Comunicação com contexto e caráter popular

25/04/2010
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ENTREVISTA Educador cubano sustenta que o papel dos meios de esquerda deve ser o de levar as pessoas à reflexão
 
Quito, Equador.- HOJE EM DIA, o papel dos meios de comunicação ocupa um importante cenário no debate político. Dessa forma, questões como comunicação popular e a construção de meios por movimentos sociais são centrais para o debate. Presente no encontro “Comunicação, Integração e Movimentos Sociais”, que reuniu, neste mês, em Quito (Equador), organizações sociais e comunicadores que se articulam nos princípios da Alternativa Bolivariana para as Américas (Alba), José Batista Vidal, jornalista e comunicador do Centro Martin Luther King, de Cuba, faz uma descrição dos meios de comunicação da ilha, refletindo sobre suas limitações e possibilidades e sobre sua articulação com o trabalho popular. Em entrevista, Vidal, envolvido com formação de comunidades e na criação de uma rede de articulação entre elas, problematiza o constante exercício de reflexão e motivação popular. Para ele, educação e a comunicação são duas ferramentas indispensáveis. “Pensamos que, no conceito de transição socialista, nós desempenhamos um papel modesto, mas importante, porque sem participação real das pessoas, sem democratização desde as comunidades, centros de trabalho das instituições, na realidade não haverá socialismo, que é o crescimento contínuo dessa capacidade crescente de ser eu mesmo, de autogoverno, de ser o sujeito de sua própria vida e não objeto das decisões de outros”, declara.
 
Brasil de Fato – Qual é a experiência do Centro Martin Luther King no trabalho de comunicação popular?
 
José Vidal – Ele nasceu há 22 anos a partir do trabalho social e pastoral que realizávamos na igreja batista, em um bairro popular na cidade de Havana, que se chamava Popolote, um bairro operário, com grande população negra. Isso nos motivou a chamá-lo de Martin Luther King, porque a igreja do sul dos Estados Unidos também apoiou essa iniciativa. A outra fonte que nutre o Centro desde o início é justamente a educação popular. Uma das pessoas que apoiou muito foi o Frei Betto. Ele nos colocou em contato com o Paulo Freire e começamos a nos apropriar de sua metodologia. Uma metodologia que requer contextualização, que não pode ser aplicada de forma igual em todas as partes, não é uma receita. É uma concepção política e pedagógica e uma metodologia de trabalho consequente com essa concepção. Há mais de quinze anos, temos “cubanizado” essa educação popular, de acordo com as características e necessidades em Cuba.
 
Qual a importância desta síntese do processo em Cuba e a metodologia de Freire?
 
Tem importância grande, porque fomenta as capacidades para a autocondução, para o autogoverno nas comunidades, para identificarem juntos dificuldades da vida cotidiana. É o autogoverno em um país onde as pessoas se acostumaram, excessivamente, a esperar tudo do Estado, de orientação socialista e fortes políticas sociais, mas que não pode resolver tudo. As comunidades têm que se organizar, ter vida ativa, identificar seus problemas particulares, ademais, contribuir com o projeto estatal. Primeiro, porque não é possível saber centralmente os problemas específicos de cada zona, cada urbanidade, tampouco há recursos para fazê-lo. Além disso, as pessoas têm que participar, não só recebendo benefícios, mas com sentido de responsabilidade e iniciativa – tudo isso tomamos da metodologia de Freire, a partir da prática de vincular a ação com a reflexão. Isso inclusive é nossa identificação e princípio de trabalho, desenvolver a capacidade para a solidariedade, que fazemos desde a educação popular e a partir da reflexão ideológica contextualizada e comprometida.
 
Vocês tiveram que encontrar métodos para que o povo voltasse a participar mais da vida política e também pensasse a questão da mídia?
 
Exatamente. Sobretudo em um momento quando havia uma crise muito profunda. Caiu o campo socialista, com efeitos dramáticos sobre a vida cotidiana das pessoas. Fazia-se impostergável trabalhar o reencantamento das pessoas, na ativação de toda a força e toda a sabedoria popular, com ganas para enfrentar o enorme desafio que temos por diante. Pensamos que, no conceito de transição socialista, nós desempenhamos um papel modesto, mas importante, porque sem participação real das pessoas, sem democratização a partir das comunidades, centros de trabalho das instituições, na realidade não haverá socialismo, que é o crescimento contínuo dessa capacidade crescente de ser eu mesmo, de autogoverno, de ser o sujeito de sua própria vida e não objeto das decisões de outros. Claro que são transformações de caráter cultural, que têm períodos, mas nós vemos os frutos desde já. Há experiências riquíssimas em comunidades de Cuba, onde estão criados os valores pela Revolução, tudo isso se revela de uma maneira muito orgânica e criativa, com resultados alentadores. Temos experiências em comunidades rurais e cooperativas urbanas. Não gostamos de idealizar, mas há um caminho de humanização, de socialização real, como projeto civilizatório, que transcenda tudo o que há de opressão no capitalismo.
 
Como trabalhar a questão local, mas sem perder de vista a luta política?
 
Articulamos essas comunidades, organizadas em redes organizativas, com impacto mais além do local, porque isso potencializa as experiências e permite aprendizados muito mais rápidos e mais profundos, a partir do intercâmbio e de possíveis ações conjuntas de experiências locais e próximas. Estamos fortalecendo muito as articulações territoriais. Por outro lado, por onde queira que essas comunidades vão e participem, em suas organizações de massa, políticas, estão levando uma ideia de socialismo e isso impacta também sobre a política nacional. E, por outra parte, nós, como política de instituição, a partir dos nossos meios de comunicação e através dos espaços que nos abrem, realizamos uma nova incidência sobre essa concepção, sobre a política pontual, mas também sobre a concepção de socialismo, sobre a potencialidade enorme que tem a participação popular, o fato de que a participação popular é um direito, e não uma dádiva. Mas tem que se formar para a participação. Quando as pessoas se dão conta que podem ser sujeito, que podem tomar decisões, que podem ser ativas, elas se sentem mais realizadas.
 
Como são as experiências de comunicação em Cuba?
 
Um sistema de meios de comunicação em Cuba segue essencialmente os cânones da comunicação transmissiva, não te posso dizer que os meios de massas em Cuba estão nos conceitos de comunicação popular, que a realimentação e o incentivo ao diálogo sejam o que predomina. Há experiências, há empenhos pontuais nessa direção, mas o que predomina, porque predomina no sistema político, é o verticalismo – condução de cima a baixo. Isso tem razões diversas, de tipo cultural, de tipo de socialismo que predominou no século 20 e Cuba herdou esse modelo, ainda que sempre tenha havido intentos de cubanizar a Revolução. Mas esse modelo deixou marcas em nós e também nas estruturas do país, isso faz com que predominem estruturas mais verticais, menos participativas e democráticas. Há mecanismos democráticos em Cuba: Constituição, eleições, revisão de mandato aos eleitos, mas muitas vezes esses mecanismos ficam subordinados à lógica da direção vertical. Em alguns municípios, há experiências interessantes de rádios e telecentros locais. Existem mais de 80 rádios locais, nas quais muitos dos que trabalham são formados nas oficinas nossas, mas não é a tônica que predomina. Claro, nunca poderá haver um modelo único, você não pode dizer só: “Vamos dialogar” – é preciso informar, propagandizar, mobilizar, mas também temos que dar um espaço para que haja diálogo e participação das pessoas. Nos últimos tempos, posso dizer que se reconhece que há na imprensa um certo discurso triunfalista, “tudo está bem”, “temos a melhor sociedade do mundo”, quando temos problemas, não só derivados de castigos imperiais, mas também de estruturas e mecanismos que precisamos superar. Hoje, há maior consciência disso e abre-se espaço para isso, por meio de crítica, reflexão, algo que tem tido uma boa repercussão, mas de maneira incipiente. O jornal Granma, em particular, tem uma seção de cartas ao leitor às sextas, que tem uma boa repercussão. Em Juventud Rebelde há uma sessão com muito prestígio, que se chama “Vuelta de Correo”, que faz eco da opinião das pessoas, mas são experiências pontuais, ensaios.
 
O que é o limite da comunicação de esquerda no geral. Se fazemos esta autoavaliação sobre os meios de esquerda, quais são nossos erros?
 
Um erro da esquerda no geral: como somos repetitivos, damos mais opiniões e adjetivos que fazemos as pessoas pensar. Na verdade, o projeto da esquerda não é o de manipular ou convencer, mas o de ensinar as pessoas a pensar e tomar decisões próprias, um projeto emancipador. Nós, cubanos, temos aprendido a pensar com a Revolução, senão ela não se sustentaria. Porque a guerra contra a Revolução foi de pensamento em grande medida. E os cubanos puderam pensá-lo. E, para seguir avançando na revolução socialista, há que se dar uma ênfase na educação e comunicação.
 
Como os processos de comunicação estão avançando na América Latina?
 
Avançaram um pouco construindo-se uma agenda comum, sobretudo no campo dos movimentos sociais, que vem de longa data, desde a campanha contra as celebrações de 500 anos da chegada dos europeus. Depois, avançaram muito na luta contra a Alca [Área de Livre Comércio das Américas]. Creio que o movimento dos fóruns sociais mundiais, fóruns temáticos, tiveram a virtude de nos fazer reconhecer os que estão na luta. Caminhou-se um passo, mas insuficiente. Estamos ainda muito dispersos, há muitas iniciativas que deviam estar coordenadas para unir forças. A dispersão é um elemento que nos debilita. A grande batalha política no campo da comunicação e da organização da força popular é avançar na construção de visões comuns, em uma agenda comum, prática e efetiva que nos permita somar a força que temos e que tenda a diminuir essa dispersão. O continente está em um momento de crise. E as crises podem dar um resultado positivo. A crise gerada pelo neoliberalismo propiciou a erosão do pensamento hegemônico, essa é uma oportunidade, não quer dizer que o pensamento hegemônico está derrotado, mas não é inquestionável, muita gente está com um pensamento crítico, acabou a verdade como um único mundo possível. E há governos que não estão subordinados à essa ideologia.
 
Nessa conjuntura, a contraofensiva da direita se dá com os meios de comunicação na vanguarda do processo?
 
A ação dos setores populares provoca a reação dos centros oligárquicos e, ademais, a reação dos centros imperialistas, que se realiza de diversas formas. Com a crise, os setores não politizados atribuem a crise ao governo e não ao sistema mundial, achando que uma mudança de governo vai resolver o problema. E é ao contrário, a direita nunca vai ser uma alternativa de benefício aos setores populares em nosso continente. Nesse sentido, os meios de comunicação jogaram um papel de primeira linha. Partidos políticos da direita se desacreditaram muito, e também as instituições, como no caso do parlamento, (por exemplo) as instituições do parlamento equatoriano. “Que se vayan todos” era a consiga popular (no Equador). Então, o recurso que restava eram os meios de comunicação, a imensa maioria de propriedade da direita. Esse era o intento, com maus resultados, porque não impediram que as pessoas se enfrentassem com o golpe e restituíssem [o presidente venezuelano Hugo] Chávez, por exemplo. Não impediram os sucessivos processos de consulta popular no Equador, Venezuela, Bolívia.
 
Brasil de Fato – edição 373 - de 22 a 28 de abril de 2010
 
https://www.alainet.org/pt/articulo/140940
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