Cenas bíblicas
06/01/2005
- Opinión
Há acontecimentos que ficam para sempre registrados em nossa
memória. O mesmo ocorre na história dos povos. Nunca mais a
população asiática atingida pelas tsunamis na manhã de
domingo, 26 de dezembro, poderá esquecer esta catástrofe.
Uma tragédia que, ao contrário de outros fatos, não exige
distanciamento para ganhar a força do mito. De tal modo nos
surpreendeu e veio em proporções tão descomunais que nos
fazem recordar os fenômenos bíblicos. Pois não há como fugir
ao paralelo quando se pensa no bebê malaio, de apenas 20 dias,
salvo por estar dormindo num colchão que flutuou sobre as
ondas gigantes. Não foi assim que Moisés se salvou das águas
do Nilo? Ou da mãe australiana Jillian Searle que, forçada
pela pressão das águas, viu-se obrigada a escolher um dos
filhos que trazia nos braços. Numa decisão cruelmente
salomônica, escolheu o menor, Blake, de dois anos, soltando a
mão do mais velho, Lachie, de cinco anos. Felizmente o menino
salvou-se, embora não soubesse nadar, por ter se agarrado a
uma porta sobre a qual foi encontrado boiando.
Nenhum de nós, a tantos quilômetros de distância, pode
imaginar a profundidade da tragédia que consumiu a vida de
mais de 120 mil pessoas, como se Netuno, irado, tivesse
tomado emprestado a língua do tamanduá para devorar formigas.
As ondas gigantes que fecharam em luto 2004 têm as dimensões e
a significação de um dilúvio. Talvez algo semelhante tenha
ocorrido em tempos remotos, quando uma grande enchente dos
rios Eufrates e Tigre devastou aldeias e lavouras. A fé
identificou ali a ira de Deus e, ao mesmo tempo, a sua
misericórdia. Noé e seus animais preservados na arca são um
sinal de que para Deus é sempre possível começar de novo.
Nossa eventualidade secularizada não há de atribuir ao
maremoto gigante um sinal de Deus. Sabemos, hoje, que Ele não
quer o mal a seus filhos e nem se compraz em castigar e sim
em perdoar. Porém, vale a advertência do presidente Lula ao
se referir aos fatos: ³a Terra parece se vingar dos estragos
que lhe temos imprimido². Estamos colhendo os frutos
apodrecidos das más sementes que plantamos: o lucro desmedido,
a poluição atmosférica, a contaminação dos mares, a derrubada
de florestas etc. Com a Terra não há meio-termo: se lhe damos
vida, ela nos devolve vida; do contrário, sobrevém a morte.
Agora resta-nos deixar o frágil casulo em que nos encastelamos
e, numa grande mobilização solidária, socorrer os
sobreviventes e as regiões arruinadas. Não com gestos
demagógicos, como o do presidente Bush, que inicialmente doou
apenas 35 milhões de dólares, quantia irrisória para a
dimensão da tragédia. Como declarou em Washington um senador
democrata, Bush destinou às vítimas menos do que gasta antes
do café da manhã de um dia no Iraque. Depois, diante da
pressão mundial, o presidente norte-americano multiplicou esta
quantia por dez.
Terrível essa lógica que induz a gastar na morte e poupar na
vida. Alguma coisa anda muito errada. E não é só com o nosso
Planeta, que dá sinais de um desequilíbrio para o qual não há
terapia. A única saída é a consciência de que cada um de nós
é o novo Noé, responsável pela preservação do meio ambiente e,
de nossa arca, devemos ser capazes de mirar no horizonte o vôo
da pomba que traz no bico um ramo de oliveira.
* Frei Betto é escritor, autor de ³A Obra do Artista - uma
visão holística do Universo² (Ática), entre outros livros.
https://www.alainet.org/pt/articulo/111129
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