O Pontificado de João Paulo II e o Fundamentalismo
05/04/2005
- Opinión
Não é meu intento emitir aqui algum tipo de julgamento acerca da pessoa do papa João Paulo II, que demonstrou sempre agir com a retidão que seu importante cargo exigia. Mas é preciso analisar com seriedade e sem falsos pudores as orientações básicas desse longo pontificado, pois elas incidem em pontos importantes no comportamento de pessoas e instituições num país como o Brasil, onde existem milhares de paróquias católicas disseminadas por todo o território nacional, além de hospitais, centros sociais e educativos. A orientação emanada da mais alta autoridade católica costuma incidir, por vezes de forma decisiva, no que o poder público decide neste país. A igreja forma nossos filhos e nossas filhas nas escolas, colégios, faculdades e universidades católicas, orienta nossa moral, influencia a opinião pública. Ela tem uma influência importante sobre a vida nacional, queiramos ou não. Por conseguinte, tentar avaliar corretamente o pontificado de João Paulo II é importante, não só para os católicos, mas para todos que vivem neste país.
Desde o início de seu pontificado, João Paulo II fez o possível para criar uma imagem de forte impacto na mídia. Nisso, ele inovou, pois até Paulo VI, os papas seguiam uma longa tradição de reserva e mesmo de certa aversão à mídia, considerada hostil à igreja. Mas João Paulo II reverteu esse quadro, resolveu expor-se como nenhum papa fizera antes. Com isso, ele conseguiu se tornar uma figura pública de proa. De outro lado, não conseguiu escapar das armadilhas de um jogo que ele mesmo armou. Não quero, com isso, criticar a intenção do papa em imprimir ao seu ofício um caráter eminentemente político. Minha análise visa antes idéias subjacentes a esse pontificado.
1. Existe desde muito, nos setores mais esclarecidos do catolicismo, a convicção de que a igreja não entende a sociedade. Essa convicção levou o papa João XXIII a convocar, na década de 1960, uma assembléia geral de todos os bispos do mundo, chamada Concílio Vaticano II ou, simplesmente, Vaticano II. Esse Concílio tentou sensibilizar o velho instituto católico, cheio de entulhos medievais e caracterizado por um autoritarismo que contrastava de forma flagrante com valores modernos como tolerância, liberdade religiosa, direitos humanos, opinião pública, democracia, abertura para os valores do corpo, da subjetividade e da sexualidade. Até certo ponto, João XXIII, que considero o maior papa do século XX, conseguiu seu intento. Todavia, os setores tradicionalistas nunca engoliram o Vaticano II e se aproveitaram da morte do papa Paulo VI, um seguidor tímido de João XXIII, para retomar o comando da máquina vaticana elegendo o cardeal Karl Wojtila como papa João Paulo II. As palavras de ordem que marcaram o início desse pontificado eram duras: ‘retornar à grande disciplina’, ‘voltar às verdades eternas’, ‘não fazer novas experiências’, ‘obedecer sem discutir’. O papa conseguiu que essas orientações fossem aceitas ou, pelos menos, não abertamente contestadas por bispos e sacerdotes pelo mundo afora.
Com isso, perderam-se excelentes oportunidades. Em primeiro lugar, o papa não conseguiu compreender a extraordinária geração de grandes bispos que atuou na América Latina nos anos 1960-80. Figuras de irradiação continental foram Leônidas Proaño no Ecuador, Mendez Arceo no México, Oscar Romero em El Salvador e Hélder Câmara no Brasil. A lista de bispos excepcionais no Brasil da mesma época é igualmente impressionante: além de Dom Hélder Câmara, há Dom Paulo Evaristo, Dom Antônio Fragoso, Dom Tomás Balduíno, Dom Pedro Casaldáliga, Dom Valdir Calheiros, Dom Aloísio Lorscheider e outros. Fica difícil apontar, em toda a história bi-milenar do cristianismo, uma outra concentração de bispos incondicionalmente comprometidos com valores evangélicos. Outra oportunidade que o papa desperdiçou foi a Teologia da Libertação, igualmente nascida no chão latino-americano. Ele parece não ter percebido a fundamental mensagem evangélica embutida nessa teologia e ficou emaranhado em fococas e mesquinhos preconceitos eurocêntricos de seus acessores. Com isso, ele demonstrou não estar sintonizado com os problemas de exclusão política e social em escala mundial. Permaneceu, apesar das numerosas viagens pelo mundo inteiro, um papa primeiro-mundista.
2. As tão propaladas viagens de João Paulo II poderiam ter sido uma abertura para o cenário religioso mundial, sempre mais plural e diversificado, permeado de pobreza e abandono. Mas não foi isso que aconteceu. Além de algumas concessões de tipo folclórico, suas viagens encenaram invariavelmente missas católicas ao velho estilo, com gritos exaltados e fotógrafos nervosos em torno do ‘papamóvel’. Quem tirou real vantagem dessas viagens foi a grande mídia, que nelas encontrou uma oportunidade de divulgar a impressão ilusória de um mundo unido em torno do líder religioso mundialmente aplaudido e do projeto ocidental de civilização. Essas viagens alimentaram nas pessoas, no dizer de Dom Pedro Casaldáliga, um ‘papismo infantil’. Um papismo que descamba, com o tempo, para a desilusão. Hoje, massas inteiras de pessoas que já aplaudiram o papa, circulam, decepcionadas, pelo mundo. Vítimas da ingenuidade de acreditar em tudo que se diz nas igrejas, elas peregrinam, sem rumo certo, de igreja em igreja, atraídas por luzes e cores, palavras e músicas, e acabam engrossando as fileiras dos ‘sem-igreja’. São massas peregrinas de uma religião que nunca encontram e constituem a mais flagrante prova da ineficácia das igrejas em divulgar a mensagem original.
Como líder mundial de inspiração cristã, esperava-se de João Paulo II um posicionamento em 1991, por ocasião da primeira guerra do Golfo Pérsico. Ele não disse uma palavra sequer. Quando se posicionou, em 2003, contra a segunda guerra na mesma região, suas palavras já careciam de convencimento. Pareciam palavras táticas. O papa ficou com a ONU contra o poder americano, mas não abandonou a tradicional aliança com as grandes potências ocidentais. Hoje, é mais que urgente que algum líder de alcance mundial comece a enxergar a loucura que toma conta do mundo. João Paulo II teve a oportunidade de ser esse líder, mas ele a desperdiçou. A enorme pressão silenciosa de populações emergentes e pobres contra populações ricas e detentoras da riqueza mundial não atingiu o Vaticano. O papa estava mais preocupado com os problemas internos da instituição católica.
3. A política interna da igreja católica ficou marcada, nesses anos todos, por uma violência cuidadosamente camuflada. Imperava, nos corredores do Vaticano, um medo quase irracional diante de qualquer sinal de mudança. Eis um assunto que as pessoas que não têm intimidade com o mundo clerical costumam desconhecer. O Vaticano permanece um mundo impenetrável, sobre o qual pesa um manto de silêncio. A igreja católica de João Paulo II tem medo de si mesma. Os setores tradicionais têm medo de tudo que aparece nos setores progressistas e reagem de forma compulsiva. Só uns exemplos, todos significativos do modo como o papa governou. - Os próprios religiosos, através de seus órgãos legítimos, nunca foram recebidos em audiência pelo papa. Ele recebeu chefes de estado, políticos, homens de negócio, até esportistas, mas não recebeu os superiores e as superiores gerais que representam mais de um milhão de pessoas (padres, religiosas, frades, monges), que dedicam toda a sua vida à igreja. Desde 1995, a União dos(das) Superiores(as) Gerais (USG e UISG) das grandes congregações religiosas católicas (jesuítas, salesianos, redentoristas, carmelitas, franciscanos, lazaristas, beneditinos e muitos outros, além das congregações femininas como as irmãs dorotéias, vicentinas, salesianas e muitas outras) pediu uma audiência ao papa, sem nunca conseguí-la. Isso é pouco comentado, mas muito importante. É que essa União dos e das Superiores(as) Gerais é um órgão democrático. Ora, a democracia não passa no Vaticano. Os burocratas papais têm horror à democracia. - Os ministros do papa excluem cuidadosamente toda e qualquer ingerência feminina nas decisões da igreja. As freiras podem trabalhar sim, e muito, mas não podem decidir nada de realmente importante para sua própria vida. Tudo é decidido por homens. O papa redigiu o documento Verbi Sponsa sobre a vida das irmãs contemplativas sem consultá-las. Passou por cima da vida, dos sentimentos, dos desejos e das iniciativas das próprias irmãs. Elas ainda foram tratadas, pelo Vaticano, como ‘menores de idade’. - Os ministros do papa têm medo da opinião pública. Todo e qualquer processo contra um clérigo é realizado a portas fechadas no mais estrito segredo, sem testemunhas. A origem da acusação é sempre mantida em segredo, um procedimento que fomenta fofocas, suspeitas, inseguranças, traumas. Quando um caso passa para o foro civil, como o dos padres pedófilos, o Vaticano entra em ebulição. Roma costuma não responder a cartas que lhe são enviadas. Tudo permanece no silêncio, no reino do autoritarismo silencioso. Ninguém sabe ao certo como funcionam por dentro os ministérios papais. Os clérigos devem manter diante dessa burocracia uma ‘obediência cega’, e muitos preferem nem pensar nesses assuntos para evitar problemas. Por isso mesmo, é importante alertar a opinião pública em geral, pois a igreja interessa a todos nós. Ela é importante demais para que a deixemos agir sem interferirmos. - O pensamento latino-americano, africano ou asiático não é aceito nos ministérios do papa. Ele é silenciado, como testemunham os processos contra pensadores como Leonardo Boff no Brasil ou Balasuryia em Sri Lanka. Há muitos outros exemplos. Há uma repressão contra os que procuram dar vez e voz a africanos, asiáticos e ou latino-americanos, embora a maioria dos fiéis católicos esteja vivendo no terceiro mundo.
4. Contudo, não se pode culpar o pontificado de João Paulo II de tudo. Na realidade, o espaço de manobra de um papa é estreito, ele tem de contar com a força envolvente de um fundamentalismo enraizado que, desde as origens do monoteísmo, pesa sobre as três religiões emanadas da bíblia: o judaísmo, o cristianismo e o islamismo. O fundamentalismo é uma decorrência do monoteísmo e persiste por todos esses tempos no seio das três religiões que atualmente predominam na cultura ocidental. A fé num Deus único cria entre os judeus a idéia de um ‘povo eleito’ e, com isso, a intolerância diante de outras religiões. Os cristãos, por sua vez, lançam a idéia da verdade única, da igreja única e do poder único, enquanto os islamitas se imaginam sendo os verdadeiros fiéis de Alá e cultivam a idéia da ‘guerra santa contra os infiéis’, a Djihad. Tudo isso é puro fundamentalismo.
João Paulo II não teve a felicidade de seu predecessor João XXIII, que convocou o Concílio Vaticano II e com isso aumentou as possibilidades de manobra diante do fundamentalismo católico. Não sei até que ponto o papa recentemente falecido viu no fundamentalismo um perigo maior. Seja como for, os setores fundamentalistas da igreja se fortaleceram durante seu pontificado. Nos últimos 25 anos, as mais altas instâncias da igreja católica têm combatido sistematicamente movimentos de mudança. Hoje, elas continuam combatendo políticos que se pronunciam a favor da tolerância e do tratamento igual para todos(as) os(as) cidadãos(ãs) em assuntos como o aborto, o divórcio, as células-tronco, a eutanásia e o casamento entre homossexuais, entre outras questões. Elas combatem com igual virulência os intelectuais que procuram adaptar os dogmas católicos ao pensamento moderno, como demonstra o caso recente do jesuíta americano Roger Haight, proibido de ensinar em institutos católicos por tentar adaptar a figura tradicional de Jesus ao modo de pensar de nossa geração. Finalmente, essas instâncias do Vaticano defendem a idéia fundamentalista da cultura única, da democracia única e da história única, tal qual é hoje defendida com arrogância pelo governo dos EE.UU. É sabido que a vitória do presidente Bush, um protestante, nas recentes eleições, se deve parcialmente ao apoio de eleitores católicos. O fato é que, em 2004, 50% dos votos católicos nos EE.UU. foram para a chapa republicana (um recorde histórico!), apesar do fato de Bush passar por cima de valores éticos cristãos fundamentais: não matar inocentes, não agredir sem ser atacado, não confundir as mentes, dizer sempre a verdade (‘sua palavra seja sim, sim..’), não desprezar o pobre, a viúva, o órfão, etc. Não se pode negar que as igrejas foram e continuam sendo propagandistas do fundamentalismo e a ele costumam recorrer para firmar sua autoridade. A bíblia se transforma em bandeira de guerra contra os ‘inimigos da fé’ e os militantes vivem em estado de guerra. Enquanto o Ocidente impõe a democracia num Oriente Médio considerado fundamentalista, os islamitas acusam o Ocidente de fundamentalista por usar o termo ‘democracia’ para impor sua hegemonia sobre o mundo.
* Eduardo Hoornaert é de origem belga, radicado no Brasil desde 1958. Lecionei história em diversos Institutos Teológicos católicos do Nordeste (Recife, João Pessoa, Fortaleza) e professor de história na Universidade Federal da Bahia. Autor de diversos livros sobre a história do cristianismo, nas editoras Vozes, Paulus e FTD. E-mail: hoornaert@ig.com.br
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