Torre de Babel
03/07/2005
- Opinión
A natureza obedece a ciclos repetitivos: estações do ano, fases da Lua, movimento da Terra em torno do Sol etc. Na agricultura, a seqüência inelutável de semear, nascer, brotar, frutificar e morrer. Não por acaso os antigos reforçavam o patriarcalismo associando a mulher à terra na qual o homem “planta” a semente (daí “sêmen”) da vida. Ele portava a vida em potencial, como o camponês guarda consigo as sementes. Ela atuava como mero receptáculo, vaso no qual a semente germina.
A dissociação entre ser humano e natureza advém do aparecimento da cidade, surgida por volta de 3500 a.C. Já não são os humanos que se adequam à natureza. A relação se inverte. Os humanos criam para si um espaço, o urbano, separado do rural. E deixam de ser mero mantenedores dos ciclos reprodutivos da natureza, para se tornarem produtores, inventores, artífices.
Rompe-se o equilíbrio ecológico. Os humanos se emancipam, submetem a natureza às suas exigências e projetos. O corte é muito bem simbolizado no episódio da torre de Babel (Gênesis 11, 1-9), jóia literária em menos de dez versículos.
Segundo o autor bíblico, após o Dilúvio “todos se serviam da mesma língua e das mesmas palavras”. Não havia diversidade de enfoques e opiniões. O ponto de vista de um, o poderoso, era o de todos. E a atividade agropastoril igualava as pessoas.
O advento das cidades-Estado provoca um movimento migratório do campo para a urbe, representada no relato bíblico pela “terra de Senaar”. Ali os humanos decidem “construir uma cidade” a Babilônia, que significa “porta do deus” com “tijolo que lhes serve de pedra e o piche de argamassa”. (A Babilônia era a capital da Mesopotâmia, atual Iraque).
A revolução tecnológica representada pelo tijolo (insuperado até hoje) imprime aos humanos a consciência de que não estão mais condicionados pela natureza. A relação se inverte. Agora é o ser humano que condiciona a natureza. Transforma-a em artefato, cultura, faz do barro cozido a nova pedra e do piche, a argamassa.
Tais avanços enchem os humanos de orgulho. Não satisfeitos de “construir a cidade”, decidem abrir a “porta do deus”, ou seja, erguer “uma torre cujo ápice penetre nos céus”. Aqui o relato expressa duas ambições, a de edificar uma montanha artificial (a torre), repositório da divindade, e a de “penetrar nos céus”, quebrar o limite entre o humano e o divino, o profano e o sagrado, a Terra e o Céu. Já não é a divindade que desce à Terra, é o ser humano que invade o Céu graças à obra de suas mãos.
Toda essa sabedoria explica a arrogância decorrente, ainda hoje, de avanços científicos e tecnológicos. Queremos ser deuses. E agora, como nunca, ansiamos pela imortalidade, como Gilgamés, a primeira figura urbana da história, rei da cidade-Estado de Uruk, na Mesopotâmia, no terceiro milênio a.C. Fortunas são consumidas neste sonho: resfriamento de embriões e cadáveres, clonagem, cirurgia plástica, terapias de rejuvenescimento, drágeas em quantidade, exercícios físicos, dietas para todos os gostos, equipamentos miraculosos, livros de auto-ajuda etc. Tudo para nos livrar da velhice e permitir que desfrutemos, para sempre, de uma vida saudávelŠ Morrer tornou-se acidente de percurso.
O versículo 4 registra as propostas de construção da cidade e da torre, e destaca o principal motivo de tal empreitada: “para ficarmos famosos e não nos dispersarmos pela face da Terra”. Não se tratava de obter felicidade, bem-estar, bênçãos divinas. Importava a fama, possuir um nome sobreposto aos demais, e ficar segregado, seguro.
A fama nem sempre traz felicidade e a segurança, liberdade. Quanto mais famosa a pessoa, maiores os cuidados de segurança para evitar assédio e risco. Pelo fato de atrair dinheiro e poder, a fama é uma das mais sedutoras tentações. Pode-se obtê-la também pela via do poder, mas nem sempre através da riqueza, exceto se houver ostentação.
Babel é semantema de Babilônia. Deriva da raiz hebraica “bil”, que significa “confundir”. Narra o texto bíblico que Javé, ao observar Babel, convenceu-se de que os humanos se fechavam em seus próprios e ambiciosos projetos, deixando de acolher os desígnios divinos. “Isso é o começo de suas iniciativas!” disse o Senhor. “Agora nenhum projeto será irrealizável para eles”.
Antes que a soberba humana inflasse ainda mais, Javé confundiu a linguagem dos habitantes de Babel e os dispersou. “Eles cessaram de construir a cidade”. Portanto, Babel não é uma maldição. É uma dádiva. Primeiro, porque delimita a ambição humana. Depois, revela ser obra de Deus a diversidade de pontos de vista e opiniões, contrária à identificação entre autoridade e verdade, e à unanimidade que, como dizia Nelson Rodrigues, “é burra”.
Essa “confusão” ou Babel é salutar. Perigoso é aceitar uma única linguagem e ter a pretensão de “penetrar nos céus”. Babel é bendita. A torre não.
- Frei Betto é escritor, autor de “Entre todos os homens” (Ática), entre outros livros.
https://www.alainet.org/pt/articulo/112361
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