Solidariedade & dessolidariedade
27/07/2005
- Opinión
A falência do socialismo no Leste europeu ressalta a crise dos paradigmas. As utopias políticas cedem lugar às utopias esotéricas, as ideologias perdem credibilidade, há menos esperança num mundo que vive, hoje, sob hegemonia militar e econômica dos EUA.
De fato, há uma desmistificação da linguagem política. Durante décadas, ela se arvorou em ciência capaz de explicar, analisar e prever os fenômenos humanos. Abriu horizontes e fez uma parcela da humanidade acreditar que a solidariedade pudesse constituir matéria-prima do futuro.
No entanto, não é a solidariedade que está em crise. É a racionalidade moderna. Lá onde o racionalismo não criou raízes - nos meios populares, por exemplo - as expressões de solidariedade ainda se manifestam. De algum modo, as pessoas simples continuam a acreditar num futuro melhor. Não importa se esse sentimento brota da emoção, da fé ou da esperança. O importante é que anima multidões a buscar nos movimentos sociais, nas igrejas ou até mesmo na sorte o que os povos indígenas denominam "uma terra sem males".
Vale ressaltar que a crise de uma concepção cartesiana do mundo, na qual todos os fenômenos se encadeavam tão harmoniosos e progressivamente quanto na lógica matemática, abre agora a perspectiva de que os caminhos da história não sejam apenas aqueles previstos pelas largas avenidas das ideologias modernas.
Talvez os atalhos sejam, agora, as vias principais, como o demonstram a questão ecológica, a força do fenômeno religioso e o resgate da cidadania. Eis aí onde se tecem, hoje, os vínculos de solidariedade.
A imprevisibilidade constatada no microuniverso das partículas quânticas seria também uma constante no movimento histórico. E assim como o aparente perfil caótico da natureza ganha um sentido evolutivo e coerente na esfera biológica, do mesmo modo haveria um nível - que o Evangelho denomina amor - em que as relações humanas tomam a direção da esperança e da solidariedade.
É verdade que, de repente, ruiu quase tudo aquilo que sinalizava um futuro sem opressores e oprimidos. E, em nome da liberdade e da democracia, o capital privado, em especial o especulativo, assumiu o controle absoluto do poder. Agora, as leis do mercado importam mais do que as da ética, e o neodarwinismo se estende, implacável, à convivência social, na qual só sobrevivem os "mais capazes". Na verdade, os mais aquinhoados por fama e/ou fortuna e os mais espertos, aos quais falta qualquer senso ético.
E a pobreza de 2/3 da humanidade? O que significa falar em liberdade e solidariedade quando não se tem acesso a um prato de comida? Não deveríamos ressaltar a crise crônica do capitalismo, que já dura 200 anos? Não seria um grande equívoco falar em vitória neoliberal quando, de fato, o que houve foi a falência do socialismo estatocrático, e agora ocorre, a olhos vistos, o fracasso do capitalismo enquanto resposta aos anseios de justiça?
Essa a grande contradição da atual conjuntura: nunca houve tanta "liberdade" para tantos famintos! E tão pouca solidariedade por parte daqueles que têm acesso ao pão. Mesmo os povos que, no decorrer das últimas décadas, não conheceram a pobreza, o desemprego e a inflação, agora se deparam com esses flagelos, como acontece nos países do Leste europeu.
A ironia é que, agora, aqueles povos são livres para escolher seus governantes, podem circular fora de suas fronteiras e manifestar suas discordâncias em público. Mas a eles é negado o direito de escolher um sistema social que não assegure a reprodução do capital privado.
Talvez a crise da solidariedade tenha a ver, hoje, com a privatização de nossos valores e sentimentos. Há, nessa pós-modernidade, uma tendência à volta ao próprio umbigo. As pessoas estão desencantadas com a política e os políticos. Movidas pela publicidade, preferem ser consumidoras a cidadãs. Assim, esgarçam-se os mecanismos de solidariedade, desarticula-se a sociedade civil, reforçam-se as desigualdades sociais e a dominação das elites.
Só uma atitude ética de adesão às instâncias comunitárias de solidariedade, como movimentos sociais e eclesiais, é capaz de nos salvar dessa tendência nociva à dessolidariedade.
- Frei Betto é escritor, autor do romance sobre Jesus Entre todos os homens (Ática), entre outros livros.
https://www.alainet.org/pt/articulo/112549
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