Aviso de incêndio
03/01/2006
- Opinión
Ele prendeu aquele desenho de John Lennon na parede e lá ficou por anos e anos a fio. A mais notória de todas as suas frases “Dê uma chance à paz” podia ser lida um pouco abaixo. Um quadro pregado à parede como forma de homenagear John depois de seu assassinato. Reputaria esta homenagem mais ao pacifismo do ex-beatle do que ao valor de sua obra estética. A sua frase seria daquelas que todos apreciam por ser universal. Todos aceitam como dito justo e nobre. Exemplar. Só os que lucram com a guerra não preconizariam a paz.
Havia aqueles que, no entanto, lendo a frase nada estalava na mente. Eles forçavam um sorriso meio sem-graça, pedindo pelo amor de Deus para que ninguém lhes perguntasse sobre o quadro ou sobre a frase. Sim, o máximo, responderiam. Quem responde não sei ou que duvida da Frase cunhada pelo porta-voz de uma geração idealista como a dos anos 60 paga com o inferno existencial dos chatos descrentes ou o inferno existencial dos cínicos.
Responder que não sei ou que duvida não implica que os respondões sejam chatos descrentes ou cínicos - talvez só a desconfiança de que a universalidade apontada no discurso de John Lennon significasse algo para a cultura anglo-saxônica, cansada de conflitos, não para um país ainda imaturo e imberbe como o Brasil, no qual conflitos sobram, explicitamente ou disfarçadamente. Aquiescer o discurso, não de John Lennon, presente no nosso cotidiano e na mídia que conflitos só nas telas de cinemas ou em jogos eletrônicos – o cinema americano se infantilizando nos anos 80 como forma de ser. Empurrar para onde o excedente de trabalhadores que ficam desempregados a cada ano pela modernização da economia? Que funções na sociedade capitalista servirão a esses desqualificados tecnológicos? Empurrando para bem longe, onde podem ocupar áreas desocupadas e desestruturadas, serão chamados para funções de pedreiro, de empregada doméstica, de garota de programa, gari, vendedor e policial militar. Morando na periferia e trabalhando na cidade que vive dos e para os negócios, estes trabalhadores levarão e voltarão com notícias de ambos os lados da ponte. Sofrerão por se dividirem em mundos completamente desafeitos um em relação ao outro. Sofrerão por não serem puros-sangues onde moram ou puros-sangues onde trabalham. Ideologicamente se afinam com seus patrões. Culturalmente se afinam com os mais pobres.
Numa época em que o culto ao e o desejo do corpo arrebatam toda a sociedade, pela prática ou, simplesmente, pelo voyeurismo, o exemplo da garota de programa é paradigmático da relação capital-trabalho como externa George Steiner em seu texto “A viagem crepuscular de Walter Benjamin”: “...a prostituta encarna fantasias arquetípicas de Eros, de intimidades a serem “colhidas” e “é também o agente emblemático na polêmica marxista sobre a escravidão do capitalismo em seu aspecto mais indecente...”. Ampliaríamos essa análise para outras personagens que zanzam de um espaço para o outro da hierarquia social se identificando ora com um ora com outro, esse zanzar esquizofrênico de acordo com as vantagens recebidas no traquejar das relações.
Simplificaríamos muito a discussão afirmando que um empregado defenderia seu patrão ou o sistema só pelas gratificações ou pelas vantagens. Não é bem assim. Muitos crêem, do fundo da alma, que uma pessoa, uma empresa ou um sistema político-econômico tem super-poderes o bastante para mudar as suas vidas. Obedecem as ordens e saem repetindo as mesmas ordens como se fossem suas. Nesses casos a ideologia do poder está acima de qualquer lógica individual. Bem acima.
Nessas condições, a garota de programa, ou outras profissões de leva e traz, essas de não terem ideologias próprias, se vê como uma profissional singular, em razão de receber de e dar ordens aos seus clientes. A propósito disso George Steiner, decifrando a prostituição, escreveu: “A prostituição dá poder à industrialização, à tecnocracia de Eros. Mas também se relaciona à subversão e à paródia dos racionalismos e valores no cassino dos capitalistas-burgueses”. Uma profissão paradoxal: ela espreita a clientela da passagem onde se posiciona para ser melhor ser espreitada por seus futuros clientes. Muito do jogo de sedução embute um desejo de consumir o outro. A relação entre capitalismo, consumismo e prostituição na França do século XIX foi exposta por Walter Benjamin em vários dos seus escritos, dentre eles “A Obra das Passagens”.
Profissional das passagens, a garota de programa, ou prostituta, além de ser uma profissional do sexo também é uma profissional midiática. Os seus contatos vão do estudante de segundo grau até o ricaço. Aquele ou aquela que não está na lista vai estar futuramente. O senhor tímido que pouco fala e nunca se atreveu a dizer o nome, nem esse escapa da sua mira. Esse poder comunicativo favorece em seus negócios, pois, sem mais delongas, cativa com um carinho ou com uma palavra amorosa quem está refratário. Contudo, ela não está imune a se envolver em confusões do tipo que se envolve quando os olhos estão vendados e os ouvidos estão surdos para qualquer aviso. Uma prostituta se interferiu na possível morte do personagem de Tom Cruise em “De olhos bem fechados”, filme de Stanley Kubrick. Amanheceu morta, de overdose, provavelmente, provocada pelos seus patrões que cobraram um preço bem alto pela intromissão. Em cena contracenada com Sidney Pollack, Tom Cruise, que salvara a prostituta de outra overdose, no começo Vida real, o Ministro do Interior da França nomeou os jovens que tacavam fogo nos carrões de escória. Moradores das periferias, a França tem periferia, estes jovens são descendentes de argelinos que se mudaram da sua terra natal na década de cinqüenta. Desempregados, o único jeito de levar a vida é assaltar e traficar.
Contudo, depois da morte de dois jovens que fugiam da perseguição da polícia francesa, a “escória” resolveu virar a mesa, de um jeito inaudito. Queimar carros, trezentos a noite toda, sinalizaria uma coisa de moleque, daquele tipo que manda para cucuia tudo e todos sem pensar duas vezes. Nada disso. Incendiar carros: o melhor aviso de um outro incêndio que se aproxima, um incêndio de maiores proporções.
- Mayron Régis, jornalista
https://www.alainet.org/pt/articulo/113974?language=en
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