”, isto é, quanto os trabalhadores recebem com salários e benefícios sociais na produção, aumentando assim a parcela de lucro e supostamente a competitividade global das empresas europeias. Essas medidas de austeridade fiscal não são simples de desfazer, já que implicam acordos com outros países europeus e a chanceler alemã, Angela Merkel, aliada de Sarkozy, declarou que se opõe a renegociá-los. A solução da crise francesa passa por uma transformação fundamental do pacto econômico europeu, o que não exclui o desmantelamento da zona do euro.
A solução da crise passa também por mudanças radicais na estrutura social e econômica da França. Sarkozy e, antes dele, Chirac desmontaram grande parte da capacidade do Estado de intervir na direção da economia. Deixaram a solução de crises à lógica do mercado; empresas e investidores se tornaram os principais mecanismos de financiamento de déficits. Para isso, Chirac e Sarkozy adotaram políticas para enfraquecer sindicatos e sucatear o funcionalismo público. Apesar de várias ondas de protestos contra essas políticas, foram instauradas e esfacelaram uma parte importante da capacidade de mobilização dos trabalhadores franceses. Sair da recessão exige quebrar com essa dependência à lógica do mercado, revigorando a capacidade pública de intervenção na economia -- o que, no extremo, pode incluir a nacionalização de bancos e empresas -- e adotando políticas redistributivas em prol dos trabalhadores e consumidores. Para quebrar com a dependência à lógica do mercado, é necessário aumentar a influência política dos trabalhadores nas decisões econômicas, de certo modo diminuindo em algum grau o “caráter capitalista” do capitalismo francês.
Muitos dos grupos socialistas franceses, aqueles que não portam socialista apenas no nome, indicaram um apoio crítico ao candidato do PS para derrotar Sarkozy, mas acreditam que ele não está à altura do que a França precisa para sair da crise. Um dos principais assessores de Hollande, o economista Elie Cohen declarou que o foco do novo governo deve ser o fortalecimento da aliança entre Estado e mercado, como se a causa da crise fosse simplesmente a má gestão de Sarkozy. O próprio Hollande indicou ser contrário à regulação estatal da economia, que sintetizou na frase “o Estado não pode tudo”. Essa postura é em parte uma resposta à ameaça de investidores globais de reduzir sua participação em fundos na França, se o político do PS adotar medidas radicais. Noutra parte expressa a crença de que um incremento no crescimento econômico e a redução do déficit serão suficientes para reverter a situação; esses dois objetivos -- insuficientes para resolver a crise -- podem até agravar a situação social, se não forem acompanhados de fortalecimento do controle estatal. As primeiras medidas prometidas por Hollande, um suposto plano emergencial contra a crise, estão aquém do clamor popular por transformação: a uma França que precisa de um novo modelo social e econômico, o novo governo promete redução no preço do combustível, reformas administrativas em autarquias e uma consulta ao Conselho da União Europeia para incluir metas de crescimento para o bloco econômico. Apesar da euforia popular, ao que tudo indica não haverá 18 floreal de François Hollande.
- João Alexandre Peschanski é sociólogo e membro do comitê de redação da revista marxista Margem Esquerda.
https://www.alainet.org/pt/articulo/157843
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