A lógica da violência sem fim
- Opinión
O que é mais imoral do que a guerra? - Marquês de Sade
1. Imperialismo regional
Imperialismo é violência. São sinônimos e são irmãos siameses, vinculados de modo inseparável. A violência imperialista é necessariamente interminável. Correndo o risco de parecer recurso retórico fútil, arrisco a construção gramatical “enquanto houver imperialismo haverá espirais de brutalidade” em maior ou menor intensidade, em que paz é apenas um lapso de violência ainda não identificado.
Israel desempenha importante papel na dinâmica de atores globais exercitando um sub-imperialismo no Oriente Médio, atuando na defesa de interesses comuns desses atores e projetos hegemônicos. Projetos e interesses que estão em profundo antagonismo com o direito a autodeterminação dos povos que lá habitam e seus direitos econômicos, sociais e culturais. A racionalidade imperialista é diluir modos tradicionais de vida e transferir padrões estrangeiros para a dominação e subjugação dos primeiros, não apenas na dimensão social e cultural, mas assegurando uma vassalagem e hiper-exploração econômica.
O Oriente Médio, como tantas outras regiões do mundo, foi alvo de um longo processo histórico de partilha inter-imperialista. Em um estágio inicial, França e Inglaterra dividiram os espólios ao fim da I e II Guerra Mundiais, logo substituídos pela hegemonia estadunidense em disputa com as práticas nacionalistas que se alinhavam com a União Soviética. Materialização jurídico-diplomática desta partilha são os acordos de Sykes-Picot (Reino Unido e França, em 1916) e Declaração Anglo-Francesa (1918), bem como os diversos mandatos exercidos por estes países na região, desenhando-a conforme seus interesses geopolíticos. Essa manipulação político-territorial levou à fragmentação, criação e aprofundamento de tensões étnico-nacionais, das quais a mais visível até os dias de hoje é a Questão Palestina, agravada em 1948 com a limpeza étnica promovida contra os árabes-palestinos.
Com a saída da presença e domínio direto da Europa, na década de 1940 e a entrada dos Estados Unidos da América, Israel passa a desempenhar o papel de guarda-costas dos planos do imperialismo. Estes planos/interesses não podem ser definidos apenas em termos da obediência cega de Israel ao prévio imperialismo britânico e o recente governo estadunidense. Além desta hipótese, é fundamental reconhecer uma reflexividade e dupla determinação: Israel não é usado, como também usa outros atores poderosos (1). Em termos gerais, há uma relação de complementaridade entre EUA e Israel, acomodando seus diferentes objetivos em uma política única para o Oriente Médio, marcada pela ultra-violência e flagrante colonialismo, em seu largo sentido, quer seja (a) eliminação da população local e sua substituição forçada por outros habitantes, (b) exploração dos recursos naturais/matérias-primas desta periferia e (c) prevalência através do domínio das economias locais.
2. Palavras que ocultam o verdadeiro significado: quando agressão é um “ataque preventivo” para assegurar a “legítima defesa”
A maior dificuldade no estudo das relações de poder no Oriente Médio não é a barreira lingüística no acesso às fontes, mas o duplo processo de ocultamento e mascaramento do verdadeiro significado dos acontecimentos políticos. Como explicado pelo filósofo palestino Edward Said (2003), as representações feitas pelos orientalistas, profissionais a serviço do imperialismo, criam uma dinâmica própria escrevendo, descrevendo e formatando a região em termos políticos e culturais. No imaginário social ocidental prevalece a descrição “oficial”/Hollywoodesca do Outro meso-oriental: um sanguinário barbudo que professa uma religião de intolerância e pretende matar por matar. O Outro é acima sem alma e sem bondade, incapaz de manter um diálogo, razão pela qual a única linguagem a ser utilizada é a da força purificadora do colonizador e sua missão civilizatória redentora.
Assim, a história que vem sendo escrita é a história dos atores hegemônicos, marginalizando e criminalizando (ou, no discurso aplicado a realidade local, convertendo em crime de terrorismo) a dissidência. Cada palavra no Oriente Médio é campo de uma nova batalha para sua significação. Como caso inicial, temos o acontecimento de 1948. Israel o descreve como “Guerra de Independência”, os palestinos tentam, apesar das tentativas de criminalização punindo com prisão e expulsão aqueles que o fazerem, registrar o acontecimento como uma Tragédia, destrinchando o planejado e bem sucedido crime de limpeza étnica perpetrado por organizações terroristas de judeus-sionistas que viriam a se tornar as forças armadas de Israel.
Desde sua criação, a argumentação israelense circundou a retórica de autodefesa, em uma histeria coletiva elevada a níveis absurdos. Foi assim em 1948, com a criação de Israel, magno ato de violência imperialista e colonialista, deslocando aproximadamente 800.000 árabes-palestinos para a criação de um Estado racista, como foi à agressão igualmente imperialista e colonialista em Gaza em 2009.
Descrevendo a guerra em 2009, N. Chomsky (2009) explica que “agressão sempre tem um pretexto”. T. Segev (2008) diz o mesmo:
Todas as guerras de Israel foram baseadas nas crenças que nos acompanham desde o princípio: de que estamos apenas nos defendendo. ‘Meio milhão de israelenses estão sob ataque’ grita a manchete do jornal Yedioth Ahronoth – como se a Faixa de Gaza não estivesse sendo objeto de um longo cerco que destruiu as chances de uma vida melhor de uma geração inteira.
Finalmente, I. Pappé (2009) faz apontamentos equivalentes:
Israel se apresenta ao seu povo como uma justa vítima que se defende de um grande mal. (...) Todo ato, seja limpeza étnica, ocupação, massacre seja a destruição, sempre foi apresentado como moralmente justo ou um ato de pura legítima defesa relutantemente realizada por Israel contra o pior tipo de seres humanos.
A resistência ao terrorismo político perpetrado pelos poderosos é terrorismo. O terrorismo político exercitado como prática de Estado é apenas “ataque preventivo”, em “legítima e justa defesa” repelindo o terrorismo fundamentalista do Outro, simbolizado como a personificação da barbárie.
3. De
Embora se apresentasse para o mundo como em uma situação de fragilidade e alertava para um novo holocausto (exatamente como faz agora diante da suposta ameaça iraniana), às portas fechadas, as organizações sionistas na Palestina estavam certas da sua vitória. Assim, em 18 de fevereiro de 1948, Moshe Sharett, espécie de ministro das relações exteriores do sionismo na Palestina, ainda em estágio preparatório da guerra de expulsão dos palestinos para criação de Israel, escreveu para Ben Gurion: “nós não seremos capazes de nos defendermos, mas sim de infligir grandes mortes nos sírios – e tomar a Palestina em sua totalidade” (apud Pappé, 2007, p. 46). E assim foi feito, perpetrou-se uma guerra para a des-arabização da Palestina, com assassinato em massa, expulsão e destruição de cidades inteiras, contradizendo o postulado mítico do sionismo de que a região seria uma “terra sem povo” a ser destinada para um “povo sem terra”.
Em 1956, diante da nacionalização do Canal do Suez, no Egito sob a presidência do nacionalista Gamal Abdel Nasser, uma aliança política da França e Inglaterra, utilizando Israel como ponta de lança, atacou o país. É preciso ver a operação militar que contou a com a atuação conjunta de dois dos mais poderosos atores hegemônicos mundiais e do sub-imperialismo israelense como uma nítida contra-reforma. Embora Nasser fosse um típico regime anti-imperialistas/nacionalistas da época, sua crescente influência nas então colônias e ex-colônias assustava à Inglaterra e França. Israel tinha suas motivações particulares que eram o claro propósito de dissuadir qualquer regime pan-árabe ou emergente nacionalismo, deixando o claro recado para todos os outros aspirantes à hegemonia regional que desafios ao poderio israelense não seriam tolerados (Finkelstein, 2003).
Em 1967 há uma nova escalada de violência. Israel lança novamente ataques “preventivos” contra o Egito, anulando 400 aeronaves árabes. O discurso de Nasser também se assemelha com a atual retórica iraniana: “Nosso objetivo básico é a destruição de Israel”. Uma imprudente oratória nacionalista, que custou o regime revolucionário, logo eliminado pelo bloco histórico anti-nasserista formado por Inglaterra/França/Israel.
Em 1981, seguindo o monótono padrão de pretextos, o reator nuclear na cidade iraquiana de Osirak foi atacado e destruído pela aviação israelense. Uma tentativa mal-sucedida já havia sido empreendida no ano anterior. Apesar da condenação mundial, não houve esforços maiores no sentido de programar sanções contra Israel.
Em setembro de 2007, imitando a agressão de 1981 no Iraque, um reator sírio (outros jornais declararam ser um carregamento de armas para o Hezbollah) foi atacado. Embora tenha negado comentar sobre o assunto publicamente, fontes das forças armadas comentaram que o ataque significou “o restabelecimento da credibilidade do poder de medidas retaliatórias e intimidação”. O então primeiro-ministro de Israel, E. Olmert declarou que “Os serviços de segurança e as forças armadas demonstraram incomum coragem” (2). Brutalidade e agressão na linguagem israelense é coragem.
Outra agressão em 2009. Desta vez, no Sudão. Um comboio de caminhões e navios sudaneses foi atacado há 1400 quilômetros das fronteiras de Israel. Repetidamente, a alegação é de que o comboio transportava armas iranianas que seriam levadas para o Hamas e, deste modo, Israel estaria exercitando seu direito à defesa preventiva. A mensagem de E. Olmert é similar à de 2007: “Nós podemos operar em todos os lugares para atingir infra-estruturas terroristas – em lugares próximos e distantes. Nós os atingiremos e os atingiremos de modo a aumentar nossa capacidade de intimidação. (...) E aqueles que precisam saber, sabem que não há lugar onde Israel não pode atacar” (3).
4. Atacar o Sudão e massacrar em Gaza para mirar no Irã
(...) Um soldado do sexo feminino grita:
“É você de novo? Eu não te matei?”
Eu digo:
“Você me matou... mas eu esqueci,
como você, de morrer”
– Em Jerusalém; Mahmoud Darwish
O massacre em Gaza (dezembro de 2008 e janeiro de 2009) e o ataque no Sudão são inequívocas mensagens ao Irã, que vem postulando uma posição contestatória (ao menos na esfera discursiva) em relação à práxis da potência israelense. Desde a derrota em 2006, Israel vem sem sendo exposto como um pequeno demônio; assustador, mas fragilizado. As operações de massacre contra Gaza e o Sudão são uma tentativa de reafirmar a capacidade israelense como força capaz de exercitar uma hegemonia regional e, para tal, é preciso restabelecer o medo em sua inquieta vizinhança (Finkelstein, 2009; Achcar, 2009).
Nas falas dos representantes do governo israelense é notável a ilimitada fúria imperialista: atacar em todos os recantos do mundo. Não existem limites territoriais ou fronteiras a serem reconhecidas. Da mesma forma que no passado se empreenderam experimentos colonialistas, expulsando e assassinando as populações em dadas localidades, hoje, em nome de uma Cruzada fundamentalista contra um inimigo criado e imaginário (como foi o comunismo até poucos anos atrás!) se declara uma guerra interminável ao terror.
Não é que a guerra não tenha fim. Para afiançar o padrão de domínio estabelecido pelas frações imperialistas é preciso manter um permanente estado de sítio. Um inimigo sem face e que não pode ser derrotado cumpre este papel. O mundo árabe e muçulmano é o inimigo eleito contra o qual a missão civilizatória da aliança ocidental deverá travar sua batalha, em um enfretamento que corporifica o choque entre duas civilizações excludentes. Neste caso, a integridade territorial e soberania das nações fracas (fracas por terem sido enfraquecidas pelo imperialismo) são apenas estorvos a serem superados para reafirmar a integridade dos contratos e soberania da violência do imperialismo.
EUA e Israel esticam e alargam ao máximo os entendimentos sobre o uso da força, fazendo da violência “preventiva” um elemento constitutivo das relações internacionais, relações estas de subordinação dos outros povos legados à escravidão e a mais brutal desumanização, elementos típicos da bestialidade colonialista. A duração da guerra, estendida para atender os mais cínicos propósitos, refaz o Oriente Médio. A violência é elemento primeiro para uma nova arquitetura de redistribuição do poder e território.
Não se pretendeu demonstrar as umbilicais relações entre a dimensão política e econômica do imperialismo (que existem e são muitas!), mas apresentar um breve histórico do uniforme padrão de agressões do imperialismo regional exercitado no Oriente Médio. A lógica do imperialismo é manter um nível de violência permanente, seja ela política, simbólica ou física, tornando insustentável a tentativa de oposição e resistência ao modelo elaborado para a região – de servir como provisão de recursos energéticos para os centros dominantes.
- O autor é cientista social pela Universidade Federal de Rondônia (Unir). Contato: vmiguel@marxists.org – Manter contato para disponibilização/republicação em outras fontes.
5. Notas
Todas as citações, incluindo o trecho do poema de M. Darwish foram traduzidos do inglês pelo autor, razão pela qual isento os autores/fontes por eventuais diferenças e divergências com o original.
(1) Explicando a dinâmica da interferência israelense na política externa dos EUA, ver J. Mearsheimer e S. Walt. The Israel Lobby and US Foreign Policy. London: Allen Lane, 2007. Ver também J. Petras. The Power of Israel in the United States. Clarity Press, 2006.
(2) A. Spillius. Israel strike ‘targeted Syrian nuclear reactor’. Telegraph. 14.10.2007. Disponível em http://www.telegraph.co.uk/news/worldnews/1566162/Israel-strike-targeted-Syrian-nuclear-reactor.html Acesso em 3.06.2009.; C. Urquhart. Speculation flourishes over Israel's strike on Syria. The Guardian. 17.09.2007. Disponível em http://www.guardian.co.uk/world/2007/sep/17/syria.israel Acesso em 3.06.2009.
(3) Y. Melman; A. Harel; B. Ravid. IAF Sudan strike. Haaretz. 26.03.2009. Disponível em http://www.haaretz.com/hasen/spages/1074032.html Acesso em 3.06.2009.
6. Referências
ACHCAR, G. Behind the Gaza crisis. International Viewpoint. 408 Janeiro de 2009. Disponível em http://www.internationalviewpoint.org/spip. php?article1591 Acesso em 26.05.2009.
CHOMSKY, N. “Exterminate all the brutes”: Gaza 2009. 19.01.2009. Disponível em http://www.chomsky.info/articles/20090119.htm Acesso em 3.06.2009.
FINKELSTEIN, N. Image and reality of the Israel-Palestine conflict. London: Verson, 2003.
______. RT correspondent Marina Portnaya Interviewing Norman Finkelstein. Russia Today. 26.05.2009. Disponível em http://www.russiatoday.com/Top_News/2009-01-21/They’ve_incinerated_chi... Acesso em 21.01.2009.
PAPPÉ, I. 2009. Israel’s righteous fury and its victims in Gaza. 02.01.2009. Disponível em http://ilanpappe.com/?p=82 Acesso em 27.05.2009.
_____. The ethnic cleansing of Palestine. Oxford: Oneworld Publications, 2007.
SAID, E. Orientalism. London: Penguin Books, 2003.
SEGEV, T. 2008. Trying to 'teach Hamas a lesson' is fundamentally wrong. Haaretz. 29.12.2008. Disponível em http://www.haaretz.com/hasen/spages/1050706.html Acesso em 27.05.2009.
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