O novo transcendente

22/07/2010
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A história da humanidade é uma  história de sujeições. No período pré-moderno, sujeição aos deuses do  politeísmo, ao Deus do monoteísmo, ao Rei da monarquia e ao Povo (sujeito  abstrato) da República. Havia sempre uma figura do Outro ao qual todos  deveriam se reportar.

 Esse Grande Outro prescrevia o certo e o  errado, o bem e o mal, a graça e o pecado, a lei e o crime. O mundo se  configurava de acordo com os preceitos do Grande Outro. As alternativas eram  simples: sujeitar-se sob promessa de recompensa ou rebelar-se sob risco de  punição.

 Na modernidade, o Outro se multiplicou, adquiriu várias  faces, descentralizou-se na diversidade de ideologias, sistemas de governo e  crenças religiosas. Tanto a antiguidade quanto a modernidade nos remetiam à  transcendência, ainda que fundada na razão. Se não era Deus, era o Partido, o  líder supremo, as ideias inquestionáveis. Algo ou alguém nos precedia e  determinava o nosso comportamento, incutindo-nos gratificação ou culpa.  

 A pós-modernidade, em cuja porta de entrada nos encontramos, promete fazer de nós sujeitos livres de toda sujeição. Seria a volta ao  protagonismo exacerbado, em que cada indivíduo é a medida de todas as coisas.  Já não se vive em tempos de cosmogonias e cosmologias, teogonias e ideologias.  Agora todos os tempos convergem simultaneamente ao espaço reduzido do aqui e  agora. Graças às novas tecnologias de comunicação, tempo e espaço ganham  dimensão holográfica: cabem em cada pequeno detalhe do aqui e  agora.

 Será que, de fato, a pós-modernidade nos emancipa do  transcendente e da transcendência? Introduz-nos no “desencantamento do mundo”  apontado por Max Weber?

 A resposta é não.

 Há um  novo Grande Outro que nos é imposto como paradigma inquestionável: o Mercado.  As sedutoras imagens deste deus implacável são disseminadas por seu principal  oráculo: a publicidade. À semelhança de seu homólogo de Delfos, nos adverte:  “Dize o que consomes e eu te direi quem és”.

 O grande teólogo  desse novo deus foi Adam Smith. Inspirado na física de Newton, em “A riqueza  das nações” e “A teoria dos sentimentos morais”, Smith aplicou à economia a  metáfora religiosa do Grande Relojoeiro que preside o Universo.  

 O relógio funciona graças à precisão mecânica fabricada por  alguém fora dele e invisível a quem o porta: o relojoeiro. Assim, na opinião  de Newton, seria o Universo. Na de Smith, a vida social regida por interesses  econômicos. A diferença é que o Deus Relojoeiro de Newton é chamado de Mão  Invisível por Smith. Segundo este, o egoísmo de cada um, guiado pela Mão  Invisível, promoveria o bem de todos...

 É exatamente o que afirma  Milton Friedman, líder da Escola de Chicago: “Os preços que emergem das  transações voluntárias entre compradores e vendedores são capazes de coordenar  a atividade de milhões de pessoas, sendo que cada uma conhece apenas o próprio  interesse.”

 Esse o fundamento do pensamento liberal e do sistema  capitalista. É o principio do laisser faire, deixar (deus) fazer. O  que, traduzido em termos políticos, significa desregulamentar, não apenas as  esferas econômicas e políticas, mas também a moral. Abaixo a ética de  princípios e viva a ética de resultados! Nesse protagonismo pós-moderno, cada  ego é a medida de todas as coisas. O que imprime ao sujeito (no sentido latino  de sujeição, submissão) a impressão de autonomia e liberdade.

 O  resultado do novo paradigma centrado no deus Mercado todos conhecemos:  degradação ambiental; guerras; gastos exorbitantes em armas, sistemas de  defesa e segurança; narcotráfico e dependência química; esgarçamento dos  vínculos familiares; depressão, frustração e infelicidade.

 Ainda  é tempo de professarmos o mais radical ateísmo frente ao deus Mercado e,  iconoclastas, apelarmos à ética para introduzir, como paradigma, a  generosidade, a partilha dos bens da Terra e dos frutos do trabalho, a  felicidade centrada nas condições dignas de vida e no aprofundamento  espiritual da subjetividade.

 Isso, contudo, só será possível se  não ficarmos restritos à esfera da autoajuda, das terapias tranquilizadoras da  alma para suportarmos o estresse da competitividade, e nos mobilizarmos  comunitariamente para organizar a esperança em novo projeto político fundado  na globalização da solidariedade.

 Eis o desafio ético que, como  assinalou José Martí, será capaz de articular emancipação política e  emancipação espiritual.
- Frei Betto é escritor, autor de  “A arte de semear estrelas” (Rocco), entre outros livros. www.freibetto.org   twitter:@freibetto
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