CMS: “A hora do contra-ataque”
27/10/2005
- Opinión
Após quase cinco meses de brutal cerco do bloco liberal-conservador contra o governo Lula, a esquerda política e social começa a deixar o córner, recompõe minimamente as suas forças e retoma o fôlego para a nova etapa da luta de classes no Brasil. A cartada do impeachment, que estava na manga da direita racista, saiu de cena temporariamente; mesmo o “sangramento”, proposto por FHC, aparentemente foi estancado. A irritação da mídia golpista e dos hidrófobos do PSDB e PFL confirma a reversão das expectativas. Mas nada de triunfalismos ou da trágica repetição das ilusões de classes. A crise não acabou e nem as feridas foram cicatrizadas. O doente foi retirado dos aparelhos, mas continua internado em estado preocupante!
Apesar do baque, a direita ganhou musculatura. Já o governo Lula prossegue envolto nas suas dubiedades. O cenário ainda é difícil para o campo popular. A grave crise política só não foi mais destrutiva devido à resistência desencadeada pela esquerda política e social. Só o distanciamento histórico poderá mensurar o significado desta reação. Qualquer outro governo teria caído diante do violento bombardeio da mídia e da ausência de maioria no parlamento. A história do Brasil está repleta de abortos dos tímidos processos de transformação social. Para conseguir conter temporariamente a hipócrita e oportunista ofensiva do bloco liberal-conservador, vários movimentos no tabuleiro político foram decisivos, com destaque para três:
1- Os mais expressivos movimentos sociais brasileiros entenderam o que estava em jogo na crise política. Não caíram na passividade e nem desembestaram para o voluntarismo. Liderados pela Coordenação dos Movimentos Sociais (CMS), esta embrionária e promissora experiência de unidade das forças populares, eles tiveram papel decisivo que não pode ser subestimado. Eles ajudaram a conter a fúria golpista e ainda deram uns solavancos no governo, que passou a endurecer o discurso contra a oposição e alterou a agenda do presidente para o contato mais direto com o povo. Mantendo sua autonomia, mas revelando habilidade tática, souberam interferir no momento mais dramático da crise. A CMS estreou com sucesso nas ruas!
Os protestos em várias capitais acuaram os conspiradores mais afoitos. Segundo fontes seguras, a pioneira passeata de UNE em Goiânia causou calafrios em tucanos de alta plumagem. Já a marcha unitária de 16 de agosto, em Brasília, irritou a mídia venal, que fez de tudo para desqualificá-la. Ela não se ocupou em pesquisar as suspeitas fontes de financiamento do ato oposicionista no dia seguinte; nem sequer analisou a estranha aliança da Força Sindical com o Centro das Indústrias de São Paulo (Ciesp) na abastada jornada contra o governo Lula. Mas fez questão de taxar o ato da CMS de “chapa-branca”, reforçando o coro pela criminalização dos movimentos sociais. O desespero da mídia atestou o acerto da mobilização popular.
O bloco liberal-conservador contava com a “pressão das ruas” para radicalizar sua postura. Na véspera do protesto do “Fora Todos”, o reacionário José Agripino, líder do PFL no Senado, chegou a antecipar: “Não podemos negar o fato de que todas as condições para o impeachment estão dadas. Se a oposição conseguir botar a população brasileira na rua pedindo isso, por quê não avaliar essa possibilidade”. Já o deputado Baba, do PSOL, esbravejou: “Queremos a cabeça de Lula”. Mas, apesar do noticiário favorável da mídia, o povo não atendeu aos seus apelos. Na “guerra das ruas”, a oposição não obteve êxito. A postura ativa e crítica da CMS, que fez questão de tomar partido na crise, foi decisiva para derrotar a manobra das elites.
2- Os partidos de esquerda (PT, PSB e PCdoB), que compõem o núcleo central de apoio do governo Lula, também amadureceram na crise. Superando qualquer prepotência ou sectarismos, souberam costurar uma aliança política que garantiu a importante vitória na eleição para a presidência da Câmara dos Deputados. Ao contrário dos que pregam uma falsa dicotomia entre a pressão social direta e a ação institucional, esta conquista foi decisiva para conter a fúria da direita. Desta vez, o governo não lavou as mãos na disputa e o PT aprendeu com o seu erro anterior, quando se dividiu e perdeu a disputa no parlamento. A eleição do deputado Aldo Rebelo (PCdoB-SP) foi uma ducha de água fria nas planos do bloco liberal-conservador.
A direita incorreu na soberba na análise da correlação de força. Após eleger o Severino Cavalcanti para a presidência da Câmara visando “ferrar o PT”, segundo a cascavel-tucana Zulaie Cobra, tentou descartá-lo e foi derrotada. A indicação de um expoente do PFL, José Thomas Nono, evidenciou sua radicalização. Já o governo e os partidos de esquerda souberam unir forças, avaliar o terreno e ter humildade para escolher o candidato mais viável. “A vitória de Aldo Rebelo refletiu uma nova busca de unidade da bancada do PT, um início de recomposição da base do governo e as qualidades pessoais, de integridade e capacidade de interlocução, do ex-presidente da UNE e dirigente do PCdoB”, elogiou o boletim petista Periscópio.
3- Por último, vale realçar a surpreendente participação dos filiados no Processo de Eleição Direta (PED) do PT: 315 mil votaram no primeiro turno e 230 mil retornaram às urnas no segundo turno. Toda a mídia burguesa já havia decretado a morte deste partido; algumas Cassandras esquerdistas também entoaram este canto. Mas o ódio da direita parece ter energizado os petistas, que saíram em defesa deste patrimônio da luta dos trabalhadores, com suas virtudes e defeitos. Ao satanizar o PT, prevendo sua crise terminal, a direita pretendia atingir toda a esquerda brasileira. Queria “se ver livre dessa raça por uns 30 anos”, como disse o fascista Jorge Bornhausen, presidente do PFL. O PED revelou a vitalidade da esquerda no país!
O PED pode ajudar a arejar o PT, contribuindo na reflexão sobre sua relação com o governo, a construção de um projeto nacional contra-hegemônico ao neoliberalismo e os limites da institucionalidade burguesa. Seu resultado evidenciou que não há mais uma fossilizada maioria do campo majoritário e que a esquerda petista cresceu na disputa, quase vencendo o pleito. “Raul Pont poderia ter conquistado a presidência se, no segundo turno, tivesse recebido os votos do radical Plínio de Arruda Sampaio e do grupo de deputados e militantes que pediram desfiliação antes da eleição acabar. Na prática, esses esquerdistas acabaram ajudando de forma decisiva o moderado Berzoini, o que eles menos queriam”, registrou a ardilosa revista Época, jogando na cizânia. A luta política é implacável e os erros táticos cobram elevados tributos!
“Vamos radicalizar”
Estes e outros fatores ajudaram a conter a fúria golpista da direita, mas não devem embriagar as forças de esquerda. Os estragos causados pela crise são enormes e não podem ser subestimados. A crise manchou a imagem do governo, do PT e do conjunto das esquerdas; gerou ainda maior confusão no campo popular, estimulando a sua fragmentação sectária; fragilizou a base política do governo, como revelou o resultado apertado da eleição na Câmara de Deputados; e colocou o governo Lula nas cordas como um refém. A tendência é que haja maior radicalização da luta política, tendo como pano de fundo a sucessão de 2006. Nada ainda está definido para esta batalha; é preciso analisar a evolução do quadro e das forças políticas.
No caso do bloco liberal-conservador, tudo indica que ele não irá refluir agora. A direita sabe do potencial eleitoral de Lula, do seu carisma “palanqueiro”, como sempre acusou o seu conspirador-mor FHC. Além disso, ela já conta com o respaldo unânime da mídia burguesa, atraiu outras parcelas do empresariado e reforçou sua presença nas instituições, aliciando o PPS, o PV e setores do PDT. Após lamber suas feridas, ela retornará ao ataque com gosto de sangue, conforme indica recente entrevista do irado Arthur Virgílio, líder do PSDB no Senado: “Lula é o chefe da quadrilha. Cansei de amenizar as críticas do PSDB... Esse governo abusou da nossa paciência. Eles querem que a gente radicalize, pois vamos radicalizar”.
Já o governo Lula continua metido nas suas dubiedades. A crise forçou uma atitude política mais ousada do presidente, com a volta aos comícios em áreas populares e suas críticas mais duras à direita. Também recompôs seu núcleo de esquerda, com a retomada das reuniões dos dirigentes do PT, PSB e PCdoB. No outro extremo, porém, aumentou a blindagem da ortodoxia econômica, encarada como tábua de salvação do governo. Ocorre que este é exatamente seu ponto mais fraco. Sem mexer no tripé neoliberal – política monetária recessiva, política fiscal restritiva e libertinagem financeira – não há como o governo construir uma agenda positiva que revitalize as esperanças do povo e recomponha a sua base social organizada.
Será difícil cativar o movimento social numa campanha que pregue a mesmice neoliberal. Como explicar que só com pagamento de juros o governo desembolsou, até agosto, R$ 105 bilhões; que os recursos para infraestrutura e os programas sociais estão contingenciadas; e que a economia prossegue engessada. Dos 15 países “emergentes” sondados pelo FMI, o Brasil ficou em 13o lugar em crescimento, abaixo de nações “rebeldes” como Venezuela e Argentina. A política macroeconômica, com seus “vôos de galinha”, agrava os dramáticos problemas estruturais do país. Só no primeiro semestre, ela elevou a lucratividade do setor financeiro em 49,3%. Já o rendimento médio do trabalhador cresceu apenas 1,1% nos últimos dois anos.
Agora, com a febre aftosa, até a direita hipócrita chia contra o superávit primário. Beneficiária da política de incentivo ao agronegócios e à exportação, a oligarquia rural nadou em dinheiro no último período. O Brasil é o maior exportador de carne do mundo; de cada quatro quilos consumidos, um é brasileiro. Neste ano, o país deveria exportar 1,9 milhão de toneladas e faturar US$ 4,75 bilhões. Mas dos R$ 169 milhões solicitados para fiscalizar a vacinação, só foram liberados R$ 91 milhões – o resto foi para os banqueiros. Agora, o Brasil pode ter um prejuízo de US$ 1,5 bilhão. Se até este setor sofre com a ortodoxia da dupla Palocci-Meirelles, imagine o povo pobre que depositou tantas esperanças de mudanças no governo Lula.
Cobrar a fatura
Como se observa, a crise política foi contida, ao menos temporariamente, mas os problemas de fundo não foram equacionados. Os movimentos sociais, que tiveram papel decisivo na sua fase mais dramática, não devem recuar agora. Os ataques do bloco liberal-conservador e as vacilações do governo Lula exigem que eles aumentem a justa pressão das ruas. Como diz o ditado, a melhor defesa é o ataque. Agora é a hora de capitalizar e canalizar toda a mobilização desenvolvida pela CMS no período recente. É preciso manter a denúncia ao golpismo hipócrita da direita, inclusive para evitar sua vingança maligna na eleição de 2006; ao mesmo tempo, é urgente cobrar a fatura do governo Lula e impedir novos e graves equívocos.
Na hora do desespero, foi a esquerda política e social que garantiu a sustentação do governo Lula e barrou a fúria golpista. Apesar da conciliação de classes reinante no Planalto, a elite e a mídia venal jogaram sujo para sangrá-lo e, se possível, derrubá-lo. Cadê os civilizados do PSDB, que alguns nutriam ilusões com futuras alianças? Cadê a atitude isenta da TV Globo, que um ministro gabou-se de domá-la? A burguesia tem classe e não vacila. A conciliação só serve aos seus nocivos propósitos. A crise evidenciou quem são os verdadeiros aliados do governo. Sem abdicar de suas críticas justas, sem cair no puxa-saquismo tão nocivo e corriqueiro no Planalto, o movimento social cumpriu seu papel. Agora é hora de cobrar a conta!
A fase recente tem sinalizado uma retomada das lutas dos trabalhadores. O MST promoveu o “setembro vermelho”, ocupando terras e estradas para exigir o cumprimento das metas de assentamento; as greves, como a dos bancários, petroleiros, servidores, metalúrgicos do ABC, Correios e outras, voltam a ser mais prolongadas e massivas e saem da retranca, exigindo ampliação de direitos; também cresce o movimento comunitário, ocupando imóveis ociosos e exigindo mais recursos para a reforma urbana. O calendário de mobilização da CMS está lotado – Assembléia Popular em outubro; protestos contra a visita de Bush em 6 de novembro; marcha a Brasília pela valorização do mínimo no final do mês; entre outras iniciativas.
Agora é necessário unificar os movimentos sociais e os partidos de esquerda para efetuar o contra-ataque. Evitando qualquer sectarismo, que queime as pontes entre os vários setores, é possível derrotar a revanche neoliberal e impulsionar o governo Lula no sentido das mudanças. A CMS deve ingressar na sua terceira fase. Na primeira, ela uniu os mais representativos movimentos sociais para interferir no cenário político e disputar os rumos do governo Lula. Só ficaram de fora os voluntaristas e os que pregaram a passividade. Na segunda, ela mostrou a cara, tomou partido e mobilizou as bases para intervir na crise política. Agora, ela tem autoridade e legitimidade para ir às ruas e exigir as mudanças almejadas pelo povo brasileiro.
* Exposição apresentada na III Plenária Nacional da Coordenação dos Movimentos Sociais (CMS), em 15 de outubro.
- Altamiro Borges é jornalista, membro do Comitê Central do PCdoB, editor da revista Debate Sindical e autor do livro “Encruzilhadas do sindicalismo” (Editora Anita Garibaldi, junho de 2005).
https://www.alainet.org/pt/articulo/113439
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