Olho quem me olha

14/05/2010
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Imagine uma  prisão redonda como o estádio do Maracanã. Há vários andares de celas. Nenhuma  possui porta, de modo que um único carcereiro, situado na guarita no centro da  construção circular, controla sozinho o movimento de centenas de  prisioneiros.

Este o modelo  panótico de Bentham, descrito por Michel Foucault em Vigiar e Punir.  Muitas penitenciárias o adotaram.
Tive oportunidade de visitar uma delas, na Ilha da Juventude, em Cuba, construída antes de Revolução e, hoje,  desativada.

Vivemos agora  numa sociedade panótica. Em qualquer lugar que nos encontramos, um olho nos  vê. Somos vistos; quase nunca vemos quem nos vê. Não me refiro apenas às  câmeras discretas ou ocultas em ruas e prédios, elevadores e lojas. O mais  poderoso olho é a TV, exatamente esse aparelho que julgamos decidir quando e o  que veremos.

Ligamos a TV  motivados por seu olho invisível; ele suscita em nós essa atitude. Antes de a  emissora colocar no ar uma peça publicitária ou um programa, vários testes são  realizados, de modo a assegurar ao anunciante ou patrocinador o êxito de  audiência. Conhece-se o olhar alheio através de exaustivas pesquisas de  opinião.

Isso influi  inclusive na (des)qualidade da arte. Agora, o artista não cria a partir de sua  subjetividade e imaginação. Antes, procura satisfazer o olhar do público. Ele  se olha pelo olho do consumidor de sua obra. Sua fonte de inspiração não  reside na ousadia de romper e ultrapassar a linguagem estética que o precede,  de expressar os anjos e demônios que lhe povoam a alma, e sim na vontade de  agradar o público, criar um mercado de consumo para a sua obra, ainda que à  custa de banalizar o próprio talento. O olho promissor do mercado configura  seu olhar no ato criativo.

Todo esse  processo foi expressivamente tratado em obras como 1984, de George  Orwell (1949), e Fahrenheit 451, de Ray Bradbury (1953), filmado em  1966 por François Truffaut. O fenômeno atual mais expressivo é o Big  Brother, que promove arrebanhamento dos telespectadores, faz todos se  sentirem irmãos, igualizados pela imbecilidade voyeurista de observar o ritual  canibalizador que ocorre no interior da casa.

Induzidos por  esse sentimento egogregário, perdemos a singularidade. O olho do Grande Irmão  nos olha peremptoriamente e nos exige um comportamento de rebanho humano.  

Outrora havia  uma economia de bens materiais institucionalmente separada de uma economia de  bens espirituais. Desses últimos cuidavam padres e pastores, intelectuais e  professores, artistas e escritores.

Agora, a  indústria de entretenimento se encarrega da produção de bens espirituais,  integrando-nos na família televisual. O avatar nos chega pela janela  eletrônica. Os novos bens espirituais já não imprimem sentido altruísta às  nossas vidas, e sim motivações egóticas de acesso ao mercado de produtos  supérfluos, fama, beleza e riqueza. Somos impelidos a consumir, não a  refletir. Sempre mais acríticos, nos tornamos ventríloquos manipulados pela  ideologia midiática que repudia a solidariedade e exalta a competitividade.  

Em A doce  vida, filme de Fellini, a última cena mostra o fim da noite boêmia de  gente da alta burguesia. Caminham todos, tropegamente, por um bosque em  direção ao mar. Ao chegar à praia, a ébria alegria se choca com o imenso olho  inerte de um monstro marinho (uma imensa água-viva) que os pescadores arrastam  rumo à areia.

O olho olha  aquela gente e gera angústia e medo, como se a despisse de sua falsa alegria e  a interpelasse no fundo da alma.

É este olho  crítico que tanto tememos. E quando ele emerge, os oráculos do sistema  neoliberal tratam de tentar cegá-lo e afundá-lo. Ele ameaça porque funciona  como espelho no qual o nosso olhar reverbera e olha a mediocridade na qual  estamos atolados, movidos como rebanho pelo Grande Imã – o entretenimento  televisivo centrado do estímulo ao consumismo.



- Frei Betto é  escritor, autor de “Maricota e o mundo das letras”, lançamento infanto-juvenil  da editora Mercuryo Jovem.
Copyright 2010 – FREI BETTO - É proibida a reprodução deste artigo em qualquer  meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização. Contato – MHPAL – Agência Literária (mhpal@terra.com.br)
 
https://www.alainet.org/pt/articulo/141479
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