Missa do Galo

22/12/2005
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Natal é uma festa polissêmica. De certo modo, desconfortável. Para os
cristãos, comemoração do nascimento de Jesus, Deus feito homem. Para a
indústria e o comércio, privilegiada ocasião de promissoras vendas. Para
uns tantos, miniférias de fim de ano. Para o peru, dia de finados.

O desconforto resulta da obrigatoriedade de dar presentes a quem não
amamos, mal conhecemos ou fingimos amizade. Transferido o presépio de
Belém para o balcão das lojas, substituído Jesus por Papai Noel, a festa
perde progressivamente seu caráter religioso. O Menino da manjedoura,
que evoca o sentido da existência, cede lugar ao velho barbudo e
barrigudo, que simboliza o fetiche da mercadoria.

O olhar desavisado diria que o consumismo hedonista despe-nos da
religiosidade. A Missa do Galo, outrora à meia-noite de 25 de dezembro,
reduz-se ao galeto das celebrações, às oito ou nove da noite,
antecipando-se à madrugada que favorece a violência urbana. O apetite da
ceia e a curiosidade em abrir presentes falam mais alto que bons e
velhos costumes: a oração em família, os cânticos litúrgicos, as
narrativas bíblicas e a memória dos eventos paradigmáticos de Belém da
Judéia.

Uma atualização dos eventos bíblicos permite-nos imaginar, a partir
do contexto brasileiro, o leitor do /Diário de Belém/, edição de 26 de
dezembro de 1, perante a seguinte notícia: "Família de sem-terra ocupou
ontem a fazenda Estrela de Davi, em cujo curral uma tal Maria, esposa do
carpinteiro José, deu à luz o filho Jesus. A polícia de Herodes está no
encalço dos sem-terra, que se encontram foragidos."

A abstração da linguagem, contudo, faz do pseudolirismo natalino o
inverso do que o fato histórico significa - o Verbo encarnado perde sua
contundência e cede lugar ao presépio descontextualizado, mero adorno à
festa papainoélica.

Em "Memórias de Adriano", Marguerite Yourcenar capta um momento
singular da história do Ocidente, o século II - os deuses do Olimpo
grego e do Panteão romano declinavam e a moral cristã, impregnada de
platonismo, ainda não se impunha às consciências.

Vivemos hoje algo parecido. Assolados por fortes ventos esotéricos,
numa época epifânica, em que as religiões tendem a ocupar o lugar
deixado pelas ideologias messiânicas, assistimos à crise das Igrejas
tradicionais, encerradas num monólogo ininteligível para o contexto de
pluralismo e tolerância com o diferente. A perplexidade assemelha-se à
da professora de piano clássico que vê seus alunos preferirem os
metaleiros.

Proliferam-se novas modalidades de aspirar ao Transcendente, da
aeróbica litúrgica às meditações orientais. Nunca houve, na expressão de
Rimbaud, tanta "gula de Deus". I Ching, astrologia, búzios, tarô etc.,
são vias pelas quais se tenta encontrar segurança diante do futuro
imprevisível. Agora, já não há tanto interesse pelas religiões das
grandes narrativas bíblicas, da santidade ascética, da autoridade
sacralizada, da moral coercitiva, da escatologia que nos faz trafegar,
titubeantes, sobre o fio invisível que liga o Céu ao Inferno.

Predominam as religiões do consolo subjetivo, da alegria d'alma, da
cura imediata, dos fenômenos paranormais, da comunidade que se sente
resgatada do anonimato, de bênçãos e graças que jorram quais juros de
quem acredita na versão pós-moderna do dilema "a bolsa ou a vida".
Vigora a religiosidade "prêt-à-porter", sem culpas, macroecumênica,
fundada na crença em um Deus que dispensa hierarquias, manifesta-se
pelas regras de ouro do marketing e tolera todas as nossas incoerências.

Talvez não haja, na literatura brasileira, quem melhor tenha captado
o sentido do Natal que Machado de Assis, no clássico conto "Missa do
Galo". Não há propriamente missa, apenas a espera ansiosa num serão que
progressivamente transmuta, aos olhos de Nogueira, rapaz de 17 anos, a
anfitriã Conceição, que atingira os 30. Machado faz do coração do jovem
narrador um profundo e aquiescente presépio, onde a vida renasce no
sutil milagre do amor desinteressado. Um gosto de eternidade. De eterna
idade. No entanto, quebrado pelo tempo que flui incoercível ao ritmo
implacável das horas. Na sala, a missa em torno da musa antecede e
realiza a comunhão, eclodindo na beleza de um singelo encontro entre
duas pessoas.

Isso é Natal. Uma festa rara no mais profundo de si mesmo, na qual as
pessoas se fazem presentes umas às outras e entre as quais o amor
refulge como uma estrela. Essa festa não tem data e é celebrada,
repete-se sempre que há encontro em clima de afeto e sabor de comunhão.
Ali, as palavras são como barbante de presente desfeito pelas mãos de
uma criança: a cada nó desfeito, uma expectativa de surpreendente
revelação.

- Frei Betto é escritor, autor de "Comer como um frade - divinas receitas para quem sabe por que temos um céu na boca" (José Olympio), entre
outros livros.
https://www.alainet.org/pt/articulo/119390
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