O Caim de Saramago e a violência na Bíblia
24/11/2009
- Opinión
É na história primeva que podemos encontrar o início da trajetória da violência na Bíblia e mais diretamente no relato de Caim e Abel, em Gênesis 4. No texto, Caim é o primeiro homem nascido. É recebido por Eva como dom de Deus. É à Sua benevolência que a primeira mulher deve a maternidade. É a primeira experiência de maternidade no mundo, o que vem modificar a condição feminina tornando-a, mais do que serva e companheira de um marido, capaz de ser mãe dos seres humanos.
O texto bíblico apresenta a seguir os dois irmãos, Caim e Abel, com ocupações diferentes. Caim está ligado à prática agrícola e Abel à pastoril. Esta diferença de atividades vai caracterizar uma diferença de atitudes, pois no desenvolvimento de sua vocação individual, o ser humano cria perspectivas próprias a partir de sua experiência com o meio. No caso do relato bíblico, Caim e Abel, irão demonstrar práticas religiosas também diferentes, o que pode indicar óticas diversas no âmbito religioso-moral, em consequência das próprias atividades desenvolvidas. A divisão em duas funções distintas, conduz também para distintos sacrifícios, para distintas práticas religiosas. Cada culto pertence a uma cultura. São, portanto, dois altares e dois cultos.
Os versículos 4b e 5 nos contam que Iahweh reage diferentemente às ofertas dos irmãos. No entanto, não deixa clara a razão desta rejeição divina à oferta de Caim. É nesta incompreensibilidade da atitude divina que radica o último romance do escritor português José Saramago, intitulado “Caim”.
Neste novo romance, Saramago reconta episódios bíblicos do Velho Testamento sob o ponto de vista de Caim, que, depois de assassinar seu irmão, trava um incomum acordo com deus e parte numa jornada que o levará do jardim do Éden aos mais recônditos confins da criação. Para atravessar esse caminho árido, Deus colocará Caim, assassino do irmão Abel e primogênito de Adão e Eva, sozinho montado em um altivo jegue e o enviará mundo afora, “errante sobre a terra”, maior maldição para o homem bíblico que buscava ansiosamente a sedentarização. A Caim, que leva a marca do senhor na testa e, portanto está protegido das iniquidades humanas, resta aceitar o destino amargo e compactuar com o criador, a quem não reserva o melhor dos julgamentos.
O tema dos irmãos inimigos realmente convida a olhar as expressões deste relacionamento. Caim, sentindo-se inferiorizado em relação ao irmão mais novo, se fecha e se deixa invadir pelo ódio contra seu irmão.
Em Caim aparece o desejo mimético na sua forma mais perversa: convertido em inveja, em ressentimento e, finalmente, em ódio. O desejo mimético conduz Caim a escapar à alteridade que parece dividi-lo, dilacerá-lo. Procura assim, anular as diferenças, eliminando-as. O desejo mimético reduz o outro a si mesmo, quer moldar o outro à sua própria imagem, recusa a diferença encontrada, nega a alteridade e o diálogo profícuo que advém de uma atitude de abertura à diferença como dom e como condição de ser pessoa, dialogicamente configurada.
Assim como Adão e Eva, Caim não aceita a soberania divina, recusa-se a obedecê-la, e faz de si mesmo, um deus. A alteridade é negada em Caim, tanto na pessoa de Abel como na obediência ao mandato divino. Caim se torna um idólatra, escapa ao seu fundamento que reside no Outro, na abertura à alteridade. “A idolatria provoca uma cisão no próprio homem, a qual o faz implodir”, perder sua soberania com relação à Criação. Caim se torna desumano, age como animal indomável, sua soberania se transforma em violência e despotismo.
No texto bíblico encontra-se um diálogo entre Deus e Caim. Iahweh exorta Caim a dominar o pecado - que está à espreita -, a modificar sua atitude, seu “semblante abatido”. Aqui se desenvolve o drama íntimo entre Caim, Deus e a consciência, o drama de todo o ser humano. O pecado está à porta e sempre desejoso de dominar mais e mais o pecador, até que este, vigilante, possa dominá-lo por último.
A orientação divina exorta Caim a reconhecer, em sua atitude, uma exposição favorável à disseminação do pecado, e tomando essa consciência, modificá-la a tempo, através da confiança em Deus e da fraternidade. Como no relato da Queda, não é Deus que tenta, mas é o próprio homem que se deixa atrair e seduzir pela cobiça. Esta dá à luz o pecado e, este, gera a morte. Na decisão de Caim, de escutar o pecado - à espreita - reconhecemos o dilema de todo ser humano, de toda a sociedade: deixar que o pecado avance ou dominá-lo?
A revolta de Saramago contra um Deus que ele acusa de ser autor intelectual do assassinato fratricida mostra bem como essa disputa está enraizada no fundo mais profundo do coração humano.
O que Saramago se esquece de dizer é que Deus não “imita” Caim. Ou seja, não o mata, mas ao contrário, marca-o na fronte para que não lhe seja feito mal. No fundo do violento relato do fratricídio que marca a história humana, a presença do Criador se revela como de misericórdia e perdão, e não de vingança. Eis aí algo que o Caim de Saramago não mostra e não reconhece. Por isso seu romance, por genial que seja literariamente, padece de certa unilateralidade lastimável. Deve ser lido... e discutido...com abertura e lucidez...mas sempre com honestidade.
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Maria Clara Bingemer é autora de "Deus amor: graça que habita em nós” (Editora Paulinas), entre outros livros. (wwwusers.rdc.puc-rio.br/agape)
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