Entre fechaduras e rinocerontes
30/10/2006
- Opinión
Há em mim uma legião de auroras. Nem sei como numa alma tão conturbada pode florescer essa luminescência que cega os olhos do espírito. Talvez seja isso a noite escura cantada agonicamente pelos místicos. Talvez seja a perfeição do olhar. É como estar sedento frente ao mar. Água, muita água, e no entanto dela não se pode beber. Só contemplar a pele ondulosa do Planeta, essa voracidade oceânica que devora todos os meus sonhos.
Por mais que eu resista, o aluvião me corrói por dentro. Às vezes tenho ganas de descrer de todas as auroras ou acreditar que não passam de fogo-fátuo em meu oblíquo horizonte. Oh sofreguidão! O mundo lá fora engrenado em suas cobiças, essa luta insana pela sobrevivência animal e eu aqui, no apartamento 704 do Hotel Donatello, em Modena, em pleno abril chuvoso, tentando me abrigar do frio que faz dentro de mim.
É isso, não consigo ver o que os outros enxergam, não consigo rir do que os outros acham graça, não consigo deixar de ser eu mesmo, desconfiado, taciturno, porque são muitas as minhas cismas. Por exemplo, coleciono fechaduras e fotos de rinocerontes. Fechaduras, é obvio, servem para fechar, porque o ser humano não suporta a transparência. Precisa sempre se cobrir: de pêlo, máscaras, teto, muro, porque a nudez é uma arte que exige talento. Ainda que um homem e uma mulher estejam sem roupas, trancados num quarto, entregues às infinitas possibilidades do jogo erótico, não significa que estejam nus. Estão despidos. Nudez é outra coisa. É enfiar a faca até o cabo, arrebatar a lua com as mãos, destampar todos os recônditos da alma, os mais obscuros e ínfimos. Se nem suportamos ficar nus diante de nós mesmos, quanto mais diante dos outros! Por isso as fechaduras deveriam estar de língua recolhida, mas quase sempre elas se projetam interditando-nos.
Por que fotos de rinocerontes? Faz tempo sonhei que eu era um rinoceronte, daqueles enormes que pesam toneladas. Locomovia-me com muita dificuldade, o que exigia paciência de todos à minha volta. Ao atravessar uma rua, eu me encontrava a meio caminho quando o sinal abria, irritando os motoristas; no cinema, precisava ocupar meia fila de cadeiras; no restaurante, comia metade do bufê.
Gosto das esferas elegíacas. Da arte que não exprime lamento, dos primitivistas que ponteiam suas telas com o talento que supera todas as formalidades acadêmicas. Sou por eflorescências. Quase toda semana irrompem em mim vulcânicas primaveras. São flores de fogo. Procuro fixá-las em retábulos e, no exercício de iluminuras, copiá-las em pergaminhos. Porque só flores e borboletas superam as obras-primas da arte universal. Mas não sou dado a caçar borboletas.
Não me agradam as idéias ajaezadas. Prefiro-as despojadas, diretas, translúcidas. Há dias em que me recolho à biblioteca do mosteiro em que vivo e passo horas contemplando iluminuras de manuscritos antigos.
Eis que me apareceu em sonhos um homem cujos sapatos tinham bicos finos e longos; na cintura, profusão de laços; as mangas eram tufadas como balões e os punhos de renda. Ele estava de pé num salão fechado por cortinas de cores brilhantes, pontilhadas de estrelas de ouro entre espaços vazios cheios de sóis. Em volta, capitéis e um pesado brasonário. E ele sabia que a ataraxia é uma propriedade das mais belas esculturas.
Súbito, ele começou a dançar em movimento suaves. Não havia música, apenas uma orquestra invisível de rinocerantes imensos e diminutos, gordos e delgados, altos e baixos, pesados e lépidos. Todos traziam fechaduras em suas patas arredondadas e ao abri-las e fechá-las imprimiam o ritmo que conduzia o dançarino. Acordado do outro lado do sonho, fiquei a me perguntar se tamanha ilogicidade que preside as emanações do inconsciente não seria a verdadeira lógica que a razão tanto teme e repudia.
Só então compreendi porque René Descartes foi encontrado morto na Biblioteca Nacional, em Buenos Aires. Uma fina espátula prateada atravessava-lhe o coração. Suspeita-se que o assassino chama-se Jorge Luis Borges, mais conhecido pela alcunha de “El Brujo”.
- Frei Betto é escritor, autor de “Treze contos diabólicos e um angélico” (Planeta), entre outros livros.
Por mais que eu resista, o aluvião me corrói por dentro. Às vezes tenho ganas de descrer de todas as auroras ou acreditar que não passam de fogo-fátuo em meu oblíquo horizonte. Oh sofreguidão! O mundo lá fora engrenado em suas cobiças, essa luta insana pela sobrevivência animal e eu aqui, no apartamento 704 do Hotel Donatello, em Modena, em pleno abril chuvoso, tentando me abrigar do frio que faz dentro de mim.
É isso, não consigo ver o que os outros enxergam, não consigo rir do que os outros acham graça, não consigo deixar de ser eu mesmo, desconfiado, taciturno, porque são muitas as minhas cismas. Por exemplo, coleciono fechaduras e fotos de rinocerontes. Fechaduras, é obvio, servem para fechar, porque o ser humano não suporta a transparência. Precisa sempre se cobrir: de pêlo, máscaras, teto, muro, porque a nudez é uma arte que exige talento. Ainda que um homem e uma mulher estejam sem roupas, trancados num quarto, entregues às infinitas possibilidades do jogo erótico, não significa que estejam nus. Estão despidos. Nudez é outra coisa. É enfiar a faca até o cabo, arrebatar a lua com as mãos, destampar todos os recônditos da alma, os mais obscuros e ínfimos. Se nem suportamos ficar nus diante de nós mesmos, quanto mais diante dos outros! Por isso as fechaduras deveriam estar de língua recolhida, mas quase sempre elas se projetam interditando-nos.
Por que fotos de rinocerontes? Faz tempo sonhei que eu era um rinoceronte, daqueles enormes que pesam toneladas. Locomovia-me com muita dificuldade, o que exigia paciência de todos à minha volta. Ao atravessar uma rua, eu me encontrava a meio caminho quando o sinal abria, irritando os motoristas; no cinema, precisava ocupar meia fila de cadeiras; no restaurante, comia metade do bufê.
Gosto das esferas elegíacas. Da arte que não exprime lamento, dos primitivistas que ponteiam suas telas com o talento que supera todas as formalidades acadêmicas. Sou por eflorescências. Quase toda semana irrompem em mim vulcânicas primaveras. São flores de fogo. Procuro fixá-las em retábulos e, no exercício de iluminuras, copiá-las em pergaminhos. Porque só flores e borboletas superam as obras-primas da arte universal. Mas não sou dado a caçar borboletas.
Não me agradam as idéias ajaezadas. Prefiro-as despojadas, diretas, translúcidas. Há dias em que me recolho à biblioteca do mosteiro em que vivo e passo horas contemplando iluminuras de manuscritos antigos.
Eis que me apareceu em sonhos um homem cujos sapatos tinham bicos finos e longos; na cintura, profusão de laços; as mangas eram tufadas como balões e os punhos de renda. Ele estava de pé num salão fechado por cortinas de cores brilhantes, pontilhadas de estrelas de ouro entre espaços vazios cheios de sóis. Em volta, capitéis e um pesado brasonário. E ele sabia que a ataraxia é uma propriedade das mais belas esculturas.
Súbito, ele começou a dançar em movimento suaves. Não havia música, apenas uma orquestra invisível de rinocerantes imensos e diminutos, gordos e delgados, altos e baixos, pesados e lépidos. Todos traziam fechaduras em suas patas arredondadas e ao abri-las e fechá-las imprimiam o ritmo que conduzia o dançarino. Acordado do outro lado do sonho, fiquei a me perguntar se tamanha ilogicidade que preside as emanações do inconsciente não seria a verdadeira lógica que a razão tanto teme e repudia.
Só então compreendi porque René Descartes foi encontrado morto na Biblioteca Nacional, em Buenos Aires. Uma fina espátula prateada atravessava-lhe o coração. Suspeita-se que o assassino chama-se Jorge Luis Borges, mais conhecido pela alcunha de “El Brujo”.
- Frei Betto é escritor, autor de “Treze contos diabólicos e um angélico” (Planeta), entre outros livros.
https://www.alainet.org/pt/articulo/117910
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