No primeiro dia da semana...
24/03/2008
- Opinión
A manhã ainda não despontara naquele primeiro dia da semana e o luto, a dor e a saudade pesavam no coração dos amigos. Um silêncio claro abrigava a vida que se perguntava por que ainda palpitava, uma vez que se fora para sempre aquele que era toda a sua esperança. Os amigos dispersos, os discípulos com medo e escondidos, apenas no coração das mulheres habitava uma certeza que acenava para um desconhecido amanhã.
O shabat havia passado e elas, como boas judias, o haviam respeitado e guardado. Agora amanhecia o primeiro dia da semana, e o perfume e a ternura que haviam guardado não podiam deixar de ser derramados como unção sobre aquele corpo que tanto dera a tantos e tantas e que agora jazia sob a terra. Jesus havia morrido crucificado, mas o amor que semeara nelas estava mais vivo do que nunca. E elas sabiam que tudo não havia acabado. Ainda faltava aquela última homenagem. Era preciso ir até o túmulo onde o corpo do Mestre fora depositado e derramar sobre ele seu pranto, seu perfume e seu carinho. Era preciso persistir no dom e no serviço e não deixar que o medo passasse trancas e ferrolhos nos corações.
Em plena madrugada não completamente despertada e feita dia, elas se arriscaram, se aventuraram, levadas pelo sentimento interior de que o amor ainda não podia descansar. Ainda havia ternura a derramar, cuidados a prestar, serviço a realizar. Preocupava-as a pedra atada à morte pelos selos imperiais, que tinha sido rolada e se fechara inapelavelmente sobre o corpo. Era pesada, grande, e elas fracas. Quem iria mover aquele obstáculo que as impedia de chegar até aquele que choravam e amavam?
No escuro do túmulo acendeu-se uma pergunta, iluminou-se uma certeza, insinuou-se uma esperança. Não havia pedra, nem trevas, nem morte. Apenas luz e alegria. O sepulcro aberto e vazio, antes fechado pelo poder assassino, agora era útero jubiloso rasgado pelo Espírito dando à luz a Vida. E a notícia paralisou as mulheres no estupor da alegria. E logo começou a buscar palavras para ser ditas pelos lábios enquanto os pés corriam sem lastro de tristeza.
O sepulcro que se abrira para receber o corpo do Justo agora era caverna na memória da insensatez humana, que volta a cavar mais fundo a cada dia em que se planeja o ódio e a destruição, no afã de reter inutilmente em meio às trevas os brotos da primavera que teimam em florir. Anunciando a boa nova às mulheres fiéis e desveladas, era já boca do cosmos inteiro, aberta para se unir ao canto de júbilo de toda a criação e de todo o universo.
O anúncio de que não havia que buscar entre os mortos aquele que está vivo soou aos ouvidos delas como melodia que se gesta em inefável harmonia nas entranhas da pedra dura. E então compreenderam que aquele que seu coração chorava de um pranto já grávido de esperança não se encontrava mais no sepulcro de pedra. Era preciso correr a buscá-lo na noite ineludivelmente rasgada pela surpresa da alvorada, na surpresa alegre e imprevista do povo fiel, nas feridas dos que sofrem e morrem pela justiça, na paz e na alegria sobre as quais nada nem ninguém tem poder.
Jesus realizara a travessia das sombras da morte até a vida. E com isso traz a todos nós a boa notícia de que tampouco a morte não será nossa última morada. Estar com ele é a garantia de uma vida que não termina pois é sustentada pelo poder de Deus, que não consentirá que a tristeza vença a alegria e a morte tenha a palavra final. O amor é o último sentido da história e a palavra definitiva de Deus sobre a vida humana. Aconteça o que acontecer, nosso destino não será selado por uma pedra grande e pesada que nos sepultará nas trevas, mas pelo Espírito que nos arrancará da inércia da morte e nos conduzirá amorosamente ao parto da vida nova e plena.
Feliz Páscoa para todos e todas!
- Maria Clara Lucchetti Bingemer, teóloga, professora e decana do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio, é autora de "Simone Weil - A força e a fraqueza do amor” (Ed. Rocco), entre outros livros. (wwwusers.rdc.puc-rio.br/agape)
O shabat havia passado e elas, como boas judias, o haviam respeitado e guardado. Agora amanhecia o primeiro dia da semana, e o perfume e a ternura que haviam guardado não podiam deixar de ser derramados como unção sobre aquele corpo que tanto dera a tantos e tantas e que agora jazia sob a terra. Jesus havia morrido crucificado, mas o amor que semeara nelas estava mais vivo do que nunca. E elas sabiam que tudo não havia acabado. Ainda faltava aquela última homenagem. Era preciso ir até o túmulo onde o corpo do Mestre fora depositado e derramar sobre ele seu pranto, seu perfume e seu carinho. Era preciso persistir no dom e no serviço e não deixar que o medo passasse trancas e ferrolhos nos corações.
Em plena madrugada não completamente despertada e feita dia, elas se arriscaram, se aventuraram, levadas pelo sentimento interior de que o amor ainda não podia descansar. Ainda havia ternura a derramar, cuidados a prestar, serviço a realizar. Preocupava-as a pedra atada à morte pelos selos imperiais, que tinha sido rolada e se fechara inapelavelmente sobre o corpo. Era pesada, grande, e elas fracas. Quem iria mover aquele obstáculo que as impedia de chegar até aquele que choravam e amavam?
No escuro do túmulo acendeu-se uma pergunta, iluminou-se uma certeza, insinuou-se uma esperança. Não havia pedra, nem trevas, nem morte. Apenas luz e alegria. O sepulcro aberto e vazio, antes fechado pelo poder assassino, agora era útero jubiloso rasgado pelo Espírito dando à luz a Vida. E a notícia paralisou as mulheres no estupor da alegria. E logo começou a buscar palavras para ser ditas pelos lábios enquanto os pés corriam sem lastro de tristeza.
O sepulcro que se abrira para receber o corpo do Justo agora era caverna na memória da insensatez humana, que volta a cavar mais fundo a cada dia em que se planeja o ódio e a destruição, no afã de reter inutilmente em meio às trevas os brotos da primavera que teimam em florir. Anunciando a boa nova às mulheres fiéis e desveladas, era já boca do cosmos inteiro, aberta para se unir ao canto de júbilo de toda a criação e de todo o universo.
O anúncio de que não havia que buscar entre os mortos aquele que está vivo soou aos ouvidos delas como melodia que se gesta em inefável harmonia nas entranhas da pedra dura. E então compreenderam que aquele que seu coração chorava de um pranto já grávido de esperança não se encontrava mais no sepulcro de pedra. Era preciso correr a buscá-lo na noite ineludivelmente rasgada pela surpresa da alvorada, na surpresa alegre e imprevista do povo fiel, nas feridas dos que sofrem e morrem pela justiça, na paz e na alegria sobre as quais nada nem ninguém tem poder.
Jesus realizara a travessia das sombras da morte até a vida. E com isso traz a todos nós a boa notícia de que tampouco a morte não será nossa última morada. Estar com ele é a garantia de uma vida que não termina pois é sustentada pelo poder de Deus, que não consentirá que a tristeza vença a alegria e a morte tenha a palavra final. O amor é o último sentido da história e a palavra definitiva de Deus sobre a vida humana. Aconteça o que acontecer, nosso destino não será selado por uma pedra grande e pesada que nos sepultará nas trevas, mas pelo Espírito que nos arrancará da inércia da morte e nos conduzirá amorosamente ao parto da vida nova e plena.
Feliz Páscoa para todos e todas!
- Maria Clara Lucchetti Bingemer, teóloga, professora e decana do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio, é autora de "Simone Weil - A força e a fraqueza do amor” (Ed. Rocco), entre outros livros. (wwwusers.rdc.puc-rio.br/agape)
https://www.alainet.org/pt/articulo/126491
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