Cidadania, nacionalidade e identidade num mundo de migração internacional
08/11/2006
- Opinión
Num mundo contemporâneo marcado por crescentes migrações internacionais e por uma transnacionalidade que permite às pessoas mudarem de um país para o outro sem necessariamente aderir a uma nova cultura e realidade, os Estados e as sociedades se questionam sobre os efeitos desses movimentos para a coesão social e para o próprio conceito de cidadania e de pertencimento a uma dada sociedade. Vários exemplos atuais permitem percebem como o tópico está na agenda dos mais diferentes países dentro do mundo ocidental.
Nos Estados Unidos, por exemplo, setores mais conservadores questionam se a contínua imigração, especialmente de latinos, não significa uma perda da identidade nacional e a criação de uma América dividida em guetos. O mesmo questionamento se dá na Europa, onde os mesmos setores apresentam a imigração muçulmana como inassimilável e, portanto, como criadora de problemas para as sociedades européias.
Na Holanda, por exemplo, começa-se a questionar a idéia do multiculturalismo e advoga-se que os candidatos a imigrantes respondam a testes que indiquem se eles têm condições de absorver os valores da sociedade holandesa. Já na Itália, há um movimento não para eliminar os direitos dos descendentes de italianos de readquirirem a cidadania italiana, mas para que, destes, seja exigido ao menos o domínio da língua e da cultura dos ancestrais. Em resumo, os principais países de imigração estão cada dia mais preocupados com o seu impacto na coesão social e no equilíbrio étnico dentro de suas sociedades.
Todas estas objeções à imigração têm que ser vistas com cuidado. Ao contrário do apregoado pela direita européia e norte-americana, os imigrantes não são os culpados de todos os males daquelas sociedades hoje e, pelo contrário, colaboram, com o seu trabalho, para que estas mantenham o seu crescimento econômico e serviços essenciais. Depois, parece evidente que “testes” para imigrantes ou outras medidas desse tipo são, no mínimo, questionáveis em sua eficácia. Além disso, é questionável se os latinos e árabes que imigram para o Primeiro Mundo são tão inassimiláveis assim. Afirmar isto é mais uma arma para o jogo político e para a defesa de barreiras ainda mais fortes contra os imigrantes do que outra coisa. Ainda assim, é possível reconhecer que a imigração tem colocado em cheque certos valores caros aos Estados-nação modernos.
Isso tem ocorrido, em boa medida, porque a imigração no mundo atual é um pouco diferente da que ocorria nos séculos anteriores. Muitos dos italianos e alemães que foram para os Estados Unidos no século XIX ou de poloneses que se deslocaram para a França no século XX tinham a perspectiva de permanecerem pouco tempo no país (o necessário para fazer fortuna) e tinham pouco, ou nenhum interesse, em se assimilarem ou se tornarem cidadãos norte-americanos ou franceses. Muitos acabavam por faze-lo, especialmente no tocante aos seus filhos nascidos no novo país, mas não era a regra geral. Ou seja, já naquela época, a idéia de movimentos transnacionais e de identidades múltiplas não era desconhecida.
Nos últimos anos, contudo, com o processo de globalização e a melhora do sistema de comunicações e transportes globais, essa situação se radicalizou. Para os atuais imigrantes que se dirigem aos Estados Unidos ou à Europa (como filipinos, mexicanos e árabes), a possibilidade de evitar a assimilação, indo e voltando entre seus países de origem e os de chegada, usufruindo as facilidades de manutenção de contato com a cultura de origem via mídia moderna e criando identidades e interesses móveis e transnacionais é muito maior. Além disso, esses novos imigrantes são, racial e culturalmente falando, muito mais diversos do que os antigos, o que aumenta o potencial para conflitos e tensões dentro dessas sociedades.
Assim, o problema da incorporação desses imigrantes na Europa e na América do Norte é uma via de mão dupla. Que há racismo e pouca vontade de aceitação do “outro” dentro das sociedades ocidentais, é impossível negar. Mas ao menos uma parte dos recém chegados quer manter alguns aspectos da sua cultura que, para os ocidentais, são inaceitáveis, o que gera inevitavelmente conflitos.
É óbvio que a solução, aqui, é aceitar o pluralismo cultural. Tudo seria mais fácil se os povos dos países de imigração aceitassem o fato de que os imigrantes não são como eles e que a chegada do “diferente” apenas enriquece a cultura e a economia locais. Tolerância e esforço de inclusão são as palavras chave nesse mundo de deslocamento populacional maciço.
Por outro lado, é ilógico imaginar que os países que acolhem imigrantes não possam ter regras mínimas sobre quantos e quais imigrantes serão aceitos e sobre quais serão as regras mínimas de convivência entre todos. Nenhum país do mundo pode ter uma política de abertura total aos fluxos imigratórios globais (a não ser, claro, aqueles miseráveis para onde ninguém quer ir) ou uma política de multiculturalismo absoluto, como se cada comunidade pudesse viver segundo suas próprias regras.
Realmente, se alguém decide ir viver num outro país e numa outra sociedade, deve ter todo o direito de manter a sua cultura, mas também deve estar pronto a aceitar minimamente as regras da maioria, especialmente no aspecto jurídico e na convivência cotidiana. Do contrário, serão formadas sociedades onde todos, formalmente, serão cidadãos sujeitos as mesmas regras, mas onde, na prática, cada grupo vive como quer, com os inevitáveis conflitos surgindo.
Assim, os italianos provavelmente estarão corretos se começarem a pedir, aos descendentes de italianos, que aprendam a língua nacional antes de pedirem a cidadania. E os britânicos talvez tenham o direito de se sentirem indignados quando radicais islâmicos, recebidos como refugiados na Inglaterra, façam discursos proclamando o ódio aos próprios ingleses ou ao seu modo de vida.
O vai e vem das pessoas entre os vários Estados também leva a questionamentos sobre a questão da cidadania. Em julho de 2006, por exemplo, o jornalista canadense Kenneth Kidd publicou um interessante artigo (“From 'citizen' to 'passport'. Belonging to a country used to mean something. Is that still possible in the 21st century?”. Toronto Star, 30/7/2006), no qual ele faz interessantes reflexões sobre o significado da cidadania no mundo contemporâneo. Seu ponto de partida foi o movimento de tropas canadenses durante o último conflito do Líbano para o resgate dos cidadãos canadenses lá residentes. O problema, para ele, é que alguns desses cidadãos eram filhos de libaneses nascidos no Canadá e que tinham ido para o Líbano quando crianças. O questionamento era: o Estado canadense tinha a obrigação de resgata-los? Ou a canadenses que moravam há décadas em New Orleans durante a passagem do Katrina?
O questionamento dos canadenses, na verdade, se aplica a outros países, como o Brasil. Pessoas questionaram se era dever do governo brasileiro, justamente durante os acontecimentos do Líbano e na Lousiana, resgatar pessoas que, mesmo com passaporte brasileiro, estavam longe do Brasil há muito e, muitas vezes, nem tinham vivido aqui.
É uma questão complexa. Em termos jurídicos, é claro que o dever existia. Mas a transformação da cidadania (que implica, ao menos em teoria, em participação política, pagamento de impostos, vivência no país do qual se desfruta a cidadania e um certo senso de pertencimento) em um direito que pode ser usufruído a distância, através da dupla cidadania ou da posse de um passaporte estrangeiro (cada vez mais comuns, a propósito), complica bastante as coisas.
Essas questões jurídicas não são exatamente novas, mas refletem os problemas de um mundo em movimento, no qual pessoas com múltiplas identidades (culturais, étnicas, jurídicas e mesmo nacionais) circulam e convivem entre si, gerando demandas e questionamentos por parte dos Estados. Questionamentos, como já ressaltado, nem de longe novos, mas que estão se tornando mais complexos.
Não sei, claro, como os Estados e sociedades resolverão essas questões e se caminharemos para um esforço maior de homogeneização em cada Estado ou para uma identidade e cidadania globais. Mas que são questões centrais para esse mundo do século XXI, não resta a menor dúvida.
João Fábio Bertonha
Doutor em História e Docente na Universidade Estadual de Maringá
Fonte: Revista Espaço Acadêmico
Revista Mensal - Nº 66 - Novembro de 2006 - ANO VI - ISSN: 1519.6186
http://www.espacoacademico.com.br
Nos Estados Unidos, por exemplo, setores mais conservadores questionam se a contínua imigração, especialmente de latinos, não significa uma perda da identidade nacional e a criação de uma América dividida em guetos. O mesmo questionamento se dá na Europa, onde os mesmos setores apresentam a imigração muçulmana como inassimilável e, portanto, como criadora de problemas para as sociedades européias.
Na Holanda, por exemplo, começa-se a questionar a idéia do multiculturalismo e advoga-se que os candidatos a imigrantes respondam a testes que indiquem se eles têm condições de absorver os valores da sociedade holandesa. Já na Itália, há um movimento não para eliminar os direitos dos descendentes de italianos de readquirirem a cidadania italiana, mas para que, destes, seja exigido ao menos o domínio da língua e da cultura dos ancestrais. Em resumo, os principais países de imigração estão cada dia mais preocupados com o seu impacto na coesão social e no equilíbrio étnico dentro de suas sociedades.
Todas estas objeções à imigração têm que ser vistas com cuidado. Ao contrário do apregoado pela direita européia e norte-americana, os imigrantes não são os culpados de todos os males daquelas sociedades hoje e, pelo contrário, colaboram, com o seu trabalho, para que estas mantenham o seu crescimento econômico e serviços essenciais. Depois, parece evidente que “testes” para imigrantes ou outras medidas desse tipo são, no mínimo, questionáveis em sua eficácia. Além disso, é questionável se os latinos e árabes que imigram para o Primeiro Mundo são tão inassimiláveis assim. Afirmar isto é mais uma arma para o jogo político e para a defesa de barreiras ainda mais fortes contra os imigrantes do que outra coisa. Ainda assim, é possível reconhecer que a imigração tem colocado em cheque certos valores caros aos Estados-nação modernos.
Isso tem ocorrido, em boa medida, porque a imigração no mundo atual é um pouco diferente da que ocorria nos séculos anteriores. Muitos dos italianos e alemães que foram para os Estados Unidos no século XIX ou de poloneses que se deslocaram para a França no século XX tinham a perspectiva de permanecerem pouco tempo no país (o necessário para fazer fortuna) e tinham pouco, ou nenhum interesse, em se assimilarem ou se tornarem cidadãos norte-americanos ou franceses. Muitos acabavam por faze-lo, especialmente no tocante aos seus filhos nascidos no novo país, mas não era a regra geral. Ou seja, já naquela época, a idéia de movimentos transnacionais e de identidades múltiplas não era desconhecida.
Nos últimos anos, contudo, com o processo de globalização e a melhora do sistema de comunicações e transportes globais, essa situação se radicalizou. Para os atuais imigrantes que se dirigem aos Estados Unidos ou à Europa (como filipinos, mexicanos e árabes), a possibilidade de evitar a assimilação, indo e voltando entre seus países de origem e os de chegada, usufruindo as facilidades de manutenção de contato com a cultura de origem via mídia moderna e criando identidades e interesses móveis e transnacionais é muito maior. Além disso, esses novos imigrantes são, racial e culturalmente falando, muito mais diversos do que os antigos, o que aumenta o potencial para conflitos e tensões dentro dessas sociedades.
Assim, o problema da incorporação desses imigrantes na Europa e na América do Norte é uma via de mão dupla. Que há racismo e pouca vontade de aceitação do “outro” dentro das sociedades ocidentais, é impossível negar. Mas ao menos uma parte dos recém chegados quer manter alguns aspectos da sua cultura que, para os ocidentais, são inaceitáveis, o que gera inevitavelmente conflitos.
É óbvio que a solução, aqui, é aceitar o pluralismo cultural. Tudo seria mais fácil se os povos dos países de imigração aceitassem o fato de que os imigrantes não são como eles e que a chegada do “diferente” apenas enriquece a cultura e a economia locais. Tolerância e esforço de inclusão são as palavras chave nesse mundo de deslocamento populacional maciço.
Por outro lado, é ilógico imaginar que os países que acolhem imigrantes não possam ter regras mínimas sobre quantos e quais imigrantes serão aceitos e sobre quais serão as regras mínimas de convivência entre todos. Nenhum país do mundo pode ter uma política de abertura total aos fluxos imigratórios globais (a não ser, claro, aqueles miseráveis para onde ninguém quer ir) ou uma política de multiculturalismo absoluto, como se cada comunidade pudesse viver segundo suas próprias regras.
Realmente, se alguém decide ir viver num outro país e numa outra sociedade, deve ter todo o direito de manter a sua cultura, mas também deve estar pronto a aceitar minimamente as regras da maioria, especialmente no aspecto jurídico e na convivência cotidiana. Do contrário, serão formadas sociedades onde todos, formalmente, serão cidadãos sujeitos as mesmas regras, mas onde, na prática, cada grupo vive como quer, com os inevitáveis conflitos surgindo.
Assim, os italianos provavelmente estarão corretos se começarem a pedir, aos descendentes de italianos, que aprendam a língua nacional antes de pedirem a cidadania. E os britânicos talvez tenham o direito de se sentirem indignados quando radicais islâmicos, recebidos como refugiados na Inglaterra, façam discursos proclamando o ódio aos próprios ingleses ou ao seu modo de vida.
O vai e vem das pessoas entre os vários Estados também leva a questionamentos sobre a questão da cidadania. Em julho de 2006, por exemplo, o jornalista canadense Kenneth Kidd publicou um interessante artigo (“From 'citizen' to 'passport'. Belonging to a country used to mean something. Is that still possible in the 21st century?”. Toronto Star, 30/7/2006), no qual ele faz interessantes reflexões sobre o significado da cidadania no mundo contemporâneo. Seu ponto de partida foi o movimento de tropas canadenses durante o último conflito do Líbano para o resgate dos cidadãos canadenses lá residentes. O problema, para ele, é que alguns desses cidadãos eram filhos de libaneses nascidos no Canadá e que tinham ido para o Líbano quando crianças. O questionamento era: o Estado canadense tinha a obrigação de resgata-los? Ou a canadenses que moravam há décadas em New Orleans durante a passagem do Katrina?
O questionamento dos canadenses, na verdade, se aplica a outros países, como o Brasil. Pessoas questionaram se era dever do governo brasileiro, justamente durante os acontecimentos do Líbano e na Lousiana, resgatar pessoas que, mesmo com passaporte brasileiro, estavam longe do Brasil há muito e, muitas vezes, nem tinham vivido aqui.
É uma questão complexa. Em termos jurídicos, é claro que o dever existia. Mas a transformação da cidadania (que implica, ao menos em teoria, em participação política, pagamento de impostos, vivência no país do qual se desfruta a cidadania e um certo senso de pertencimento) em um direito que pode ser usufruído a distância, através da dupla cidadania ou da posse de um passaporte estrangeiro (cada vez mais comuns, a propósito), complica bastante as coisas.
Essas questões jurídicas não são exatamente novas, mas refletem os problemas de um mundo em movimento, no qual pessoas com múltiplas identidades (culturais, étnicas, jurídicas e mesmo nacionais) circulam e convivem entre si, gerando demandas e questionamentos por parte dos Estados. Questionamentos, como já ressaltado, nem de longe novos, mas que estão se tornando mais complexos.
Não sei, claro, como os Estados e sociedades resolverão essas questões e se caminharemos para um esforço maior de homogeneização em cada Estado ou para uma identidade e cidadania globais. Mas que são questões centrais para esse mundo do século XXI, não resta a menor dúvida.
João Fábio Bertonha
Doutor em História e Docente na Universidade Estadual de Maringá
Fonte: Revista Espaço Acadêmico
Revista Mensal - Nº 66 - Novembro de 2006 - ANO VI - ISSN: 1519.6186
http://www.espacoacademico.com.br
https://www.alainet.org/pt/articulo/118075