Juros, te esconjuro!
04/04/2005
- Opinión
Há dois modos de caçar leão: atraí-lo à armadilha ou aplicar-lhe soníferos. O primeiro é mais seguro. O caçador deixa ali um naco de carne e se afasta para que o rei da selva se aproxime e, movido pelo apetite, entre na jaula. O segundo é arriscado e provisório. O bicho pode acordar quando menos se espera e vingar-se de quem o dopou.
No caso brasileiro, trata-se de recorrer ao Manual de Caçar Dragão. O da inflação. Eu pensava (doce ingenuidade!) que dragões faziam parte da fantasia infantil. Até que conheci o mercado financeiro que, em matéria de zoologia, rivaliza com o jogo do bicho. Com a diferença de que, neste, a bicharada é menos aterrorizadora. Lidar com leão e dragão é arriscado para a pele e, sobretudo, para o bolso, a parte mais sensível do corpo humano.
Há também dois modos de abater dragão. O primeiro, enjaulando quem o alimenta. Essa gente que sobe os preços quando os juros descem. O segundo, asfixiando-o pela alta de juros. Quanto mais altos, menos oxigênio para o bicho respirar. A desgraça é que, ao tombar, o dragão esmaga os pobres indefesos que não têm como fugir de sua sombra. E atravanca o trânsito do país rumo ao futuro.
O Copom Comitê de Política Monetária é tão fechado quanto um clube de caçadores. Concentra em mãos tanto poder que deveria ser eleito por sufrágio universal. São todos senhores de aspecto grave, nenhum deles com experiência de sobreviver de salário mínimo ou participar de movimento popular. Uma vez por mês se reúnem para analisar as reações do dragão: anda adormecido? tem demonstrado exagerada voracidade? a língua de fogo se aqueceu ainda mais?
Invariavelmente os senhores do Copom optam por abater o dragão pelo método da asfixia. Retiram-lhe o oxigênio elevando os juros. Quanto maior a altitude, mais o bicho respira com dificuldade. E o desenvolvimento nacional também. Assim, estrangulam o crédito, penalizam os pequenos e médios empresários, enxugam bilhões de reais do mercado e engordam o superávit primário. Porque não têm coragem de enjaular quem engorda o dragão. Como Bush diante da epidemia da Aids, preferem pregar a castidade a contenção de despesas, exceto as do governo do que distribuir preservativos. Assim, o dragão fica lerdo, mas seus tutores continuam livres e impunes, à espera da primeira oportunidade de elevar preços tão logo haja mais moedas na praça.
Dói saber que cada 0,5% de aumento na taxa Selic, que comanda os juros, equivale a enxugar da praça o equivalente ao orçamento anual do Ministério da Saúde. Algo em torno de R$ 30 bilhões. O povo fica com menos poder aquisitivo, o crédito mais caro, a inadimplência mais aguda, o combate ao desemprego mais difícil, o futuro melhor mais distante. E o país troca a oficina pelo cassino.
Oficina é lugar de produção; cassino, de especulação. O que você prefere: aplicar seu suado dinheirinho numa poupança que lhe renda 2,5% ao ano, ou noutra que lhe assegure 19,25%? Como nem louco rasga dinheiro, é óbvio que você aplica no cassino do Jeca Tatu, que recompensa melhor que a roleta do Tio Sam. Assim, os juros altos atraem ao país dólares atrás de ganhos mais vantajosos. Aqui, são recebidos como o maná caído do céu. Na verdade, os dólares-urubus pousam onde a carniça é mais farta. E deixam para trás a carcaça.
Se aplicar dinheiro no mercado financeiro é mais rentável que investir na atividade produtiva, o país fica à mercê dos bancos que, sem alarde, agradecem a generosidade do Copom. Porque se os juros fossem baixos, haveria menos dinheiro rendendo dinheiro e mais dinheiro produzindo riqueza, bem-estar, empregos e desenvolvimento.
Por que será que quase todos que, nos últimos 20 anos, cuidaram das finanças do Brasil ocuparam ou ocupam assento na direção de bancos? Você ousaria desagradar quem lhe acena com a proposta de um régio emprego?
Os juros brasileiros, hoje os mais altos do mundo, tendem a subir acima do nível que FHC os deixou em 2002. Antes, a causa era a almejada estabilidade econômica; agora, o preço do petróleo no mercado externo. E muitos haverão de comemorar a modorra do dragão desprovido de oxigênio. A inflação estaria sob controle. E a miséria disseminada como peste.
O Brasil é um veículo cujo motorista acelera nas reformas e nas políticas sociais, enquanto a equipe econômica mantém o freio de mão puxado. Ah, quem dera que, em vez de pão, os pobres comessem estatísticas! E como seria bom que a equipe econômica trabalhasse ao lado de uma favela. Pelo menos seus diretores veriam a paisagem real da maioria da galera brasileira.
* Frei Betto é escritor, autor, em parceria com Maria Stella Libanio Christo, de ³Saborosa Viagem pelo Brasil² (Mercuryo Jovem), entre outros livros.
https://www.alainet.org/pt/articulo/111710
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