Por dentro e por fora

02/04/2009
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O Estado, como certas empreiteiras, é uma entidade de dupla linguagem: “por dentro”, assume decisões segundo os parâmetros da racionalidade. Por isso é tão complexo quanto os circuitos neurônicos de nosso cérebro. O Estado é o cérebro, e sua burocracia a malha aparente daquelas intrincadas conexões que o fazem ordenar a sociedade, seja rumo ao desenvolvimento, seja para reprimir ou consentir a corrupção.

Não é apenas no plano racional que o Estado opera. Há nele uma outra linguagem, “por fora”, dissimulada, subjetiva, não visível ou audível ao público; linguagem cunhada na fogueira das vaidades, nas disputas internas, nos
lobbies, na defesa dos interesses corporativos, nas sendas obscuras da corrupção. As decisões racionais são manifestações desse jogo de bastidores que o público não percebe e onde ocasionalmente leva-se em consideração o interesse dele.

A isso se chega por vias transversas, já que decisões políticas nem sempre são racionalizáveis, dependem de emoções, afetos, empatias e simpatias, alianças e acordos. Das mais frequentes e piores práticas políticas é essa endogamia. Uma pessoa é nomeada para tal função (vide Senado), não por reunir as qualidades necessárias, isso também conta, mas quase nunca é prioridade; ou porque tenha sido democraticamente eleita ou indicada por aqueles que integram a instituição que irá chefiar. É nomeada porque o político precisa agradar a um amigo, tirar um correligionário do ostracismo, compensar a derrota eleitoral de um aliado histórico, favorecer um arco de alianças eleitorais, atender o pedido de um senador ou deputado, ou do presidente de seu partido que, por sua vez, também não prima por levar em conta a equação cargo, responsabilidade e competência.

São essas razões subjetivas que produzem tantas nomeações de estranhos no ninho, e o diabo é que o estranho passa a deter poder no ninho e a chocar os ovos à sua maneira. Abre-se assim um fosso entre interesses corporativos e públicos.

O Estado moderno padece de estrutural esquizofrenia. Ninguém sabe precisar com exatidão a linha de fronteira entre governo e Estado, embora a diferença entre um e outro conste em qualquer manual de política. Na prática, o governo coloca-se acima do Estado, pelo simples fato de encarná-lo e representá-lo. E todo governo empenha-se em cooptar o Estado, reduzir ao máximo a distância entre ambos e, se possível, inverter a polaridade: fazer com que o Estado se encaixe dentro do governo.

Esse paradoxo é tanto mais penoso para a população quanto mais fragilizado o Estado pela sucessão de governos que o ocupam. Se um cidadão enfermo comparece a um posto de saúde, em princípio deveria merecer toda a atenção do Estado, independentemente do governo vigente. E todo governo, exceto nos regimes autocráticos e ditatoriais, é provisório, ao contrário do Estado, que possui caráter permanente. A promiscuidade entre governo e Estado, e o modo como aquele abusa deste, impedem que o cidadão enfermo tenha segurança de que o serviço de saúde pública é um direito que não lhe faltará.

Se o governo nomeia incompetentes para gerir a saúde e atende aos
lobbies da indústria farmacêutica e dos planos privados de saúde, interessados em minar serviços públicos que ameaçam a multiplicação dos lucros privados, então o enfermo terá abreviada a sua vida pelo simples fato de o Estado não ser uma instituição estável, consolidada, acima dos caprichos de cada governo que periódica e sucessivamente o ocupa.

Segundo Maquiavel, mantém-se no poder com mais dificuldade o governante que depende da ajuda dos poderosos do que aquele que se apóia no povo. Este, quando desgostoso com o governante, o abandona (vide eleitorado sul-americano frente aos candidatos neoliberais). Já os poderosos não apenas abandonam, mas se vingam. O governante pode derrubar poderosos, não o povo. Por isso, deve governar sempre com o povo.

Em tempos de crise, o Estado, como um pai, volta a exercer autoridade sobre esta filha dileta que, ambiciosa, se emancipou e, desvairada, fez o que não devia: a economia. Talvez haja, agora, uma chance de reduzir a antinomia entre o “por dentro” e o “por fora”. Desde que não se queira perfumar o bode que entrou na sala ao pretender inibir o Ministério Público e a Polícia Federal no combate à corrupção. Como sugere Emmanuel Lévinas, a política deve ser sempre controlada e criticada a partir da ética. Melhor expulsar o bode e fazer coincidirem transparência e atividade política.

- Frei Betto é escritor, autor de “Calendário do Poder” (Rocco), entre outros livros.

https://www.alainet.org/pt/articulo/133119
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