Mídia venezuelana: golpista e cínica
12/07/2007
- Opinión
No final de junho, o presidente da RCTV, Marcel Granier, esteve em São Paulo para participar de um ato “em defesa da liberdade de expressão”, promovido pelos magnatas da mídia do Brasil. A cena foi de um cinismo depravado. Num suntuoso salão do Hotel Meliá, o empresário teve a caradura de afirmar que não houve golpe na Venezuela em abril de 2002, “mas apenas um vazio de poder”. Animado com a recepção, ele extrapolou: “Nunca ninguém ouviu uma única frase minha em defesa de um golpe de estado”. Granier só não explicou porque a sua residência serviu de quartel-general dos golpistas, porque sua TV convocou abertamente o golpe e porque omitiu a noticia da revolta popular que garantiu o retorno de Hugo Chávez.
Fora do hotel, proibidos “democraticamente” de entrar, lutadores sociais criticaram a visita desta persona non grata. “Com nariz de palhaço e vendas na boca, eles empunharam cartazes que diziam: ‘concessão é pública’, ‘liberdade de imprensa é diferente de liberdade de empresa’, ‘liberdade de expressão para todos’ e ‘Globo e RCTV: tudo a ver’”, relatou Bia Barbosa, na Carta Maior. Num manifesto assinado pela CUT, UNE, MST e outras entidades, a verdade foi restabelecida, lembrando que Granier promove uma cruzada de “mentiras, calúnias e ódio contra o legítimo e democrático governo de Hugo Chávez”. O texto também repudiou a posição “do Senado brasileiro, que cometeu enorme equívoco ao dar guarida a este golpista”.
Um livro indispensável
Essa lamentável visita confirma a importância e atualidade do livro “Midiático poder: o caso Venezuela e a guerrilha informativa”, do jornalista Renato Rovai, editor da Revista Fórum. A obra surge na hora mais oportuna e ajuda a desmascarar de vez a ação golpista dos meios de comunicação venezuelanos, sempre acobertada pela mídia brasileira. Ela dá detalhes impressionantes dos golpes orquestrados pelos jornais e emissoras de televisão do radicalizado país vizinho. A sua leitura comprova, com fatos, análises e fotos, que o senhor Granier é um mentiroso contumaz e um fascistinha convicto – uma persona non grata para todos que prezam a democracia e não se iludem com a “liberdade de imprensa” dos magnatas da mídia.
Na sua minuciosa pesquisa de mestrado, que serviu de base para o livro, o autor sustenta que não houve apenas um golpe, “midiático-militar”, na Venezuela. “Alguns estudiosos só consideram como tentativa de golpe a ocorrida em 11 de abril de 2002, ocasião em que o presidente Hugo Chávez chegou a ser deposto e encarcerado. Divirjo deles. Entendo e defendo que, nos meses de dezembro de 2002 e janeiro de 2003, teve lugar uma outra investida golpista, mais complexa, mas nem por isso menos totalitária. Com a mídia capitaneando o processo, realizou-se por dois meses uma ação de desabastecimento de bens essenciais de consumo, principalmente para a população mais pobre... Tratou-se um golpe midiático-econômico”.
Foto do neném pelado
O rigoroso levantamento sobre a atuação da mídia venezuelana – expressão radicalizada da conduta deste oligopólio no mundo inteiro – é impressionante e, até, assustador. Rovai mostra como os meios privados assumiram a postura de “partidos da direita” em substituição aos partidos tradicionais e corruptos (AD e Copei), rechaçados na eleição presidencial do final de 1998. Clodovaldo Hernandes, na época editorialista do jornal reacionário El Universal, lembra: “Desde que Hugo Chávez despontou nas pesquisas de opinião, articulou-se uma reação da mídia para impedir o seu crescimento. Quando os meios perceberam que a eleição dele era inevitável, tentaram uma aproximação. Como não conseguiram, voltaram a atacá-los”.
Uma das peças publicitárias usadas pelas televisões na véspera deste pleito mostrava uma cabeça humana sendo cortada e jogada na frigideira com óleo quente. Ao fundo, uma voz anunciava: “Se Chávez ganhar, muita gente vai perder a cabeça”. Apesar da violenta manipulação, 56,24% dos venezuelanos votaram no militar rebelde. Derrotada, a mídia ainda tentou mudar de tática, procurando seduzi-lo. “Recordo-me que fiquei num programa de televisão durante quatro horas ao vivo no dia em que ganhei. Até músicos tocaram harpas. Mostraram uma foto de quando era neném e estava pelado brincando. Nem eu sabia da foto. Fizeram de tudo para me agradar e depois enviaram mensageiros para tentar se aproximar. Mas, quando comecei a escolher o ministério, passaram a me chamar de golpista”, relata o próprio Chávez.
“Una solo voz” golpista
Como não conseguiu seduzir e enquadrar o jovem presidente, a mídia passou a investir freneticamente na preparação do primeiro golpe, “midiático-militar”. Ela inclusive unificou o seu conteúdo jornalístico, num consórcio conhecido como “una sola voz”. “Um repórter faz o trabalho para todos os veículos e o tom editorial é formatado verticalmente. A reportagem é divulgada pelas emissoras com o mesmo enfoque, o que impede contradições... Os talk shows e programas de debate escolhiam a dedo os entrevistados... O direcionamento do conteúdo, por absurdo que possa parecer, chegava até os programas humorísticos, que exploravam as mesmas piadas e preconceitos caricaturais para tratar do presidente”, explica Rovai.
Nas semanas que antecederam ao golpe de 11 de abril de 2002, as emissoras de televisão, jornais e rádios criaram um verdadeiro clima de terror no país. Patrocinaram um locaute patronal e estimularam violentos confrontos em Caracas, que resultaram em várias mortes. As passeatas convocadas para derrubar Chávez “eram acompanhadas por um pool de TVs que trocaram imagens da cobertura. A vinheta utilizada nas emissoras para anunciá-las não deixava dúvida a respeito do tom editorial: ‘ni un paso atrás’. Na marcha do dia 11, a estratégica midiática é ainda mais agressiva. As emissoras RCTV, Venevisión e Globovisión transmitem a marcha ao vivo”, durante quatro horas, suprimindo até as chamadas comerciais.
Confissão do crime ao vivo
O golpe já estava todo planejado. As mortes seriam a senha para a invasão do Palácio Miraflores e para a deposição de Chávez. Um militar golpista, mais empolgado, acabou confessando o plano numa entrevista ao repórter da CNN, Otto Neustald. Diante das câmeras, o almirante Héctor Ramírez afirmou: “O senhor Hugo Chávez Frias traiu o povo e o está massacrando com franco-atiradores. Neste momento já se podem contar seis mortos e dezenas de feridas”. A gravação aconteceu duas horas antes dos conflitos. “Naquele momento, não existiam mortos ou feridos. Nem confronto armado. Tampouco era possível saber da existência de franco-atiradores. Héctor Ramirez e seus colegas golpistas de farda, porém, sabiam de tudo que ia acontecer. Os meios de informação, que esperavam para autorizar-lhe a entrada ao vivo, também”.
O primeiro golpe, entretanto, foi derrotado pelo povo dos morros de Caracas, que não se deixou ludibriar pela ação nefasta da mídia. Rádios comunitárias que sobreviveram à perseguição dos golpistas, celulares, motoboys e internet serviram como instrumentos para convocar a reação popular. Diante da derrota, os veículos privados caíram totalmente no ridículo. “Quando ficou claro que não havia mais como resistir ao contragolpe, o poder midiático dá o espetáculo final. As emissoras de rádio e TV da Venezuela tiram seus sinais do ar e provocam o maior apagão informativo da história da mídia latino-americana até então. Nenhum dos meios comerciais realizou a cobertura da volta de Hugo Chávez ao Palácio Miraflores”.
“Tríplice aliança do mal”
Já no segundo golpe, “midiático-econômico”, os veículos privados apostaram no desabastecimento para desestabilizar o país. O locaute petroleiro, patrocinado pela gerência mafiosa da PDVSA, visou jogar a povo contra o governo. Citando pesquisa da advogada venezuelana-estadunidense Eva Golinger, Rovai lembra que as quatro principais emissoras de TV suspenderam a programação habitual nos 64 dias desta greve patronal, inclusive tirando do ar comerciais, telenovelas e desenhos animados para inserir 17.600 anúncios contra o governo e de convocação da ação de sabotagem da economia. O momento do golpe também foi previamente planejado e teve até um ingrediente internacional, latino-americano.
“Alguns analistas políticos em programas de debates nas televisões diziam, sem meio tom, que se Lula viesse a ser eleito haveria uma aliança entre ele, Hugo Chávez e Fidel Castro. Denominavam o acordo de ‘tríplice aliança do mal’, o que tornaria, na versão desses analistas, impossível a paz na Venezuela e no continente... ‘A oposição começou a trabalhar com esse dado para construir um novo calendário golpista’, comenta o cientista político Elio Fernandes”. Diante do risco desta virada “esquerdizante” na região, “o slogan midiático do novo calendário golpista passa a ser ‘Natal sem Chávez’”. É com este objetivo que a oposição patronal e sua mídia convoca nova “greve geral” contra Chávez para 2 de dezembro de 2002.
O papel da mídia alternativa
Mas, como demonstra Rovai, o líder bolivariano apreendeu com a primeira tentativa de golpe. Percebeu nitidamente que ela havia sido bancada pela mídia hegemônica e não alimentou mais qualquer ilusão e nem vacilou diante deste poder nefasto. O governo venezuelano passou a investir nos meios alternativos de comunicação, estimulando rádios e TVs comunitárias, redistribuindo as verbas publicitárias do estado e investindo pesado nas emissoras estatais e públicas. “Quando a economia foi estrangulada e começou a faltar de tudo no país, desde farinha a gasolina, passando por Coca-Cola e cerveja, essas emissoras divulgaram reportagens e entrevistas que mostravam uma outra versão do que estava acontecendo”.
No segundo golpe, a mídia privada já não dispôs da exclusividade da informação/manipulação. “Chávez tinha onde falar. Diferentemente do golpe midiático-militar, o governo contava tanto com a resistência dos meios de informação alternativa, que se fortaleceram e se multiplicaram após abril de 2002, quanto com o fortalecimento da mídia estatal, que proporcionava nova correlação de forças na disputa midiática”. O poder destes veículos alternativos também foi decisivo no referendo de agosto de 2004, quando a mídia privada voltou a se unir numa campanha sórdida para revogar o mandato de Hugo Chávez. Novamente derrotada, ela acabou se dividindo. A Venevisión, do bilionário Gustavo Cisneros, optou por conter a sua fúria golpista. A RCTV manteve a mesma linha – e agora pagou o preço com o fim da concessão pública.
Marimbondos e rinoceronte
Além de denunciar este nefasto poder, que atua impunemente no mundo inteiro, o livro de Renato Rovai tem como objetivo “chamar a atenção para o debate sobre democratização da mídia e a responsabilidade social dos veículos de informação”. Para o autor, ativo militante dos meios alternativos de comunicação, as novas tecnologias e o avanço da internet têm permitido a construção de redes contra-hegemônicas de informação, identificadas com o movimento altermundista. “Essa nova rede informal pode vir a ser o que costumo definir, utilizando-se de uma metáfora do escritor uruguaio Eduardo Galeano, como um bando de marimbondos que, atuando conjuntamente, poder derrotar um rinoceronte”.
Ao final do livro, Rovai apresenta um mapa detalhado da mídia venezuelana e uma extensa lista de sítios na internet que realizam a “guerrilha informativa” contra a mídia hegemônica. Desta forma, ele conjuga a denúncia implacável com as alternativas e disponibiliza uma obra de valor inestimável para a atualidade. Como afirma Maurício Ayer no prefácio, o livro não é apenas um estudo de caso que denuncia as tramas no país vizinho. “Não só as forças golpistas são globalizadas e se estendem muito além das fronteiras da Venezuela, como também seus ‘métodos de trabalho’ são semelhantes aos utilizados em diferentes partes do mundo”. A nefasta atuação da mídia hegemônica no Brasil confirma esta sábia conclusão!
- Altamiro Borges é jornalista, membro do Comitê Central do PCdoB, editor da revista Debate Sindical e autor do livro “Venezuela: originalidade e ousadia” (Editora Anita Garibaldi, 3ª edição).
Fora do hotel, proibidos “democraticamente” de entrar, lutadores sociais criticaram a visita desta persona non grata. “Com nariz de palhaço e vendas na boca, eles empunharam cartazes que diziam: ‘concessão é pública’, ‘liberdade de imprensa é diferente de liberdade de empresa’, ‘liberdade de expressão para todos’ e ‘Globo e RCTV: tudo a ver’”, relatou Bia Barbosa, na Carta Maior. Num manifesto assinado pela CUT, UNE, MST e outras entidades, a verdade foi restabelecida, lembrando que Granier promove uma cruzada de “mentiras, calúnias e ódio contra o legítimo e democrático governo de Hugo Chávez”. O texto também repudiou a posição “do Senado brasileiro, que cometeu enorme equívoco ao dar guarida a este golpista”.
Um livro indispensável
Essa lamentável visita confirma a importância e atualidade do livro “Midiático poder: o caso Venezuela e a guerrilha informativa”, do jornalista Renato Rovai, editor da Revista Fórum. A obra surge na hora mais oportuna e ajuda a desmascarar de vez a ação golpista dos meios de comunicação venezuelanos, sempre acobertada pela mídia brasileira. Ela dá detalhes impressionantes dos golpes orquestrados pelos jornais e emissoras de televisão do radicalizado país vizinho. A sua leitura comprova, com fatos, análises e fotos, que o senhor Granier é um mentiroso contumaz e um fascistinha convicto – uma persona non grata para todos que prezam a democracia e não se iludem com a “liberdade de imprensa” dos magnatas da mídia.
Na sua minuciosa pesquisa de mestrado, que serviu de base para o livro, o autor sustenta que não houve apenas um golpe, “midiático-militar”, na Venezuela. “Alguns estudiosos só consideram como tentativa de golpe a ocorrida em 11 de abril de 2002, ocasião em que o presidente Hugo Chávez chegou a ser deposto e encarcerado. Divirjo deles. Entendo e defendo que, nos meses de dezembro de 2002 e janeiro de 2003, teve lugar uma outra investida golpista, mais complexa, mas nem por isso menos totalitária. Com a mídia capitaneando o processo, realizou-se por dois meses uma ação de desabastecimento de bens essenciais de consumo, principalmente para a população mais pobre... Tratou-se um golpe midiático-econômico”.
Foto do neném pelado
O rigoroso levantamento sobre a atuação da mídia venezuelana – expressão radicalizada da conduta deste oligopólio no mundo inteiro – é impressionante e, até, assustador. Rovai mostra como os meios privados assumiram a postura de “partidos da direita” em substituição aos partidos tradicionais e corruptos (AD e Copei), rechaçados na eleição presidencial do final de 1998. Clodovaldo Hernandes, na época editorialista do jornal reacionário El Universal, lembra: “Desde que Hugo Chávez despontou nas pesquisas de opinião, articulou-se uma reação da mídia para impedir o seu crescimento. Quando os meios perceberam que a eleição dele era inevitável, tentaram uma aproximação. Como não conseguiram, voltaram a atacá-los”.
Uma das peças publicitárias usadas pelas televisões na véspera deste pleito mostrava uma cabeça humana sendo cortada e jogada na frigideira com óleo quente. Ao fundo, uma voz anunciava: “Se Chávez ganhar, muita gente vai perder a cabeça”. Apesar da violenta manipulação, 56,24% dos venezuelanos votaram no militar rebelde. Derrotada, a mídia ainda tentou mudar de tática, procurando seduzi-lo. “Recordo-me que fiquei num programa de televisão durante quatro horas ao vivo no dia em que ganhei. Até músicos tocaram harpas. Mostraram uma foto de quando era neném e estava pelado brincando. Nem eu sabia da foto. Fizeram de tudo para me agradar e depois enviaram mensageiros para tentar se aproximar. Mas, quando comecei a escolher o ministério, passaram a me chamar de golpista”, relata o próprio Chávez.
“Una solo voz” golpista
Como não conseguiu seduzir e enquadrar o jovem presidente, a mídia passou a investir freneticamente na preparação do primeiro golpe, “midiático-militar”. Ela inclusive unificou o seu conteúdo jornalístico, num consórcio conhecido como “una sola voz”. “Um repórter faz o trabalho para todos os veículos e o tom editorial é formatado verticalmente. A reportagem é divulgada pelas emissoras com o mesmo enfoque, o que impede contradições... Os talk shows e programas de debate escolhiam a dedo os entrevistados... O direcionamento do conteúdo, por absurdo que possa parecer, chegava até os programas humorísticos, que exploravam as mesmas piadas e preconceitos caricaturais para tratar do presidente”, explica Rovai.
Nas semanas que antecederam ao golpe de 11 de abril de 2002, as emissoras de televisão, jornais e rádios criaram um verdadeiro clima de terror no país. Patrocinaram um locaute patronal e estimularam violentos confrontos em Caracas, que resultaram em várias mortes. As passeatas convocadas para derrubar Chávez “eram acompanhadas por um pool de TVs que trocaram imagens da cobertura. A vinheta utilizada nas emissoras para anunciá-las não deixava dúvida a respeito do tom editorial: ‘ni un paso atrás’. Na marcha do dia 11, a estratégica midiática é ainda mais agressiva. As emissoras RCTV, Venevisión e Globovisión transmitem a marcha ao vivo”, durante quatro horas, suprimindo até as chamadas comerciais.
Confissão do crime ao vivo
O golpe já estava todo planejado. As mortes seriam a senha para a invasão do Palácio Miraflores e para a deposição de Chávez. Um militar golpista, mais empolgado, acabou confessando o plano numa entrevista ao repórter da CNN, Otto Neustald. Diante das câmeras, o almirante Héctor Ramírez afirmou: “O senhor Hugo Chávez Frias traiu o povo e o está massacrando com franco-atiradores. Neste momento já se podem contar seis mortos e dezenas de feridas”. A gravação aconteceu duas horas antes dos conflitos. “Naquele momento, não existiam mortos ou feridos. Nem confronto armado. Tampouco era possível saber da existência de franco-atiradores. Héctor Ramirez e seus colegas golpistas de farda, porém, sabiam de tudo que ia acontecer. Os meios de informação, que esperavam para autorizar-lhe a entrada ao vivo, também”.
O primeiro golpe, entretanto, foi derrotado pelo povo dos morros de Caracas, que não se deixou ludibriar pela ação nefasta da mídia. Rádios comunitárias que sobreviveram à perseguição dos golpistas, celulares, motoboys e internet serviram como instrumentos para convocar a reação popular. Diante da derrota, os veículos privados caíram totalmente no ridículo. “Quando ficou claro que não havia mais como resistir ao contragolpe, o poder midiático dá o espetáculo final. As emissoras de rádio e TV da Venezuela tiram seus sinais do ar e provocam o maior apagão informativo da história da mídia latino-americana até então. Nenhum dos meios comerciais realizou a cobertura da volta de Hugo Chávez ao Palácio Miraflores”.
“Tríplice aliança do mal”
Já no segundo golpe, “midiático-econômico”, os veículos privados apostaram no desabastecimento para desestabilizar o país. O locaute petroleiro, patrocinado pela gerência mafiosa da PDVSA, visou jogar a povo contra o governo. Citando pesquisa da advogada venezuelana-estadunidense Eva Golinger, Rovai lembra que as quatro principais emissoras de TV suspenderam a programação habitual nos 64 dias desta greve patronal, inclusive tirando do ar comerciais, telenovelas e desenhos animados para inserir 17.600 anúncios contra o governo e de convocação da ação de sabotagem da economia. O momento do golpe também foi previamente planejado e teve até um ingrediente internacional, latino-americano.
“Alguns analistas políticos em programas de debates nas televisões diziam, sem meio tom, que se Lula viesse a ser eleito haveria uma aliança entre ele, Hugo Chávez e Fidel Castro. Denominavam o acordo de ‘tríplice aliança do mal’, o que tornaria, na versão desses analistas, impossível a paz na Venezuela e no continente... ‘A oposição começou a trabalhar com esse dado para construir um novo calendário golpista’, comenta o cientista político Elio Fernandes”. Diante do risco desta virada “esquerdizante” na região, “o slogan midiático do novo calendário golpista passa a ser ‘Natal sem Chávez’”. É com este objetivo que a oposição patronal e sua mídia convoca nova “greve geral” contra Chávez para 2 de dezembro de 2002.
O papel da mídia alternativa
Mas, como demonstra Rovai, o líder bolivariano apreendeu com a primeira tentativa de golpe. Percebeu nitidamente que ela havia sido bancada pela mídia hegemônica e não alimentou mais qualquer ilusão e nem vacilou diante deste poder nefasto. O governo venezuelano passou a investir nos meios alternativos de comunicação, estimulando rádios e TVs comunitárias, redistribuindo as verbas publicitárias do estado e investindo pesado nas emissoras estatais e públicas. “Quando a economia foi estrangulada e começou a faltar de tudo no país, desde farinha a gasolina, passando por Coca-Cola e cerveja, essas emissoras divulgaram reportagens e entrevistas que mostravam uma outra versão do que estava acontecendo”.
No segundo golpe, a mídia privada já não dispôs da exclusividade da informação/manipulação. “Chávez tinha onde falar. Diferentemente do golpe midiático-militar, o governo contava tanto com a resistência dos meios de informação alternativa, que se fortaleceram e se multiplicaram após abril de 2002, quanto com o fortalecimento da mídia estatal, que proporcionava nova correlação de forças na disputa midiática”. O poder destes veículos alternativos também foi decisivo no referendo de agosto de 2004, quando a mídia privada voltou a se unir numa campanha sórdida para revogar o mandato de Hugo Chávez. Novamente derrotada, ela acabou se dividindo. A Venevisión, do bilionário Gustavo Cisneros, optou por conter a sua fúria golpista. A RCTV manteve a mesma linha – e agora pagou o preço com o fim da concessão pública.
Marimbondos e rinoceronte
Além de denunciar este nefasto poder, que atua impunemente no mundo inteiro, o livro de Renato Rovai tem como objetivo “chamar a atenção para o debate sobre democratização da mídia e a responsabilidade social dos veículos de informação”. Para o autor, ativo militante dos meios alternativos de comunicação, as novas tecnologias e o avanço da internet têm permitido a construção de redes contra-hegemônicas de informação, identificadas com o movimento altermundista. “Essa nova rede informal pode vir a ser o que costumo definir, utilizando-se de uma metáfora do escritor uruguaio Eduardo Galeano, como um bando de marimbondos que, atuando conjuntamente, poder derrotar um rinoceronte”.
Ao final do livro, Rovai apresenta um mapa detalhado da mídia venezuelana e uma extensa lista de sítios na internet que realizam a “guerrilha informativa” contra a mídia hegemônica. Desta forma, ele conjuga a denúncia implacável com as alternativas e disponibiliza uma obra de valor inestimável para a atualidade. Como afirma Maurício Ayer no prefácio, o livro não é apenas um estudo de caso que denuncia as tramas no país vizinho. “Não só as forças golpistas são globalizadas e se estendem muito além das fronteiras da Venezuela, como também seus ‘métodos de trabalho’ são semelhantes aos utilizados em diferentes partes do mundo”. A nefasta atuação da mídia hegemônica no Brasil confirma esta sábia conclusão!
- Altamiro Borges é jornalista, membro do Comitê Central do PCdoB, editor da revista Debate Sindical e autor do livro “Venezuela: originalidade e ousadia” (Editora Anita Garibaldi, 3ª edição).
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