Quebrando o ciclo do ódio
16/06/2011
- Opinión
O que têm em comum Mark Strohan (texano preso por homicídio e que deverá ser executado no próximo dia 20 de julho) e Rais Bhuiyan (bengali, imigrante legal, vivendo nos Estados Unidos há vários anos, cego de um olho)? O traço em comum entre os dois é justamente o olho perdido de Rais Bhuyan. Pois o responsável pela perda parcial de visão do bengali foi justamente Mark Strohan, que o atacou com um tiro no rosto.
Tudo começou no dia 11 de setembro de 2001, data que marca um novo ciclo na história ocidental e do mundo inteiro. O ataque às torres gêmeas plantou o terror e o ódio no centro do hemisfério, deixando um lastro de morte e destruição. Neste dia, Mark Strohan perdeu sua irmã e a inocência que lhe restava no coração. Passou a ser movido pelo desejo de vingança e pelo ódio a tudo e a todos que levassem qualquer proximidade e semelhança com os autores do atentado, responsáveis por sua perda e a dor incurável que ela provocara em sua vida.
Mark Strohan passou a perseguir e atacar imigrantes. Atirava para matar. Com dois, conseguiu seus intentos: um paquistanês e um indiano. Com Rais Bhuyan conseguiu apenas destruir seu olho. O bengali sobreviveu. E Mark Strohan foi preso. Era o dia 21 de setembro, dez dias depois do atentado que mudou o mundo e plantou o ódio no seu coração. O bengali retomou aos poucos sua vida, tendo que aprender a conviver com sua nova situação física. O texano ficou dez anos preso, foi condenado à pena capital e agora sua execução foi marcada.
Há, porém, uma voz que se levanta entre Mark Strohan e sua programada morte: surpreendentemente, a de Rais Bhuyan. O bengali que perdeu parte da visão pela arma do condenado não parece reger-se pela lei do Talião : “Olho por olho, dente por dente”. Mas sim pela compaixão que ensina a ver no outro, qualquer que ele seja, não importa o que haja feito, um irmão em humanidade. No intrincado aparelho judicial estadunidense, Rais Bhuyan luta para transformar a pena de morte decretada para Strohan em prisão perpétua. Não deseja a morte de seu agressor e, pelo contrário, luta para devolver-lhe a vida.
Bhuiyan declara haver chegado à decisão de empreender este combate pela vida do homem que atirou em seu rosto e perfurou seu olho após um longo e duro processo de sofrimento e purificação. Dele saiu sem ódio no coração, mas cheio de gratidão por lhe ter sido dada a chance de viver. Sentia em si o desejo de fazer algo pelos outros. E logo essa alteridade em direção à qual se movia a nova compaixão que o habitava recebeu um rosto e um nome: o de Mark Strohan. Após consultar as famílias dos dois outros homens mortos pelo texano e delas receber a aprovação para o que desejava fazer, Rais lançou-se de corpo e alma na luta para libertar Strohan da injeção letal que deverá levá-lo à morte no próximo mês de julho.
Sua conduta chama a atenção e surpreende a opinião pública. Bhuys tem que dar entrevistas explicando por que, em vez de vingar-se, escolheu perdoar. Como vítima do ódio, não seria mais lógico alegrar-se com a morte do agressor? A esta pergunta ele responde dizendo que deseja quebrar o ciclo do ódio e que o único caminho para isso é o perdão. Não vê Strohan como inimigo, mas como seu semelhante. Entende o que fez como fruto de uma perda de consciência e privação de sentidos. Deseja resgatá-lo como ser humano e dar-lhe a chance de ter sua vida de volta e redescobrir-se como ser humano.
Trabalhando em parceria com a advogada do condenado, Bhuys tem esperança de conseguir seu intento. Quer encontrar-se com Strohan, falar com ele, declarar-lhe pessoalmente seu perdão. Ao saber disso, o texano chorou muito. Está disposto a receber seu defensor na prisão. O perfume do perdão derramado sobre o ódio e a violência que separou estes dois homens ungiu a distância e inaugurou uma nova aproximação. Uma ponte foi construída, o fosso foi transposto, Bhuys e Strohan contemplam sua condição de seres criados para o amor e a relação, recém recuperada e renovada.
Contra a irracionalidade da violência, apenas a irracionalidade do perdão pode ter algum poder, alguma eficácia. Porque, como a palavra mesma diz, per-doar é persistir no dom. O dom da vida foi generosamente concedido a Strohan e a Bhuys. Rompido pela violência de um, é restaurado pelo perdão do outro que persiste na doação. E o dinamismo vital continua em movimento, sem ser lançado no país escuro do “rigor mortis”. Contemplando a maravilha deste milagre, louvamos a Deus que criou a Strohan e a Bhuys à sua imagem e semelhança
- Maria Clara Lucchetti Bingemer, professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio e autora de "Simone Weil - A força e a fraqueza do amor” (Ed. Rocco).
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