A questão da água na América Latina

12/09/2005
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1) A Questão.

Estamos em meio a uma profunda crise civilizatória. O modelo civilizatório ocidental, alicerçado na exploração de seres humanos por outros seres humanos e na intensa exploração da natureza por uma restrita elite mundial, já não tem mais sustentação. Dos seis bilhões de pessoas que habitam a face do planeta, apenas 1,7 bilhões pertence ao modo consumista e predador da civilização contemporânea. Para sustentar os caprichos dessa elite mundial são necessárias 1,5 Terras para alguns, ou até seis Terras para outros. Essa elite não está apenas no primeiro mundo, mas também tem seus nichos no segundo, terceiro e quarto mundo. Estender esse modelo de produção e consumo a todos os seres humanos é impossível, pelos próprios limites desses bens em nosso planeta. Para sustentar esse modelo o maior tempo possível para uma elite restrita, é preciso restringir o acesso dos demais a esses bens. O melhor mecanismo para selecionar os incluídos do modelo é aplicar as regras do mercado a todas as dimensões da existência. Quem puder comprar, entra. Quem não puder está posto de fora.

A consciência dos limites do planeta começou surgir a partir da década de 60, mas aprofundou-se na década de 70 e generalizou-se a partir da década de 80. A Cúpula Mundial do Meio Ambiente no Rio de Janeiro consagrou a questão ambiental como fundamental para o destino da humanidade e do planeta Terra.

Coincide com a tomada de consciência dos limites do planeta e implantação mundial do neoliberalismo. Não foi por acaso. A elite mundial percebeu os limites do planeta e que seu “modus vivendi” não poderia jamais ser estendido a toda a humanidade. Então criou um mecanismo para estabelecer um “limite natural” aos que têm acesso aos bens e os que jamais o terão, isto é, aprofundou e tenta estender para todas as dimensões da vida as regras do mercado. Assim, através das regras do mercado, a elite mundial reservou para si os bens que antes também tinha destinação universal. Entre eles está a água.

A regra número um do mercado é transformar todos os bens em mercadoria. Nesse sentido, o mundo passa hoje pela disputa dos últimos bens da natureza que ainda não foram privatizados. São muito poucos: restavam ainda a própria vida, água, sol e ar. A vida está sendo privatizada através do patenteamento de sementes, princípios ativos de plantas e pelo avanço da ciência na própria genética humana. O sol e o ar ainda não descobriram mecanismos de privatização. Mas a privatização dos solos, da água e da biodiversidade segue a passos largos em todo o planeta.

2) A Questão da água.

A privatização da água não se dá ao acaso, ou de forma dispersa. Ela passa pela elaboração de grandes estratégias, mapeando a abundância da água nas regiões do planeta e construindo planos que, ao longo prazo, permitam a apropriação privada desse bem em escala mundial. Vamos citar aqui rapidamente os planos que existem desde o Canadá até o sul do continente latino americano, para termos uma idéia mínima do que está sendo estrategicamente pensado. Por trás desses planos estão sempre grandes empresas transnacionais, a intermediação dos organismos multilaterais como Bird, Banco Mundial e FMI, sempre em articulação com os governos e elites locais dispostas a transferir o patrimônio público para empresas privadas.  

Normalmente esses planos visam investimentos em infra-estrutura. Posteriormente, pelos tratados de livre comércio, seja em nível continental como a Alca, ou tratados bilaterais (Os TLCs – Tratados de Livre Comércio), essas infra-estruturas acabam privatizadas.

2.1 - Plano “Puebla Panamá” na América Central. O Plano é um conjunto de grandes projetos de investimento em infra-estrutura, transporte, comunicações, energia, turismo e outras obras em países da América Central e nos estados do sul do México. Abrange Puebla, Veracruz, Guerrero, Oaxaca, Chiapas, Tabasco, Campeche, Yucatán, Quintana Rôo, Belize, Guatemala, Honduras, El Salvador, Nicarágua, Costa Rica e Panamá. Vai desde Puebla, México, até o Panamá. Através de ferrovias, rodovias, portos, comunicações e uma rede elétrica que permita interligar e explorar o potencial hidroelétrico de toda região, puxando energia na direção do norte. Fundamentalmente visa facilitar o acesso aos bens naturais da região, criar facilidades para escoamento dos produtos do México e Estados Unidos, controlar os guerrilheiros da região e controlar as migrações.

Um dos objetos principais de cobiça é a água. Só o estado de Chiapas, com forte presença da guerrilha, contém 40% de toda água doce do México. Mas a América Central é toda rica em água doce. Uma série de empresas transnacionais, interessadas nessa água, tem se instalado na região, principalmente cervejarias, inclusive a Ambev com uma fábrica na Guatemala e outra na República Dominicana.

Há também um potencial hidroelétrico fantástico. Só no México está prevista a construção de 25 novas barragens o que poderá remover cerca de oito milhões de indígenas dos 10 milhões que habitam essas regiões[1].

2.2 - IIRSA (Iniciativa para a Integração da Infraestrutura Regional da América do Sul). Por hora é mais uma concepção estratégica que uma realidade. Também se planeja corredores industriais, hidrovias, rodovias que conectem os lugares mais recônditos de toda a América Latina, inclusive a região amazônica, onde estariam 20% de toda água doce do mundo.

Mas não é apenas a Amazônia que é rica em água doce. Toda bacia do Prata é também rica em água doce, considerada a segunda do mundo, logo depois da Amazônica. É nessa região também que está o Aqüífero Guarani, um mar subterrâneo de água doce. Os principais interessados são as empresas engarrafadoras de água e as fabricantes de bebidas que demandam muita água.

No Brasil dispensa comentários o plano estratégico no Estado Brasileiro para a construção de barragens. É também do conhecimento comum que hoje a construção de barragens foi repassada para as empresas privadas, o que têm acarretado mais problemas para os atingidos por barragens, que agora têm que negociar com particulares e não mais com o governo.

2.3 - NAWAPA (North American Water and Power Alliance). Esse é um plano dos americanos do Norte. Pretende desviar vastos recursos de água do Alaska e do Oeste do Canadá para os Estados Unidos. Esse é o plano de infra-estrutura. O plano de livre comércio da região é o Nafta. Já existem problemas sérios na exploração das águas canadenses pelos Estados Unidos.

Nos dias atuais, quando toda riqueza natural do planeta já está mapeada, os colossais interesses privados não têm dificuldades de armar suas estratégias. Quando se trata da disponibilidade de solos, água doce e biodiversidade, as Américas, principalmente a Central e do Sul, estão necessariamente incluídas em qualquer grande estratégia, exatamente pela abundância que possuem desses bens imprescindíveis para o futuro da humanidade e da vida no planeta. 

3) O Novo Discurso sobre a Água.

O discurso sobre a água mudou rapidamente nos últimos anos. O bem abundante e sem valor, “insípido, inodoro e incolor”, rapidamente tornou-se “ouro azul, escasso, dotado de valor econômico, objeto de cobiça, fator de guerras entre as nações”. Esse discurso não é ingênuo, e exige um difícil discernimento para distinguir o que é realidade e o que são os interesses daqueles que o produzem.

Em primeiro é necessária a distinção entre água e recursos hídricos. Água é um bem da natureza que está no planeta há bilhões de anos. É o ambiente onde surgiu a vida e componente de cada ser vivo. Por isso, o supremo valor da água é o biológico. Recurso hídrico é a parcela da água usada pelos seres humanos para alguma atividade, principalmente econômica. Portanto, água é um conceito muito mais amplo que recurso hídrico, embora sejam indissociáveis.

A questão é que o uso da água hoje é muito mais intenso que em algumas décadas atrás. Hoje, a média mundial é que da água doce utilizada, 70% destinam-se para agricultura, 20% para indústria e 10% para o consumo humano. Esse uso intenso da água, principalmente na agricultura e na indústria, ocorre num ritmo mais acelerado que a reposição feita pelo ciclo natural das águas. Dessa forma, muitos mananciais estão sendo eliminados pelo sobre uso que deles se faz. Pior, ao devolver a água para seu ciclo natural, ela vem contaminada pelos agrotóxicos da agricultura e pela química da indústria. A falta de saneamento ambiental, sobretudo em países pobres, colabora para a contaminação dos mananciais. Em conseqüência, hoje no planeta, segundo a ONU, 1,2 bilhões de pessoas não têm acesso à água potável e 2,4 bilhões não têm acesso ao saneamento. O impacto na saúde humana e no meio ambiente é uma tragédia. Portanto, a chamada “crise da água” é de quantidade e qualidade, não por razões naturais, mas pelo uso irresponsável que o ser humano dela faz. Agrava-se ainda mais essa situação quando a ambição, visando usos futuros privados da água, também a privatiza. A escassez produzida então passa a ser quantitativa, ou qualitativa, ou social, ou em todos esses níveis simultaneamente.

O crescimento populacional ajuda agravar a situação. Nesse sentido, a crise da água é progressiva. A posição da ONU é clara, ou se muda o modo de gestão das águas, ou essa será pior crise que a humanidade já enfrentou em sua história sobre o planeta.

Sem dúvida a chave da questão está no intenso uso agrícola e industrial da água. A água ainda é usada para navegação, pesca, geração de energia elétrica, uso doméstico em geral, além de outros. É o chamado “uso múltiplo da água”. Porém, quando se constata que 70% em média vai para a agricultura, é preciso se perguntar que agricultura é essa que consome água em tamanhas proporções que chega a desequilibrar o próprio ciclo das águas. É uma agricultura de primeira necessidade, ou é uma agricultura que visa produzir permanentemente bens que na verdade são sazonais, consumidos por uma restrita elite mundial? Essa resposta é variada e depende de país para país. Na Ásia a produção de arroz é um bem fundamental. No Brasil, na região do Vale do São Francisco, a água é usada para produção de frutas para exportação, ou até mesmo para irrigar cana para produção de álcool e açúcar. O etanol, que move carros no Brasil e na Europa, pode ser visto como um combustível limpo, desde que não se perceba a água embutida em sua produção. A Transposição do rio São Francisco para o Nordeste Setentrional visa, sobretudo, a produção da camarões em cativeiro e a fruticultura irrigada.

O conceito de escassez, introduzido como fundamento econômico pelos neoclássicos, agora também é aplicado na questão da água. Para esses pensadores, um produto tem mais valor econômico quanto mais escasso ele for. Por conseqüência, aplicar o conceito de “escassez” à água tem uma clara conotação ideológica dos princípios liberais dos neoclássicos. Entretanto, no tocante à água, sua escassez quantitativa e qualitativa não é uma questão natural, mas produzida pela mão humana. Portanto, pode ser evitada. A própria ONU afirma que a crise da água é mais uma questão de gerenciamento que de escassez.

Um dos argumentos utilizados para justificar a escassez da água é que 97,6% das águas do planeta são salgadas e apenas 2,4% são água doce. O quadro abaixo nos dá uma visão detalhada da distribuição da água no planeta.

QUADRO DAS ÁGUAS[2]

LOCALIZAÇÃO

VOLUME (1.000 Km3)

%

Renovação

Oceanos

1.464.000

97,6

37.000 anos

Massas Polares

31290

2,086

16.000 anos

Rochas Sedimentares

4371

0,291

300 anos

Lagos

255

0,017

1 a 1000 anos

Solo e Subsolo

67

0,004

280 dias

Atmosfera

15

0,001

9 dias

Rios

1,5

0,0001

6 a 20 dias

 

            Entretanto, a natureza é sábia e até poucas décadas atrás nunca faltou água para nenhuma forma de vida, sejam aquelas que dependem da água salgada, sejam aquelas que dependem da água doce. Mais uma vez, o problema não é da natureza, mas da ação humana sobre ela. A água é um bem natural renovável, e o ciclo das águas, desde que respeitado em seu ritmo, repõe os mesmos volumes de água doce e salgada há muitos milhões de anos. A crise da água, portanto, tem que ser focada na sua questão chave, isto é, o modo como o ser humano vem gerenciando a parcela de água que utiliza. Certamente um novo gerenciamento imporá limites ao desperdício e ao luxo.

Classificação de disponibilidade da água segundo a ONU (1997)[3]

Estresse de água

inferior a 1.000 m3/hab/ano

Regular

1.000 a 2.000 m3/hab/ano

Suficiente

2.000 a 10.000 m3/hab/ano

Rico

10.000 a 100.000 m3/hab/ano

Muito rico

mais de 100.000 m3/hab/ano.



Vale ressaltar que o Banco Mundial o tem outro padrão para o estresse, isto é, abaixo de 2.000 m³ por pessoa por ano para todos os usos. Entretanto, especialistas acham essa referência baseada no padrão de consumo dos Estados Unidos é insustentável. Portanto, é lógica a opção para trabalhar com os padrões da ONU.

4) A Água na América Latina.

4.1 - Há um detalhe nessa reflexão. Mesmo havendo água suficiente para todas as formas de vida, desde que gerenciadas com sustentabilidade, há distribuição desigual da água doce sobre o planeta. Os países mais pobres de água sofrem com sua escassez particular. Na outra ponta, continentes inteiros, dentro deles alguns países, têm abundância de água doce. É o caso do continente latino americano, particularmente alguns países.

Para exemplificar, o Peru é um país que está situado no parâmetro de “suficiente”. Sua disponibilidade per capta de água hoje é de aproximadamente 1.790 m³ por ano. Entretanto, a projeção é que no ano de 2025 sua disponibilidade caia para 980 m³ por pessoa por ano. Deixaria de estar na faixa de suficiente para a situação de estresse[4].

Já países como Brasil, Bolívia, Colômbia, Venezuela, Argentina e Chile situam-se no parâmetro de países “ricos”, isto é, tem entre 10.000 e 100.000.000 m³/pessoa/ano. Já a Guiana Francesa situa-se na faixa dos “muito ricos”, isto é, acima de 100.000 m³/pessoa/ano.

4.2 - Além disso, esse é um continente privilegiado no regime das chuvas. A intensa precipitação de águas meteóricas sobre o continente, mesmo com intensa média de evaporação, produz um grande excedente hídrico. Mais uma vez é necessário considerar os detalhes dentro do continente e dos países. Por exemplo, Lima no Peru nunca chove. Entretanto, as águas que descem dos Andes abastecem a capital peruana.

Basta compararmos o volume de nossas águas com países onde realmente ela é escassa para termos uma noção da abundância que temos.

Pais

Disponibilidade m³/hab./ano

Kuwait

Praticamente nula

Malta

40

Qatar

54

Gaza

59

Bahamas

75

Arábia Saudita

105

Líbia

111

Bahrein

185

Jordânia

185

Cingapura

211

Texto Base “Água, Fonte de Vida”[5]  

4.3 - Precipitação nos continentes:

Região

Precipitação

Mm/ano

Km³/ano

Evapotranspiração

Mm/ano

Km³/ano

Excedente

Mm/ano

Km3/ano

Europa

700

8,290

507

5,230

283

2,970

Ásia

740

32,200

416

18,100

324

14,100

África

740

22,300

587

17,700

153

4,600

América do Norte

756

18,300

418

10,100

339

8,180

América do Sul

1,600

28,400

910

16,200

685

12,200

Austrália e Oceania

791

7,080

511

4,570

280

2,510

Antártica

165

2,310

0

0

165

2,310

Totais

800

119,000

485

72,000,

315

47,000

 

 

 

 

 

 

 

Fonte[6]

4.4 – Nossos rios também são abundantes[7]. As Bacias Hidrográficas tornaram-se hoje a referência fundamental para a gestão das águas. É um modelo francês, mas que tem pertinência. O Brasil, por exemplo, foi dividido em 12 grandes regiões hidrográficas, cada uma delas às vezes com várias bacias hidrográficas. A Lei Brasileira de Recursos Hídricos (9.433/97) concebe a gestão das águas a partir das bacias hidrográficas. Aqui estão as águas mais acessíveis ao ser humano para todos os usos. Os rios, inclusive, tornaram-se o destino dos dejetos industriais, hospitalares, domésticos. O Brasil, que tem o maior volume de água doce do planeta e uma imensa malha de rios, tem 70% de seus rios poluídos. Portanto, prova que não basta abundância, é preciso um cuidado especial para se ter água em quantidade e qualidade.

Aqui mais uma vez a América Latina aparece de forma destacada no cenário mundial. As duas maiores bacias hidrográficas do planeta estão em território latino-americano, isto é, a Amazônica e a do Prata. São as duas maiores vazões hidrográficas da face da Terra. A vazão média da bacia Amazônica é de 212.000 m³/s, enquanto a do Prata é de 42.400 m³/s. O Brasil, com a água da Amazônia Internacional, detêm 53% das águas da América do Sul e 13,8 do total mundial.

Estas duas bacias hidrográficas, além de oferecer água doce em abundância, integram os países latino-americanos. Se forem sabiamente manejadas e preservadas, garantem tranquilamente o futuro de nossos povos.

4.5 - Aqüífero Guarani: A América Latina foi ainda abençoada com o maior lençol freático de água do planeta, com 1,2 milhões de Km². Atinge 7 estados brasileiros (Goiás, Minas Gerais, Mato Grosso do Sul, S. Paulo, Paraná, Santa Catarina, Rio Grande do Sul) e parte da Argentina, Paraguai e Uruguai. Estende-se pelo Brasil (840.000 Km²), Paraguai (58.500 Km²), Uruguai (58.500 Km²) e Argentina, (255.000 Km²)[8]. Tem água para abastecer 360 milhões de pessoas indefinidamente desde que bem gerenciado. É a população de toda América Latina.

Toda essa água, praticamente ainda inexplorada, é objeto de cobiça nacional e internacional. Somente agora há um esforço conjunto dos países banhados pelo aqüífero Guarani para o estabelecimento de uma série de medidas que facilitem a gestão e preservação comum do manancial. Entretanto, a abundância de água do aqüífero também traz ambições. As grandes transnacionais da água já buscam colocar-se no espaço do aqüífero e reservar seu quinhão em vista do futuro.

4.6 - Pantanais e Alagados: Nosso continente tem ainda uma série pantanais e de áreas alagadas, fundamentais para a dinâmica das águas e para a biodiversidade. O Pantanal Mato-grossense, que atinge também a Bolívia e o Paraguai é um caso exemplar. Com uma fantástica biodiversidade animal e vegetal, situa-se no coração da América do Sul. Sua biodiversidade inclui mais de 650 espécies diferentes de aves, 262 espécies de peixe, 1.100 espécies de borboletas, 80 espécies de mamíferos e 50 de répteis. Além disso, o Pantanal conta com 1.700 espécies de plantas[9]. É também uma área ambicionada por sua riqueza. A Igreja do Reverendo Moon comprou nessa região uma área de 10 milhões de hectares de terra. O tamanho da propriedade causou problemas no Brasil, onde por muita gente é considerada até uma questão de segurança nacional.

Entretanto, as áreas alagadas da América Latina são muito mais amplas que o Pantanal Mato-grossense. Uma pequena listagem nos dá a visão mais completa da abundância de pantanais e alagados de nosso continente.

País

Total de áreas

Extensão (hectares)

Brasil

38

59.789.733

Venezuela

29

14.447.155

Chile

49

9.188.713

Argentina

57

5.797.930

Paraguai

5

5.723.528

Bolívia

18

4.017.920

México

40

3.377.900

Nicarágua

17

2.111.349

Colômbia

36

1.928.389

Uruguai

12

773.500

Fonte[10].

5) Problemas Contemporâneos da Água.

5.1 - O uso múltiplo da água: o grande problema da água está na equação mais justa de seu uso múltiplo. O padrão mundial adotado de se utilizar 70% da água doce em agricultura indica ser sem sustentação. O uso da água na agricultura precisará ser redefinido. Esse embate já existe, por exemplo, no Brasil. É correto usar a pouca água disponível no Nordeste Brasileiro para irrigar cana de açúcar? É correto usar 80% da água do rio São Francisco, também no Nordeste Brasileiro, para gerar energia, enquanto milhões de pessoas espalhadas pela região não têm um copo de água potável para beber? Portanto, o uso múltiplo da água exige critérios éticos, não apenas técnicos ou econômicos. Por isso, além de falarmos do “uso múltiplo” das águas, é necessário falar também de seus “valores múltiplos”. Portanto, é necessário falar do valor biológico, social e ambiental da água. Além desses, a água tem valor simbólico, religioso, cultural, paisagístico, turístico. A água ainda tem dimensões econômicas, políticas e de poder. Controlar a água é ter poder sobre os demais seres humanos e os demais seres vivos.

5.2 - Privatização e mercantilização: a privatização e a mercantilização da água é o grande desafio para a água no mundo contemporâneo. A estratégia das grandes multinacionais da água é transformá-la numa mercadoria comum. Entretanto a água é um bem imprescindível e insubstituível. Nenhum ser vivo sobrevive sem a água. Controlar a água é controlar a vida. Por isso, em nível mundial também surgem resistências a toda tentativa de privatizar e mercantilizar a água. Na América Latina temos resistências na Bolívia, Argentina, Brasil, Peru, Chile, Uruguai e outros. Entretanto, na América Central os serviços de água já estão sendo privatizados. Há também privatização da água na Índia, Filipinas, países africanos e Europa.

5.3 - Poluição: outra questão fundamental é a degradação qualitativa das águas. A civilização humana fez dos rios seus caminhos, depois sua moradia, depois seu esgoto. Há vários rios no mundo, principalmente aqueles que cortam os grandes centros urbanos e agrícolas, praticamente imprestáveis em sua utilização para consumo humano. No Peru a poluição vem principalmente das mineradoras ao longo dos rios que abastecem Lima. Os dados do saneamento dos países mais pobres são estarrecedores. O Brasil, por exemplo, tem 20% de sua população sem acesso à água potável, 50% de seus domicílios sem coleta de esgoto e 80% do esgoto coletado são jogados diretamente nos rios sem nenhum tipo de tratamento. Isso faz com que 70% dos rios brasileiros estejam poluídos. Porém, há situações ainda piores, como é o caso do Haiti, onde mesmo em Porto Príncipe, os esgotos correm a céu aberto pelo centro da cidade.

5.4 - A perda de qualidade das águas é um dos grandes dilemas da humanidade. Hoje se fala em contaminação fina, à base de hormônios, antibióticos e metais pesados. Normalmente esses elementos não são detectáveis nos tratamentos mais comuns das águas para consumo humano. Portanto, a qualidade da água consumida nos dias de hoje não oferece segurança total. No Brasil estima-se que 40% das águas das torneiras não têm potabilidade confiável.

5.5 - Desflorestamento das matas ciliares: agrava ainda mais a situação das águas o desflorestamento. Há uma íntima correlação entre cobertura vegetal, armazenamento de água nos lençóis subterrâneos e a preservação dos mananciais de superfície. Onde há cobertura vegetal a água das chuvas tende a infiltrar-se mais nos solos, elevando o nível dos lençóis subterrâneos. Onde a terra está nua, a tendência da água é escorrer para o leito dos rios, com pouco processo de infiltração. Além disso, a cobertura vegetal das margens dos rios – as matas ciliares – protege os leitos do assoreamento provocado por materiais sólidos carreados pelas enxurradas. Portanto, o processo contínuo de desflorestamento influi diretamente na disponibilidade hídrica dos mananciais de superfície e subterrâneos.

5.6 - Pobres sem água: a exclusão de grande parte da humanidade da “segurança hídrica” já é uma realidade mundial. Repetindo os dados iniciais, no mundo contemporâneo 1,2 bilhões de pessoas não têm água de qualidade para beber e 2,4 bilhões não têm acesso ao saneamento básico. Essa realidade, segundo a ONU, tende a se agravar com o crescimento da população mundial. Não é um problema de escassez, mas de cuidado, gerenciamento e justiça social.

5.7 Hoje em vários lugares do Brasil começa se instalar o “cartão pré-pago” de água, como na telefonia celular. Evidente que ai está uma flagrante violação do direito humano à água. As populações mais pobres não podem estar sujeitas a essas regras do mercado. Muitos pobres não têm como comprar sua água, mas como todo ser vivo têm direito a ela. O surgimento dos “sem-água” é uma das mais aberrantes tragédias que poderiam assolar a humanidade.

6) Lutas Populares pela Água.

6.1 - Água como bem público, direito humano, patrimônio de todos os seres vivos: Como reação ao processo de privatização, mercantilização e degradação das águas, surgiu a consciência do “cuidado”, da “preservação”, da água como “bem público, universal, patrimônio da humanidade e de todos os seres vivos”. Essas articulações prosperam em todo o mundo, através de ONGs, defensores de direitos humanos, Igrejas e especialistas que tem uma visão ampla da água, não apenas mercantilista. No Fórum Social Mundial de 2005, em Porto Alegre, fortaleceu-se a “RED VIDA”, como uma articulação de entidades que lutam em defesa da água seguindo uma série de dez princípios, todos na direção da água como um bem público. 

6.2 - Da parte das Igrejas e das entidades defensoras dos direitos humanos, cresce a consciência e a defesa da água como um “direito humano”. Porém, há resistências dos governos locais e das transnacionais da água. A tendência é admitir a água apenas como uma “necessidade”, não como o direito. É a mesma postura que se tem em relação ao “direito humano à alimentação”. Se a água for reconhecida como direito humano, assim como a alimentação, então é obrigação do estado perante seus cidadãos. Sob a direção dos verbos “proteger, promover e prover”, o Estado está obrigado a garantir a todos seus cidadãos a alimentação e a água necessária para sua segurança hídrica. Portanto, muda a relação mercantil com os alimentos e a água que as transnacionais querem aplicar a esses bens fundamentais para a vida.

Assim, as transnacionais da água estabelecem uma ruptura entre o direito natural e o direito positivo. O direito natural não é mais reconhecido automaticamente como um direito positivo e até é posto em subalternidade em relação a esse.

Embora o reconhecimento da água como direito humano não garanta sua execução prática, é muito importante para a luta dos mais pobres. Importante também é a luta das Igrejas e das entidades dos direitos humanos para que a água seja definitivamente reconhecida como direito humano.

6.3 - Muitos esforços concretos existem em todo território latino americano para que as populações mais pobres tenham acesso à água em quantidade, qualidade e regularidade. Cresce também o esforço para a água na produção de alimentos. Um exemplo é o que acontece no semi-árido brasileiro, onde oitocentas entidades estão articuladas para construir um milhão de cisternas para um milhão de famílias da região. Até hoje já foram construídas aproximadamente 150 mil. Embora esteja longe de alcançar seu objetivo, praticamente 900 mil pessoas hoje têm água de qualidade ao menos para beber. Sem esse tipo de iniciativa, deixando apenas para as iniciativas do Estado, essas famílias não teriam sua água para consumo garantida. Esse é o tipo de prática que contempla as necessidades dos mais deserdados, garantido-lhes o acesso à água a qual têm direito.  

- Roberto Malvezzi (Gogó), membro da Coordenação Nacional da CPT/Brasil.



[1] Equipo Maiz: “La Plaga Para la Gente Pobre / el Plan Puebla Panamá“. El Salvador, 2003.

[2] Costa, Ayrton: Introdução à ECOLOGIA  DAS  ÁGUAS DOCES. Universidade Federal Rural de Pernambuco. Imprensa Universitária. 1991. Pg. 5.

[3] Rebouças, Aldo C. et alii. “Águas Doces no Brasil”. São Paulo. Escrituras Editora, 1999. Pg. 31

[4] Idem, pg. 21.

[5] Conferência Nacional dos Bispos do Brasil|: “Água, Fonte de Vida”, pg. 48. Texto Base da Campanha da Fraternidade de 2004.

[6] Aldo C. Rebouças, idem, pg. 12.

[7] Idem, pg. 11.

[10] Aldo C. Rebouças, idem, pg. 24.

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