Caso Lamarca

A mídia e os saudosos da ditadura

17/06/2007
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A decisão da Comissão de Anistia do governo Lula, de fazer uma justiça histórica ao promover para o posto de general o capitão Carlos Lamarca e de indenizar sua família, gerou uma brutal reação da mídia burguesa, que não perde a oportunidade para demonstrar o seu truculento caráter de classe. A revista IstoÉ trouxe uma inoportuna entrevista com o coronel reformado Jarbas Passarinho, ex-ministro dos governos do ditadura, atacando a medida e afirmando, com todas as letras, que “eu faria tudo de novo” – golpe, prisões, torturas e assassinatos de patriotas. Já a TV Globo divulgou a decisão sempre de forma jocosa, como se o guerrilheiro morto na Bahia fosse um monstro e seus algozes fossem os heróis que evitaram a “ditadura comunista”.

As reações mais hidrófobas, entretanto, partiram da revista Veja (sempre ela!) e do jornalão conservador O Estado de S.Paulo. Com o título “bolsa-terrorismo”, o panfleto da famiglia Civita parece ter sido escrito por algum fanático do Comando de Caça aos Comunistas (CCC) remanescente do período do regime militar. O texto é totalmente editorializado, não tem nada de informativo, e revela uma saudade mórbida da ditadura – talvez como gratidão pelos subsídios estatais que viabilizaram a construção do império midiático da Editora Abril. Já no seu blog da Veja, Reinaldo Azevedo, um raivoso mentor “intelectual” do PSDB, abusa dos adjetivos e chavões para atacar as indenizações às vitimas da ditadura militar previstas na Lei da Anistia.

Blog fascista de Reinaldo Azevedo

“Os terroristas não sabiam, mas estavam investindo em seu patrimônio. Ou da família. Até gente que nunca atirou uma pedra com estilingue recebeu indenizações milionárias como ‘vitimas da ditadura’. Lula é um pensionista, imaginem”, debocha o articulista da “nova direita”, esquecendo-se de citar seus amigos tucanos que também foram incluídos na Lei da Anistia. Após confessar que é “anticomunista, o que só pode ser uma doença”, achincalha com a biografia heróica do guerrilheiro. “Lamarca desertou do Exército em 1969 para integrar uma facção terrorista. Abriu mão de ser um militar. Morreu [não diz que foi assassinado] em 1971. Mas a comissão do Ministério da Justiça resolveu ‘promovê-lo’. Promoção por quê? Por ele ter tentado implantar no Brasil um regime que, em caso de sucesso, não teria matado menos de alguns milhões?”.

Reinaldo Azevedo encerra seu texto na Veja, intitulado “a bilionária bolsa-terrorismo paga pelo Brasil”, de maneira infame: “O Brasil não deve nada a esses caras, incluindo a democracia, que eles tanto detestavam”. Esta mentira histórica descarada é um desrespeito a todos que lutaram contra a ditadura militar e merecia a abertura de processos jurídicos de suas vítimas. Até lideranças do PSDB, que tiveram o reconhecido mérito de lutar pela redemocratização do país, deveriam protestar contra este “jornalista” que a mídia apresenta como “mentor tucano”. Do contrário, elas serão cúmplices das sandices deste provocador fascistóide.

Ranço anticomunista do Estadão

Com o mesmo rancor, mas sem se esconder atrás do falso ecletismo das matérias jornalísticas ou dos bem pagos colunistas, o Estadão expôs sua opinião direitista já no editorial “prêmio ao facínora desertor”. Nele o jornalão conservador afirma que “a decisão da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça, concedendo pensão equivalente ao soldo de general-de-brigada à viúva do capitão desertor Carlos Lamarca, ultrapassa todos os limites do bom senso”. Após citar outro intelectual vinculado ao PSDB (baita companhia), Leôncio Martins Rodrigues, que afirma que a indenização “é uma recompensa a quem queria instaurar uma ditadura socialista”, o editorial tenta se colocar acima dos poderes da República, como autêntico “partido da direita”.

Além de criticar o Superior Tribunal de Justiça (STJ), “que considerou, de forma arbitrária e descabida, que Lamarca teria chegado ao posto se tivesse continuado na carreira militar”, o jornal condena as declarações do ministro Tarso Genro, que avaliou como “juridicamente correto e politicamente adequado a concessão do benefício” e chamou Lamarca de “um símbolo da ‘resistência radical’ á ditadura militar”. Lembrando o sombrio período pré-golpe de 64, quando conclamou a indisciplina dos militares, o Estadão afirma que “a promoção póstuma, verdadeiro prêmio ao facínora desertor, constitui uma provocação às Forças Armadas”. Preocupado com o futuro, o jornalão conservador teme a carga simbólica da decisão na juventude brasileira:

Cinismo e ódio de classe

“As sociedades precisam de seus heróis, de figuras históricas que se tornam modelos de comportamento por seus atos de coragem, generosidade e descortino em defesa de valores fundamentais ao interesse coletivo. Tentar colocar o terrorista Carlos Lamarca nessa categoria histórica é pura aberração. Muitos foram os que lutaram contra a ditadura militar... Seguramente, entre esses não estavam Carlos Lamarca, Yara Iavelberg e seus companheiros da VPR ou do MR-8. O que eles queriam era derrubar uma ditadura e implantar outra, mais cruel e liberticida. Reconhecer a exemplaridade da figura de Carlos Lamarca é fazer reconhecimento de valor de seus métodos de luta pelo poder. É particularmente alarmante que isso ocorra no momento crítico em que o uso da violência dos chamados ‘movimentos sociais’ é não só tolerado, mas enaltecido”.

Nada mais revelador da postura direitista e hipócrita da mídia burguesia. Primeiro tenta negar que Lamarca, que abdicou de uma carreira militar meteórica para lutar contra ditadura, seja um exemplo de “coragem e de generosidade” – o que é exatamente o seu caso e não dos amigos fascistas do Estadão. Segundo, o editorial tenta se apossar cinicamente da história dos que lutaram pela democracia - exatamente o mesmo jornal que conclamou o golpe militar de 1964 e silenciou diante das torturas. E, de quebra, ainda ataca os movimentos sociais da atualidade, revelando o ódio de classe da oligárquica família Mesquita aos os que lutaram, ontem e hoje, contra a opressão e a injustiça. Na prática, o Estadão tem saudades da paz do cemitério da ditadura.     

Mentiras da mídia golpista

Num texto carregado de justa indignação, o editor-chefe da Carta Maior, Flávio Aguiar, contesta todos os falaciosos argumentos apresentados pela mídia contra a decisão da Comissão de Anistia. “O primeiro é de que Lamarca era um desertor, um traidor, portanto. Estava fora do exército. Ora, este argumento esbarra na ilegalidade e na ilegitimidade do Estado instalado com o regime de 1964... O regime nazista instituiu o mal como virtude. Em outra escala, é verdade, o regime brasileiro de 1964 fez o mesmo: passaram a ser virtudes a delação, a perseguição, a tortura, a eliminação dos adversários, a censura, a prisão arbitrária... Quantas pessoas tiveram de deixar suas atividades, seus empregos, suas comodidades, por questões de consciência? Lamarca não foi um desertor. Seu gesto foi extremo, é verdade, mas foi motivado em primeiro lugar pelo estado de ilegalidade e ilegitimidade que o país inteiro vivia”.

“O segundo argumento é o de que Lamarca ‘morreu em combate’, e isso é dos azares de quem optou pela luta armada. Ele não estava preso, como, por exemplo, o jornalista Vladimir Herzog, outro ‘suicidado’ pela ditadura. O argumento foge completamente ao espírito de qualquer anistia, mesmo a parcial imposta pela ditadura. Ainda assim ele esbarra na constatação óbvia de que o fim de Lamarca fora decretado antes, como fica evidente pelo modo como ele foi morto, sem chance de defesa nem de fuga, até com dificuldade para andar... Lamarca foi varado por sete tiros ‘ao se levantar’, deitado que estava, prostrado pela exaustão. Em nenhum momento falou-se em qualquer reação, o que mostra que a sentença já estava lavrada”.

“O terceiro levanta dúvidas sobre a natureza da luta de Lamarca. Ele não estaria lutando ‘pela democracia’, mas para instalar uma ‘república socialista’, ou seja, a famosa ou famigerada ditadura do proletariado. Mas este argumento morde o próprio rabo. Fossem quais fossem suas convicções, Lamarca lutava por elas sim, mas lutava também pelo direito dos cidadãos brasileiros terem convicções e poderem exercê-las. A presunção de que isso levaria a tal ou qual beco sem saída ou com outras saídas da história é apenas e nada mais que isso: uma presunção. Havia uma ditadura de fato, a que conhecemos e que hoje qualquer brasileiro de bem deve execrar... Não se pode julgar alguém pelo crime que não teve oportunidade de cometer”.

- Altamiro Borges é jornalista, membro do Comitê Central do PCdoB, editor da revista Debate Sindical e autor do livro “As encruzilhadas do sindicalismo” (Editora Anita Garibaldi, 2ª edição).
https://www.alainet.org/pt/articulo/121730
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